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A religião como problema político ou a política de um monopólio religioso: sobre a dialética da questão judaica

COM A POLÍTICA FRANCESA

3.3. A religião como problema político ou a política de um monopólio religioso: sobre a dialética da questão judaica

A questão judaica, e a crítica aos direitos humanos presente neste texto, constitui

uma das etapas da evolução intelectual de Marx, etapa necessariamente anterior ao que se convencionou chamar de marxismo. Nesta época ainda não estava formulada a concepção materialista da história e o método dialético ainda não era realista (apesar da influência de Feuerbach já ser notória). Estas metódicas (materialismo histórico e dialético) só viriam a ser utilizadas a partir de uma obra posterior – A Ideologia Alemã. Antes disso, Marx passa por duas fases anteriores: na primeira (1841-1842), ele defende com veemência os direitos humanos, e na fase imediatamente posterior (1843-1845), objeto deste capítulo, ele os critica, por considerá-los representantes do homem particular, egoísta, que se emancipou politicamente, mas não “humanamente”.

A questão judaica foi publicada no primeiro e único volume dos Anais Franco- Alemães, na primavera de 1844, e marca uma mudança intelectual e política de Marx. A sua

posição aqui não é “panfletária” ou “meramente jornalística”, mas possui uma base histórico-filosófica muito grande, que pode ser percebida tanto pela variedade de categorias trabalhadas no texto quanto pelo fato dele polemizar com um outro texto, o de Bruno Bauer, também sobre a mesma temática; o que não era pouco, já que as ideias de Bauer representavam grande parte da perspectiva do idealismo alemão.

A “questão judaica”, assim, era um problema que estava sendo muito debatido. O contexto era o seguinte: na Renânia da época, região onde se localizava Trier, cidade natal de Marx, desde 1812 havia um edito prussiano que proibia os judeus de ocuparem cargos públicos. Assim, o pai de Marx, que até então se chamava Hirshel, muito mais afeito ao ambiente liberal dos tempos em que a Renânia era dominada pela França napoleônica, e, ao mesmo tempo, sem querer ter ônus sociais e financeiros de uma “cidadania de segunda classe”, renasceu como Heinrich, patriota alemão e cristão luterano, ou seja, abandonou a ascendência judia e se converteu201.

Porém, se a limitação dos direitos de cidadania em virtude de um credo era um problema alemão, certamente ele não se apresentava na França pós-revolucionária202, e é sempre bom lembrar que Marx, desde outubro do ano anterior (1843), já residia em Paris, onde frequentava sociedades secretas socialistas e comunistas. Na França, o Estado já tinha transferido o problema da religião para a sociedade civil e, assim, havia se tornado laico. Este fato, porém, não impediu a crítica de Marx. Ao contrário. Independentemente da França apresentar uma postura política “mais resolvida” que a da Alemanha, para Marx esta ainda era uma mudança incompleta, que escamoteava outros interesses203.

Mas como demonstrar tais interesses através de um texto sobre a religião judaica? Hoje pode até parecer estranho que o problema dos direitos humanos seja tratado sob tal perspectiva, mas é o método dialético que permite esta situação, já que ele estuda os fenômenos considerando as suas conexões, concatenações e dinâmicas com outros fenômenos204. Assim, emancipação religiosa tem tudo que ver com a luta política, ou como o próprio Marx explica em passagem bastante conhecida, “a questão da relação entre

201 WHEEN, Francis. Karl Marx. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 18.

202 Nos debates prévios à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o tema da religião judaica entrou

em pauta e foi resolvido de forma principiológica. Assim, como os franceses pretendiam uma declaração “universal”, eles teriam que envolver todas as seitas e crenças, inclusive a judaica. Assim, conforme demonstra Hunt, reproduzindo o argumento do conde Stanislas de Clermont-Tonnerre, não poderia haver meio-termo, “Ou vocês estabelecem uma religião oficial do Estado, ou admitem que os membros de qualquer religião podem votar e ocupar cargos públicos”. HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos, op. cit., pp. 146-147.

203 É preciso salientar que Marx não é o único a criticar os “direitos do homem”. Outros teóricos também

foram importantes na formulação desta crítica (como Burke, Bentham e De Maistre), embora A questão judaica tenha assumido desde então um valor de paradigma. Para a crítica de Burke, cf. BURKE, Edmund.

Reflexões da revolução na frança. Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2012.

Já para a crítica dos outros autores, cf. a competente síntese feita por DEL VECCHIO, Giorgio. Los derechos

del hombre y el contrato social. Trad. M. Castaño. Madrid: Editora Reus, s/d, cap. IV. 204

ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich.

emancipação política e religião transforma-se para nós na questão da relação entre emancipação política e emancipação humana”205

.

Foi justamente esse o erro de Bruno Bauer: não ter abordado a questão judaica pela metódica dialética. Para Marx, como ele não investigou a relação entre a emancipação política e a emancipação humana, não conseguiu entender perfeitamente o problema dos judeus206, e mais, acrescenta-se, o problema dos direitos humanos e da sua efetivação, ficando restrito a um problema religioso, quando a questão era principalmente política.

Não é o que pensavam, porém, os artífices do Estado francês, que não consideravam a “questão religiosa” como um problema político e, assim, diferentemente dos alemães, cujo Estado ainda era religioso, portanto não laico, transferiram o problema da religião do direito público para o direito privado sob a justificativa de que não seria o papel do Estado resolvê-lo207. Deste modo, além de não resolver o problema da religiosidade em si, tornou-o um problema apolítico, isto é, que não cabia ao poder público administrá-lo. Assim, o Estado pôde se livrar de uma limitação – a religião – sem que o homem pudesse deixar de ser limitado pelo seu efeito – a religiosidade. Mas, como adverte Marx, “a maioria esmagadora não deixa de ser religiosa pelo fato de ser religiosa em privado”208. Isso o leva a concluir que “o homem não foi libertado da religião”, e de todas as limitações de ordem psíquica ou social que ela causa, “ele ganhou liberdade de religião”209

. E isso é muito mais sério do que parece.

Muito antes de uma postura tão somente ateia ou irreligiosa, e, de certo modo, de ojeriza aos credos religiosos – o que levaria Marx a ser acusado infundadamente de anti- semita210 – em A questão judaica ele revela uma preocupação profunda com a igualdade entre os homens, que é preciso que seja fática, real, e não apenas formal, jurídica. Assim,

205

MARX, Karl. Sobre a questão judaica, op. cit., p. 38.

206 Idem, p. 36. 207 Idem, p. 41. 208 Idem, p. 39. 209 Idem, p. 53.

210 É preciso fazer uma diferença entre a oposição aos judeus enquanto classe ou entidade religiosa (e, com

isso, oposição às suas crenças e ritos) da oposição dos judeus enquanto homens. De fato, é muito estranho que pintem Marx de anti-semita quando ele sempre esteve disposto a ajudá-los, conforme registra uma carta escrita por Marx e dirigida a Ruge em 1843: “Agora mesmo o presidente dos israelitas daqui me visitou e pediu-me que ajudasse com um requerimento parlamentar em favor dos judeus; e eu concordei. Por mais odiosas que eu considere as crenças judaicas, a visão de Bauer me parece no entanto abstrata demais. A questão é fazer o máximo possível de buracos no estado cristão e introduzir sub-repticiamente tantas visões racionais quantas pudermos. Este deve ser ao menos o nosso alvo – e a amargura cresce a cada petição rejeitada”. MCLELLAN, David. Karl Marx, op. cit., p. 100.

no que atina à religião, o Estado laico não torna o homem um ser igual de fato aos outros homens, pois possibilita que dois homens sejam desiguais socialmente (possuam religiões diferentes), apesar de serem iguais politicamente, o que hoje se chama de igualdade formal, perante a lei.

Isso porque o homem se liberta da religião não por si mesmo, destruindo em si a sua religiosidade, mas através de outrem, o Estado, que é apenas meio, e não um fim. Assim, o homem se liberta apenas politicamente, e, por continuar religioso na esfera privada, entra em contradição consigo mesmo, com a sua essência, que é laica no Estado e mística na sociedade civil. É esta dualidade que Marx não aceita, porque ela esconde desigualdades sob a veste de igualdade. É por isso que a emancipação política se trata de uma libertação parcial, já que a emancipação é feita por um “desvio” – o Estado211.

Agora, imagine que o tema não seja a religião, mas necessidades mais materiais. O direito à terra, por exemplo. Assim, do ponto de vista jurídico (que inclui o político), todos têm direito de adquirir determinado pedaço de terra, afinal os homens são iguais perante a lei. O problema é que só é possível adquirir terra comprando-a e só quem pode fazer tal negócio é quem tem dinheiro. Assim, embora o Estado estabeleça que todos são iguais

politicamente, perante a lei, a sociedade civil permanece desigual, e os homens, uns

apartados dos outros, o que leva a crer que a emancipação política é parcial, incompleta, precária e insuficiente.

3.4. Emancipação política e direitos humanos: duas esferas insuficientes para libertar

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