• Nenhum resultado encontrado

Emancipação política e direitos humanos: duas esferas insuficientes para libertar o homem

COM A POLÍTICA FRANCESA

3.4. Emancipação política e direitos humanos: duas esferas insuficientes para libertar o homem

Quando o Estado anula politicamente as diferenças sociais e, assim, promove a igualdade formal (perante a lei), ele produz uma ficção que, como sói acontecer, não corresponde à realidade212. Em primeiro lugar, porque anular a desigualdade em abstrato,

211 MARX, Karl. Sobre a questão judaica, op. cit., p. 39.

212 Engels argumenta que a igualdade jurídica existe apenas no papel, pois “a burguesia, em sua luta contra o

feudalismo, e visando o desenvolvimento da produção capitalista, se viu obrigada a abolir todos os privilégios de casta, isto é, os privilégios pessoais, proclamando, inicialmente, a igualdade dos direitos privados e, em

na folha de papel, não resolve o problema concreto; só o idealismo alemão poderia achar que para vencer as contradições sociais bastaria eliminá-las no pensamento213. Da mesma forma, tornar o problema apolítico e, assim, transferi-lo para a sociedade civil (que foi a solução francesa) também não o resolve, pois transferir o lugar social de um problema não o extingue.

Em pleno século XIX Marx já percebia que não é com norma jurídica que se resolve o problema da desigualdade, mas com políticas públicas, ou, como ele já esboçava, ainda que timidamente, com a revolução, porque quando o Estado transfere o problema da desigualdade social para a sociedade civil, muito antes de anular as diferenças, ele as pressupõe. E mais, não impõe limites às diferenças, pois permite que todas as distinções sociais possam atuar na sociedade civil sem controle. Ao contrário do que alguns pensavam, como Adam Smith, não há “mão invisível”. É nesse sentido a argumentação de Marx:

O Estado anula à sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e atividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formação e atividade laboral como diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro do povo, sem consideração dessas diferenças, como participante igualitário da soberania nacional, ao tratar todos os elementos da vida real de um povo a partir do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado permite que a propriedade privada, a formação, a atividade laboral atuem à maneira delas, isto é, como propriedade privada, como formação, como atividade laboral, e tornem efetiva a sua essência particular. Longe de anular essas diferenças fáticas, ele existe tão somente sob o pressuposto delas, ele só se percebe como Estado político e a sua universalidade só torna efetiva em oposição a esses elementos próprios deles214.

seguida, pouco a pouco, a dos direitos públicos, a igualdade jurídica de todos os homens. No entanto, a ânsia de ventura só numa parte mínima se alimenta de direitos ideais; o que ela mais reclama são meios materiais e nesse terreno a produção capitalista cuida de que a imensa maioria dos homens iguais em direitos só receba a dose estritamente necessária para sobreviver, mal respeitando, pois, o princípio da igualdade de direitos no tocante ao desejo de felicidade da maioria – se é que respeita – mais do que o regime da escravidão ou de servidão da gleba”. In: ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos, v. 1, op. cit., p. 101. No mesmo sentido, cf. ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. 2 ed. Trad. Lívia Cotrim e Márcio Naves. São Paulo: Ensaio, 1991, pp. 24-25; PASHUKANIS, E. La teoria general del derecho y el marxismo. Trad. Carlos Castro. Ciudad de México: Editora Grijalbo, 1976, cap. IV; e NAVES, Márcio. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 65-68.

213

“A Crítica crítica lhes ensina que eles conseguirão suprimir o capital real ao ultrapassar a categoria do capital no pensamento, que eles conseguirão se transformar realmente fazendo de si mesmos homens reais, quando transformarem seu ‘eu abstrato’ na consciência e quando desprezarem, como uma operação contrária à Crítica, toda transformação real de sua existência real, das condições reais de sua existência, ou seja, de seu eu real”. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A sagrada família, op. cit., p. 68.

Assim, a igualdade perante a lei, invenção da modernidade, que Marx chama de emancipação política e alega ser incompleta, não resolve a desigualdade real; aliás, só a esconde. É ela, ao lado da liberdade e de outros direitos formais, que constitui o que se convencionou chamar de direitos humanos – os direitos criados pela burguesia. São estes direitos civis e políticos que estão na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), documento que consagra a liberdade, a igualdade e a fraternidade como pedras de toque da “nova era”, colocando um fim ao Antigo Regime. Porém, como esclarece Hobsbawm, embora a Declaração seja um manifesto contra a sociedade hierárquica dos privilégios nobres, não significa que ela esteja voltada a uma sociedade democrática e igualitária215.

É que no liberalismo a liberdade e a igualdade são grandezas inversamente proporcionais, ou seja, a primeira é tanto maior quanto mais mitigada for a última. A liberdade existiria plenamente se não fosse a igualdade, isto porque a igualdade tem o fim de impor limites à liberdade (sua função, aqui, é exclusivamente negativa). Nesta perspectiva, liberdade e igualdade são ideais mais contraditórios do que conciliatórios. Não é à toa que o “neoliberalismo” só pode existir com o progressivo desmantelamento do

Welfare State. Assim, a solução das democracias modernas não é conferir uma igualdade

real, mas apenas a igualdade formal, política, ou seja, apenas para alguns e não para todos; o que não resolve o problema, só o esconde. De outro lado, embora compartilhando uma ideologia antípoda à liberal, encontra-se a doutrina da “égaliberté”, de Balibar216. Segundo ela, dever-se-ia promover uma soma entre a liberdade e a igualdade, pois no Estado Liberal elas se encontram apartadas. Parece-nos, entretanto, que a lógica desta teoria obedece à mesma lógica do liberalismo, só que com o sinal invertido.

O problema é que, quando tratadas separadamente, a liberdade e a igualdade não se combinam mesmo. A questão não é apartá-las ou somá-las, mas negá-las como conceitos isolados e, dialeticamente, criar um outro conceito, que superaria a contradição entre a liberdade e a igualdade. De fato, em uma sociedade liberal só pode existir a emancipação política, ou seja, a igualdade formal, que tem uma função bem definida: a manutenção do

status quo. Acontece que a sociedade civil, onde vivem os homens, continua conflituosa e

215 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções, op. cit., p. 91. 216

BALIBAR, Étienne. La crainte des masses. Politique et philosophie avant et après Marx. Paris: Galilée, 1997.

desigual, privatística e belicosa, alienante e alienada. A solução que Marx deu a isso foi negar a liberdade e a igualdade e criar o conceito de emancipação humana, cuja principal liberdade era a de não ser desigual.

O Estado liberal do século XIX, porém, ao invés de acabar com a desigualdade, preferiu oferecer apenas uma igualdade formal, perante a lei, que, na sociedade civil, não mitigou a liberdade nem conferiu igualdade real. Mas não para por aí, pois até as formalidades legais poderiam ser suprimidas caso houvesse interesse, conforme esclarece a segunda parte do primeiro artigo da Declaração: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum” (grifo nosso). Ora, se não são livres e iguais em absoluto então só são livres e iguais enquanto isso for conveniente, o que leva a crer que não são nem livres nem iguais.

É neste contexto que Marx inquire aos judeus: “Que emancipação almejam os judeus, a emancipação humana ou a emancipação política?”217

A resposta desta pergunta constitui o fio condutor do texto que está sendo comentado, pois se for a primeira que eles querem então se trata de uma emancipação real, prática e desalienada, todavia se o desejo for pela última se trata de uma emancipação parcial, irreal e que não altera o status quo. Ambas são promovidas pelo Estado, só que a primeira exigiria dele, além de uma ação, uma mudança completa de atitude, o que envolveria inclusive a transformação dos paradigmas econômicos; já a segunda bastaria tão-somente uma omissão.

O Estado liberal escolheu a segunda opção: deslocou as exigências da religião para a sociedade civil, e, assim, emancipou o homem apenas politicamente, abstendo-se de resolver o problema da religiosidade ao transformar o Estado em laico, ou seja, retirou os empecilhos que havia para o homem comum (isto é, religioso) participar ativamente da vida pública, mas não retirou do homem a religiosidade que o alienava. Portanto (e agora deslocando o tema do sagrado para o profano), a emancipação política não é prática e real, mas parcial e incompleta. É, antes de tudo, mais uma omissão estatal do que uma ação, isso porque o Estado liberal não tinha interesse em resolver os variados conflitos que ocorriam na sociedade civil, especialmente os distributivos. Assim, sempre que lhe era apresentado um problema social que ameaça a sua estrutura ideológica, o poder público preferia

legalizar o conflito e transferi-lo para a sociedade civil, ao invés de extingui-lo218, o que levou Marx a afirmar, em um momento posterior, quando já esboçava uma atitude ainda mais cética quanto aos direitos humanos, que um governo é um “comitê cuja principal função é administrar os interesses da burguesia”219.

O problema da parcialidade da emancipação política consiste no fato de que enquanto houver transferência dos conflitos sociais para a sociedade civil, o homem nunca vai se emancipar, porque se, por um lado, a sociedade civil é o terreno da bellum omnium

contra omnes, por outro lado, as forças que se digladiam nesta sociedade são desiguais, e,

por isso, necessitam da intervenção do Estado, e não da sua omissão; a não ser que tal omissão seja propositada, o que o Marx desta época começa a desconfiar.

Segundo Atienza, a crítica de Marx neste período se baseava em que, para ele, “as ordens, os estamentos, introduziam um elemento de particularidade no Estado”, isto é, “introduziam os interesses particulares no que deveria ser a esfera dos fins e dos interesses gerais e, portanto, iguais”220

. De fato, se o Estado se abstém de intervir em prol do mais vulnerável para fazer com que todos tenham iguais oportunidades (afinal, o que interessa é a igualdade real) é porque está ao lado do hipersuficiente (o sujeito ou classe mais forte), só podendo oferecer ao homem comum a igualdade formal, política.

O problema é que esta situação gera um conflito insolúvel no homem, já que na política ele é tratado como um igual, mas na sociedade não. Assim, cinde-se um sujeito em dois tornando-o limitado e ilimitado ao mesmo tempo, tudo a depender do local social onde ele se encontra. Esta esquizofrenia, porém, tem efeitos bem programados: ela institui a desigualdade jurídica ao impedir que certos homens possam usufruir determinados bens jurídicos, apesar de declarar que os homens são iguais juridicamente.

218

Cf., neste sentido, a história do direito do trabalho, ramo do direito que surgiu para proteger o sistema capitalista, e não os trabalhadores. De fato, “O direito do trabalho normatiza o conflito para que a luta não aconteça de forma amadora, através de guerras, revoluções e levantes, ou seja, de forma desordenada e sem parâmetros. Ele prefere, ao invés de extinguir as classes, reconhecê-las, inserindo o trabalhador na dinâmica do regime capitalista, desconsiderando a desumanidade e a exploração do capital”. In: BASTOS, Ronaldo. O

conceito do direito em Marx, op. cit., p. 103.

219 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. Trad. Sueli Tomazzini Barros

Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 27.

220 No original: “[…] los órdenes, los estamentos, introducían un elemento de particularidad en el Estado; es

decir, introducían los intereses particulares en lo que debería ser la esfera de los fines y los intereses generales e, por tanto, iguales”. ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos, op. cit., pp. 36-37.

Isso é possível transferindo o problema das diferenças sociais, que antes eram problemas do direito público (na Alemanha, por exemplo), para a sociedade, locus do direito privado (como foi feito pela França). Isso faz com que o Estado não precise se constranger com o fato de que os homens são diferentes (financeiramente, culturalmente etc.), porque o papel dele – o Estado –, que não é social, é jurídico (como se um pudesse ser desvinculado do outro) estaria cumprido apenas com a garantia da igualdade formal. Mas não é contraditório que o direito de propriedade seja um direito fundamental sem que a maioria da população possa usufruí-lo na sociedade? Em termo mais genéricos, não é estranho que os direitos fundamentais não sejam acessíveis a todos os homens?

A contradição está no fato de que o direito de propriedade provém da liberdade de ter propriedade e, neste caso, a liberdade, como faceta dos direitos humanos, só pode ser a liberdade burguesa, liberdade ilimitada para uns e encarcerada para outros, total para uns e anulada para outros. Por outro lado, a igualdade só pode ser a igualdade formal, porque se fosse material entraria em conflito insolúvel com o direito de propriedade, que é a liberdade de produzir, mesmo que impedindo a liberdade daqueles que não têm os meios e só podem se vender. Isso faz com que “cada homem veja no outro homem, não a realização, mas, ao contrário, a restrição da sua liberdade”221

. Mas toda emancipação, adverte Marx, é redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem222.

É neste contexto que Marx diferencia os direitos do homem e do cidadão, presentes nas Declarações francesas e na americana, que corresponderiam, respectivamente, à emancipação política (parcial) e à emancipação humana (total). Os primeiros seriam os direitos do homem privado, egoísta e separado dos outros homens e da sua comunidade, ou seja, um direito alienado, que, segundo Marx, corresponde ao que se chama comumente de “direitos humanos”. Direitos do homem (drois de l’homme), portanto, são os direitos dos membros da sociedade burguesa, cuja normatização veio a lume graças à emancipação política223, o que a teoria constitucionalista moderna chama de “direitos de primeira geração”, ou seja, direitos liberais que exigem uma abstenção do Estado de intervir na vida dos particulares (cf. seção 1.1).

221 MARX, Karl. Sobre a questão judaica, op. cit., p. 49. 222

Idem, p. 52.

Mas não pense que com a segunda ou terceira geração, que exige prestações positivas do Estado, os direitos humanos se “humanizam”, pois como estranha Marx em uma obra posterior, quando lhe perguntaram se o objetivo do comunismo é extinguir a propriedade, ele responde que a propriedade já está extinta para a maioria da população, que só vende a sua força de trabalho porque não pode ter outros meios de produzir e, assim, sobreviver224. E arremata: o objetivo do comunismo não é extinguir toda a propriedade, mas extinguir tão-somente a propriedade burguesa225, já que esta existe em prol da liberdade pura e irrestrita, independentemente de qualquer sentido ou interesse social, isto é, a despeito da igualdade (real) entre os homens.

Assim, afirma Marx:

[...] nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade. Muito longe de conceberem o homem como um ente genérico, esses direitos deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade, antes como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação de sua autonomia original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta226.

3.5. As críticas de Atienza sobre a abordagem dos direitos humanos em A questão

Outline

Documentos relacionados