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A metáfora da base e da superestrutura: a preponderância da economia e a limitação dos direitos humanos

OS DIREITOS HUMANOS NO CAPITALISMO

5.1. O Marx economista e a descoberta da “realidade” por trás da “ilusão”: a análise dos direitos humanos no interior da totalidade social

5.1.1. A metáfora da base e da superestrutura: a preponderância da economia e a limitação dos direitos humanos

Os Grundrisse serviram de base para Marx escrever, em 1859, um outro trabalho, intitulado Contribuição à crítica da economia política, obra cujo conteúdo foi ofuscado pelo seu Prefácio. Esse Prefácio é o que denominados, em várias passagens desta Dissertação, de “autobiografia intelectual” de Marx. Nele, Marx traça a evolução de suas ideias desde quando cursava o bacharelado em Direito na Universidade de Berlim, em 1837, e, por isso, é um texto muito importante para entendermos o papel que os direitos humanos desempenharam na sua obra desde então.

Coerente com o que ele já defendia em A ideologia alemã (cf. seção 4.1, especialmente quando falamos da “teoria das estruturas”), e nos Grundrisse, como vimos acima, para Marx, tanto as “relações jurídicas” quando as “formas de Estado” (a superestrutura), não poderiam ser explicadas a partir de si mesmas, pois as formas “jurídica” e “política” têm as suas raízes nas “condições materiais de existência” (a base ou a infraestrutura), que ele identifica no que Hegel chamava de “sociedade civil”442

. Além disso, o “saber” mais competente para estudar a “anatomia da sociedade burguesa” era a

440 Idem, p. 191. 441

Idem, pp. 188-189.

economia política443. É por isso que Marx transfere os seus estudos da filosofia (“primeira fase” – cf. cap. II) e da política (“segunda fase” – cf. cap. III) para a economia (“terceira fase” – cf. caps. IV e V).

O argumento de Marx é que é preciso diferençar as “transformações materiais das condições econômicas de produção” e “as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas”, isto é, as formas segundo as quais os homens adquirem consciência da sua existência material444. Continuando a “inversão” da filosofia de Hegel, iniciada por influência de Feuerbach e explicitada na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1843, Marx defende que é preciso explicar a consciência pelas condições materiais, e não o contrário445. O que chamamos lá atrás de “teoria das estruturas”, cujo esboço se encontra em A questão judaica, fica mais claro agora:

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção constituem a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência446.

Existem muitas controvérsias sobre esse pequeno trecho e, certamente, este não é o espaço mais adequado para abordá-las, pois fugiríamos demasiadamente do nosso objeto central. Ao mesmo tempo, não podemos nos furtar de esclarecer de que se trata a controvérsia.

Marxistas e não marxistas se debruçam neste texto há anos: tanto para negar, no caso dos primeiros, quanto para afirmar, no caso dos últimos, que a filosofia de Marx é determinista, isto é, despreza a importância da ação humana para a configuração da história.

443 Idem, p. 47.

444 Idem, p. 48. 445

Idem, p. 48.

446 Idem, p. 47. Engels, em escrito em que procura refutar o sociólogo e jurista burguês Anton Menger, que

havia criticado Marx no livro ‘O direito ao produto integral do trabalho historicamente exposto’, defende uma tese parecida com a de Marx. Para ele, enquanto a economia lida com fatos e, por isso, ela seria “científica”, a filosofia do direito lida com abstrações, posto que se ocupa de ‘representações’. Cf. ENGELS, Friedrich; KAUTSKI, Karl. O socialismo jurídico, op. cit., p. 28.

Antes de tudo, é preciso dizer que existem duas espécies de determinismo histórico447. O primeiro é o determinismo “diacrônico”, que defende que há uma evolução linear e, nesse caso, necessária que une uma estrutura social ao fracasso de outra. Certamente, essa não existe na obra marxiana. Na verdade, isso é o que pensava Stálin. De todo modo, não é desse determinismo que trata o Prefácio de 1859. O Prefácio é um exemplo de outro determinismo, o “sincrônico”, segundo o qual certa “base” determina ou condiciona certa “superestrutura”. E há variações sobre o que consistiria essa “base”, se apenas o econômico ou outros aspectos.

É justamente sobre estes aspectos que se fundam as controvérsias. Alguns, como Thompson448, defendem que a “base” incluiria também a cultura, e outros, como Gramsci449, que formulou o conceito de “hegemonia”, defendem que a determinação poderia ser feita também a partir da superestrutura. A verdade, porém, é que Marx, ao privilegiar o lado econômico, nunca disse que isso impedia a ação dos homens (basta ver as interpretações de Lukács450 e Engels451 a esse respeito), mas que os homens não agem totalmente livres.

De fato, esta passagem não constitui nem um “determinismo tosco” (cf. os argumentos da seção 4.1) nem um “historicismo evolucionário” (como vimos, não se trata de “determinismo diacrônico”), principalmente se a análise for feita de forma complexa, isto é, considerando a globalidade da obra de Marx. Assim, modificando um pouco as

447 Cf. BARROS, José D’Assunção. Teoria da história: os paradigmas revolucionários, v. 3. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2011, p. 71.

448

THOMPSON, Edward Palmer. Folclore, Antropologia e História Social. As peculiaridades dos ingleses e

outros artigos. Campinas: UNICAMP, p. 254-255.

449 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol 5. Rio de Janeiro: Civilização Barsileira, 2002, pp. 62 e

ss; ___. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 60 e ss.

450

Cf. LUKÁCS, György. Marx, op. cit., pp. 92-94.

451 Em carta a Mehring, Engels diz o seguinte: “No mais, falta apenas ainda um ponto que nas coisas de Marx

e minhas não foi regularmente destacado de modo suficiente e em relação ao qual recai sobre todos nós a mesma culpa. Nós todos colocamos inicialmente – tínhamos de fazê-lo – a ênfase principal, antes de mais nada, em derivar dos fatos econômicos básicos as concepções políticas, jurídicas, e demais concepções ideológicas, bem como os atos mediados por meio delas. Com isso, negligenciamos o lado formal em função do conteúdo: o modo e a maneira como essas concepções surgem. Isso deu aos adversários um belo pretexto para erros e deformações. [...] Aqui está subjacente a concepção vulgar, não dialética, de causa e efeito como polos opostos de modo rígido, com o esquecimento absoluto da interação. Esses Senhores esquecem com frequência e quase deliberadamente que um elemento histórico, uma vez posto no mundo a partir de outras causas, econômicas, no final das contas, agora também reage sobre sua circunstância e pode retroagir até mesmo sobre suas próprias causas”. ENGELS, Friedrich. Carta a Mehring (14 de julho de 1893). FERNANDES, Florestan (org.). Marx e Engels: história. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo: Ática, p. 465-466.

análises habituais, poderíamos dizer, como bem percebeu Mészáros452, que a questão que preocupava Marx era a de como seria possível modificar as condições atuais de existência (leia-se, o modo de produção capitalista), condições sob as quais os homens entram “independentes da sua vontade”, e criar um plano geral de indivíduos livremente associados, e, nesse sentido, autônomos, que Marx identificava, desde A ideologia alemã, passando pelo Manifesto Comunista, com o comunismo.

É esta a razão que explica o seu apartamento dos direitos humanos, vale dizer, da crença na competência da forma jurídica para instaurar relações iguais de fato. Para Marx, o direito era uma “ilusão comunitária” por uma razão muito simples: como ele era condicionado pelas contradições da base material, ele nunca poderia permitir “o exercício da livre vontade”, pois este estaria sempre anulado pelo poder reificador do modo de produção capitalista institucionalizado453. Assim, na “ilusão” (superestrutura), os homens eram “livres”, enquanto que na “realidade” (base) os homens eram coagidos. Esta é uma fórmula que, como se sabe, foi inaugurada em A questão judaica (cf. seção 3.4), passa por

A sagrada família (cf. seção 3.7) e chega nos Grundrisse, como vimos acima. O argumento

central não se modifica e um trecho de A ideologia alemã serve de paradigma: “na representação, os indivíduos são mais livres sob a dominação da burguesia do que antes, porque suas condições de vida lhe são contingentes”, mas “na realidade eles são, naturalmente, menos livres, porque estão mais submetidos ao poder das coisas”454.

O que isso implica em matéria de direitos humanos? Para Mészáros, o exercício dos direitos será um postulado meramente retórico enquanto o “interesse de todos” for sublimado pelos interesses particulares de classe, pois no capitalismo o “interesse de todos” é afirmado sem que os interesses classistas predominantes sejam questionados na sociedade civil, o que torna a mudança social efetiva um desejo sem condições viáveis de ser concretizado (o que termina por torná-los “legislação simbólica”, como vimos anteriormente – cf. seção 4.4). Assim é que, para o filósofo húngaro, o interesse de todos “é

452 MÉSZÁROS, István. Marxismo e direitos humanos. Filosofia, ideologia e ciência social, op. cit., pp. 163-

164.

453

Idem, p. 166.

um conceito ideológico vazio, cuja função é a legitimação e a perpetuação do sistema de dominação dado”455

.

Parece-nos, entretanto, que na obra de Marx o direito não pode representar o interesse de todos (o “interesse geral” dos juristas), mas apenas interesses classistas. Embora não pretendamos adiantar uma questão que irá ser tratada mais à frente (seção 5.5), quando comentarmos a Crítica ao programa de Gotha, é preciso assentar esta premissa. Em Marx, o direito é um instrumento de legitimação de classe e ele permanecerá existindo só enquanto uma sociedade classista existir. O direito só será desnecessário (essa é a tese da extinção do direito) quando a humanidade atingir um nível de convivência tal não condicionado por interesses classistas. Nesse estágio, que Marx chama de comunismo, não haveria mais classes, nem Estado e nem direito. Assim, o interesse geral surge concomitantemente com a extinção do direito, o que leva a crer que para Marx o direito só existe enquanto existirem interesses de classes e, portanto, nunca ele poderia estar atrelado ao interesse geral, já que o surgimento deste é o sinal da desnecessidade da forma jurídica.

Afora esta discussão, que será debatida no tempo devido, o que interessa é que, para Marx, o direito não poderia ser (ideologicamente) distinto do modo de produção vigente e, portanto, se este consistia na troca de mercadorias equivalentes, o direito iria legitimar tal situação. Isso porque o direito é fruto da prática humana: ele não constitui a sociedade, mas é por ela constituído. Essa é a tese que, embora iniciada nos Grundrisse, Marx desenvolve em O capital.

5.2. O capital e a ideia de que o direito consiste numa troca de mercadorias

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