• Nenhum resultado encontrado

DE SUPERAÇÃO DA SOCIEDADE BURGUESA

I. Crítica ao Programa de Gotha, Crítica ao Programa de Ekfurt e Marxismo e Revisionismo Porto: Portucalense, 1971, p 48.

4.4. Os direitos humanos como “legislação simbólica”

Para Neves, a legislação simbólica possui dois sentidos: o negativo e o positivo. Pelo sentido negativo, a “legislação simbólica” acontece quando o legislador, ou quem lhe

382

POGREBINSCHI, Thamy. O enigma do político: Marx contra a política moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 237.

faça as vezes (o administrador, por exemplo), produz textos normativos cuja referência é jurídico-normativa (leis, emendas à constituição etc.), mas que não estão atrelados a finalidades de caráter jurídico-normativo383. Em outras palavras, e já utilizando uma linguagem sistêmica, há “legislação simbólica” quando o legislador deixa que fatores externos ao sistema jurídico influam no referido sistema descaracterizando o seu código. A consequência é a possibilidade dos códigos-diferença “ter/não-ter” (economia), “saber/não- saber” (educação), “poder/não-poder” (política) etc. predominarem sobre o código “lícito/ilícito” (direito)384. Assim, a “legislação simbólica” se caracteriza quando, no

momento da produção de dado texto normativo, prioriza-se o (ou, como quer Neves, há uma “hipertrofia” do) caráter simbólico em detrimento da concretização normativa385

. Mas esta situação ainda é simples quando comparada ao momento em que um determinado Estado caminha da “legislação simbólica” para a “constitucionalização simbólica”. Esta sim é uma questão problemática, pois enquanto a “legislação simbólica” atinge apenas alguns setores do sistema jurídico, a “constitucionalização simbólica” atinge o sistema jurídico em seus fundamentos, posto que o sistema constitucional é o que dá origem e legitimidade a todo o ordenamento nacional386. Assim, mudando os termos de “legislação” para “constitucionalização simbólica”, a principal consequência é que o legislador constituinte apresenta um quadro normativo incompatível com a realidade da sociedade civil, servindo a norma constitucional como justificação das pressões exercidas pelas classes subalternas (os “subintegrados”, de Neves), sem que tal normatização tenha condições de ser concretizada. Como argumenta o jurista brasileiro:

383 NEVES. A constitucionalização simbólica. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 30.

384 Há casos, porém, que embora o legislador não crie a legislação de modo a predominar códigos estranhos

ao direito, ocorre a legislação simbólica. Por exemplo, quando o legislador produz normas “sem tomar nenhuma providência no sentido de criar os pressupostos para a eficácia, apesar de estar em condições de criá-los”. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica, op. cit., p. 31. Quando questões deste tipo são originadas pelo legislador constitucional, surge o problema da aplicabilidade do texto constitucional. Sobre este problema, cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2 ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 1982. A “aplicabilidade”, porém, não se confunde com a “eficácia”, sendo o primeiro um problema de ordem jurídica (se aproximaria ao conceito de “eficácia jurídica” de Pontes de Miranda) e o segundo de ordem sociológica.

385

O sentido de concretização normativa que Neves utiliza é o da “teoria estruturante do direito” (cf. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica, op. cit., p. 91). Neste modelo, “concretização normativa” é a construção da norma jurídica feita pelo julgador no caso específico. Assim, “concretização da norma é construção da norma”. Cf. MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito, v. 1. 2 ed. Trad. Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 231.

Em caso de constitucionalização simbólica, o problema ideológico consiste em que se transmite um modelo cuja realização só seria possível sob condições sociais totalmente diversas. Dessa maneira, perde-se transparência em relação ao fato de que a situação social correspondente ao modelo constitucional simbólico só poderia tornar-se realidade mediante uma profunda transformação da sociedade387.

Por consequência, a “constitucionalização simbólica” trata-se de “uma representação ilusória em relação à realidade constitucional, servindo antes para imunizar o sistema político contra outras alternativas”388. Nesse sentido, o “simbólico” estaria mais

para o “agir estratégico”389

do que para o “agir comunicativo”390, isto é, enquanto racionalidade prática seria mais coerente com as ações estratégicas cujo objetivo fosse convencer o adversário ou impossibilitar a sua ação do que com as ações comunicativas, que exigem, pelo menos em Habermas, “sinceridade” dos utentes.

Já no sentido positivo parece a Neves que a “legislação” ou a “constitucionalização simbólica” não é algo necessariamente ruim, pois o simbolismo da normatização, embora não corresponda à realidade da sociedade civil, tem uma função prospectiva, isto é, se não diz respeito à situação atual, pelo menos contribui para que, a partir das demandas por sua concretização, possa ser concretizado no futuro391. Para Neves, o “simbólico” é ambivalente: serve tanto à manutenção da falta de direitos (sentido negativo) quanto à mobilização pela realização deles (sentido positivo). Ele se baseia em Lefort392, que no que atina especificamente aos direitos humanos, defende que os direitos humanos das

387 NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática: mudança simbólica da

constituição e permanência das estruturas reais de poder. Anuário dos cursos de pós-graduação em direito

da UFPE, a. 7, n. 7. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, p. 290; ___. A constitucionalização simbólica, op. cit., p. 98.

388 NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática: mudança simbólica da

constituição e permanência das estruturas reais de poder. Anuário dos cursos de pós-graduação em direito

da UFPE, op. cit., p. 287; ___. A constitucionalização simbólica, op. cit., pp. 98-99.

389 Segundo Adeodato, uma das dimensões da retórica é a retórica “prática” ou “estratégica”, que objetiva

influir sobre a retórica “material” e, assim, possibilitar sucesso argumentativo àquele que a utiliza. ADEODATO, João Maurício. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Noesis, 2011. Cf. também BALLWEG, Ottmar. Retórica analítica e direito. Trad. João Maurício Adeodato.

Revista brasileira de filosofia, v. XXXIX, fasc. 163, julho-agosto-setembro. São Paulo, 1991, p. 178. 390 No agir comunicativo, cabe ao falante “expressar de maneira veraz opiniões, intenções, sentimentos,

desejos etc. a fim de que o ouvinte acredite no que é dito”. HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir

comunicativo, 1: racionalidade da ação e racionalização social. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Martins

Fontes: 2012, p. 532. Além disso, a ação comunicativa se opõe à ação estratégica. Cf. Idem, pp. 163-184.

391 NEVES, Marcelo. A força simbólica dos direitos humanos. Revista eletrônica de direito do estado, n. 4,

p. 5. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/artigo/marcelo-neves/a-forca-simbolica-dos- direitos-humanos>. Acesso em: 07 ago. 2012.

Declarações, ainda que simbólicos, ou seja, não efetivos naquele momento, teriam

contribuído para a conquista e a ampliação progressiva desses direitos. O “simbólico”, neste prisma, sustena Neves, “não se reduz ao ‘ideológico’ no sentido de ilusão negadora de outras alternativas ou ao ‘retórico’ no sentido de uma mera persuasão descomprometida com o acesso aos direitos”393

.

Não cabe aqui discutir a viabilidade deste segundo sentido do simbólico. Isso alongaria muito uma discussão que não é objeto deste trabalho, pois seria necessário investigar uma realidade posterior à morte de Marx (pós-1883). Mas, independentemente da correção argumentativa desta outra vertente do simbólico, o fato é que não seria razoável exigir que Marx previsse uma situação deste tipo. O que interessa de fato é que, mesmo que o simbolismo de tais direitos tenham projetado conquistas após a morte de Marx, os direitos das Declarações, como concorda o próprio Lefort, eram simbólicos e, por isso, não efetivos, o que leva a conclusão de que a análise de Marx estava correta. Veja o seu argumento, em relação à legislação francesa de 1848:

O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associação, de reunião, de educação, de religião, etc., receberam um uniforme constitucional que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma das liberdades é proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é ilimitada desde que não esteja limitada pelos “direitos iguais dos outros e pela segurança pública” ou por “leis” destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com segurança pública394.

É claro que uma abordagem deste tipo poderia ser contra-argumentada sem dificuldades. Hart, por exemplo, chega a dizer que uma norma que termine com as palavras “a não ser que” continua tendo a mesma natureza de norma395

. Isto é correto, mas não é essa a questão que preocupava Marx. O problema tratado por ele não dizia respeito à validade do ordenamento jurídico ou da norma vista singularmente, nem muito menos até que ponto as exceções poderiam condicionar a própria aplicação da regra. O problema de Marx correspondia à eficácia da norma jurídica. Assim como Kelsen, Marx entendia a

393

NEVES, Marcelo. A força simbólica dos direitos humanos. Revista eletrônica de direito do estado, op. cit., p. 5.

394 MARX, Karl. O dezoito brumário de Luis Bonaparte. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos, op. cit., p. 338.

395

HART, H. L. A. O conceito de direito. Trad. Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 181.

eficácia a partir de um viés semântico, pois achava necessário que o preceito contido na norma fosse observado na realidade396. Isto é, para se dizer que uma norma era dotada de eficácia era preciso haver uma correspondência entre a obrigação ou faculdade atribuída no plano normativo e a sua concretização no plano social. Para usar uma terminologia típica do próprio Hart, seria preciso diferenciar uma análise “interna” do direito, feita pelas doutrinas formalistas, de uma análise “externa” do direito, feita pela sociologia jurídica397

. Certamente Marx faz uma análise do segundo tipo, logo, mais afeita à sociologia jurídica do que à teoria geral do direito, vale dizer, mais preocupado com a relação entre o direito e a sociedade do que com aspectos dogmáticos (isto é, internos) do direito398. Não que ele não soubesse fazer análises “formais/internas” (cf. cap. II). Longe disso. A questão era que ele considerava o direito, assim como a religião, uma esfera parcial, e que, portanto, não mereciam, ambos, uma crítica em separado399.

As razões para essa postura o intérprete deve buscar na própria ideia de mundo de Marx, que era impulsionada pelo desejo de extinguir as classes sociais. Com efeito, como Marx considerava o direito como um instrumento de dominação de classe (cf. seção 4.1) e como, por “obrigação moral”, ele teorizava a extinção das classes (cf. seção 4.2), nada mais natural que não se dedicar ao instrumento (direito) e concentrar-se no todo (a sociedade). É nessa mesma linha de raciocínio que surge a tese da extinção da forma jurídica (cf. seções 3.6 e 5.5). De fato, seria muito estranho que Marx teorizasse sobre a existência de um objeto e, ao mesmo tempo, defendesse a sua extinção, ou seja, fosse um teórico do direito e, concomitantemente, defendesse o desaparecimento deste específico objeto. Por isso, a sua escolha.

396

Segundo Kelsen, “uma constituição é eficaz se as normas postas de conformidade com ela são, globalmente e em regra, aplicadas e observadas”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8 ed. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 234. Uma concepção deste tipo, porém, adverte o autor austríaco, só pode ser entendida a partir de uma teoria dinâmica do direito. Cf. ___. Teoria geral do direito e

do estado. 4 ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 58. Para algumas explicações

adicionais acerca do sentido semântico da norma jurídica, adotada por Kelsen, cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 117 e 119.

397

HART, H. L. A. O conceito de direito, op. cit., p. 75 e ss.

398 Nesse sentido, BOBBIO, Norberto. Marx e a teoria do direito. Nem com Marx nem contra Marx. Trad.

Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Ed. UNESP, 2006, p. 219. No mesmo sentido, LYRA FILHO, Roberto.

Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed. / Instituto dos

Advogados – RS, 1983, pp. 11-12, 21-22, 25, 30, 41-42.

Esse longo parêntese, aparentemente despropositado, teve por objetivo explicar a preocupação de Marx com a eficácia normativa, postura típica de uma sociologia jurídica400, e só a partir do domínio desses conhecimentos é que é possível entender porque Marx denunciava a falta de efetivação dos direitos humanos, que não se confundem com a defesa desses direitos, como será visto ao final desta seção. Dizia Marx:

Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado e impedida apenas a sua realização efetiva – de acordo com a lei, naturalmente –, a existência constitucional da liberdade permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existência na vida real401. (grifos no original)

Como argumenta Feitosa – ainda que se reportando a uma realidade não vivida por Marx, mas que ainda compartilha o mesmo problema –, a visão liberal tenta limitar as reivindicações dos direitos humanos ao terreno das garantias individuais, “excluindo delas qualquer elemento da chamada ‘questão social’, no que resultam direitos humanos em meras garantias formais, sem efetividade”402

. Na linguagem de Neves, isso acontece porque tais diplomas normativos constituem legislações simbólicas.

Pois bem. Aqui Marx evolui mais um pouco o seu ceticismo em relação aos direitos humanos. Isto porque se Marx considerava que os direitos humanos, apesar de representar os interesses burgueses, constituíam pelo menos uma emancipação política, agora, diante do problema da sua efetividade, tal emancipação era apenas “simbólica”, no sentido

negativo. Assim, nem a emancipação política, que era parcial, os homens conseguiram.

Seria preciso abandonar de vez os direitos humanos e construir algo novo.

Em 1852, ano em que Marx interrompe a “fase francesa” da sua obra (interesse que ele só retomaria nos anos 1870, com a eclosão da Comuna de Paris), ele já vivia na Inglaterra. A partir daí, o filósofo alemão passa seguidas temporadas escrevendo artigos para diversos jornais da Europa e dos Estados Unidos. Só em 1857 é que ele retoma os

400 Ehrlich chama o direito “eficaz” de “direito vivo” e o contrapõe ao direito vigente. “Direito vivo” seria

aquele que, embora não fixados em prescrições jurídicas, é o que rege de fato uma dada comunidade. EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: UNB, 1986, p. 378.

401 MARX, Karl. O dezoito brumário de Luis Bonaparte. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos, op. cit., p. 339.

402 FEITOSA, Enoque. Direitos humanos: entre promessa formal e as demandas por sua concretização (um

ensaio de interpretação marxista). STAMFORD, Artur (org.). O judiciário e o discurso dos direitos

estudos de economia política. Para tanto, ele fica do Museu Britânico das nove da manhã até às sete da noite e, ao chegar em casa, trabalha duro todas as madrugadas. Os direitos humanos, a partir desse ano, não teriam mais análises individualizadas, como aconteceu no que esta Dissertação vem chamando de “primeira” e “segunda” fases da obra marxiana. Desde 1846 e, principalmente, a partir de 1847, os direitos humanos seriam vistos como mais um dos muitos instrumentos responsáveis pela manutenção da sociedade burguesa, o que implica dizer que a análise de Marx, a partir de 1847, é prioritariamente, mas não unicamente, a de um economista.

CAPÍTULO V

Outline

Documentos relacionados