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As teses sobre Feuerbach: os problemas do materialismo teórico e a necessidade de ultrapassá-lo

COM A POLÍTICA FRANCESA

3.8. As teses sobre Feuerbach: os problemas do materialismo teórico e a necessidade de ultrapassá-lo

Em A Questão Judaica Marx ingressou em uma nova fase, pois passou a criticar os mesmos direitos que outrora havia defendido, por acreditar que eles correspondiam aos direitos do homem particular, separado do Estado. Marx, nesta época, ainda não era marxista; ele só fundaria o seu método em A Ideologia Alemã. Assim, o máximo que ele conseguia observar eram os efeitos (a propriedade privada, o dinheiro e o egoísmo), mas não sabia o que ou quem gerava essas consequências. Apesar de Marx já saber que não era a política a esfera mais apta para resolver os problemas sociais, ele só era capaz de ver os problemas, mas não enxergava as causas. Marx só iria se dar conta disso tudo em 1846, quando descobriria o conteúdo do social, o motor que moldava tanto a sociedade quanto os seus interesses, isto é, as relações de produção, e é a partir de tal descoberta que ele funda a sua teoria, o materialismo histórico e dialético, e é por causa dele que Marx vai abandonar os direitos humanos.

Antes, porém, Marx sentiu necessidade de se posicionar em relação aos jovens hegelianos e demonstrar como a sua doutrina se diferenciava das ideias proferidas pelos discípulos de Hegel. Para tanto, ele escolheu combater o mais destacado dos neo- hegelianos, Ludwig Feuerbach, pois lhe parecia que para superar a juventude hegeliana bastaria anular o seu maior representante.

As Teses sobre Feuerbach é mais um dos inúmeros textos marxianos publicados postumamente. Quem publicou a obra foi Engels, em 1886, na revista Neue Zeit, como

apêndice do seu livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. As Teses constituem leitura obrigatória para o intérprete que pretende entender o “materialismo prático” de Marx, ainda que tal seja demonstrado às avessas, ou seja, em contraposição ao “materialismo abstrato” de Feuerbach. Embora o materialismo de Marx tenha a sua expressão maior em A ideologia alemã, é nas Teses que ele o manifesta, pela primeira vez, em forma de doutrina. Por isso, o objetivo desta seção é expor brevemente as críticas de Marx à Feuerbach como “ato preparatório” para explicar a sua “teoria materialista da história”, e, assim, entender a sua última concepção dos direitos humanos, postura que ele manteve até o fim da sua vida.

Para Marx, o materialismo de Feuerbach tem basicamente dois problemas: é abstrato (teses 6 e 7) e contemplativo (teses 1, 9 e 10); já o dele é concreto e prático (teses 2, 3 e 8), além de ser uma doutrina de transformação social (tese 11).

Primeiro, a questão da abstração. Segundo Marx, embora Feuerbach tenha superado a essência religiosa, ele defendeu um conceito de essência humana abstrata, isto é, que pressupunha um indivíduo isolado, não social (tese 06)276. Por isso, Feuerbach recebeu a mesma crítica que recebera Epicuro. Do mesmo modo que este tratava os átomos de forma isolada, individualizada, Feuerbach tratava os homens como mônadas abstratas, isto é, como se fossem entes isolados e desprovidos de historicidade. Embora Feuerbach tenha se livrado da essência religiosa ao destruir a concepção que punha Deus como sujeito e as relações humanas como predicado, quando ele passa a “divinizar o homem e fazer do amor ao homem uma relação intemporal e abstrata entre seres humanos, tira estes do mundo concreto em que vivem e faz assim, do homem, uma nova abstração”277

. Engels vê Feuerbach como um filósofo ambíguo: de um lado, ele é realista, uma vez que o seu ponto de partida é antropológico, mas, por outro lado, como ele não descreve o seu fazer histórico, acaba por formular um homem abstrato278.

Como consequência, Feuerbach não consegue perceber que a própria religião é um produto social e que o indivíduo abstrato descrito por ele pertence a uma sociedade

276 MARX, Karl. Ad Feuerbach. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, op. cit., p. 534. 277 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 2 ed. Trad. Luiz Fernando Cardo. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1977, p. 107.

278

ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos, v. 1, op. cit., p. 99.

específica, não estando além, aquém ou fora dela (tese 07)279. Romero Venâncio explica bem o que Marx queria dizer nesta crítica:

[...] os seres humanos que compartilham uma religião, qualquer religião, são indivíduos que não só compartilham crenças e ritos, mas também uma maneira comum de produzir alimentos [...] uma maneira de fabricar abrigos [...] um modo de comunicar-se entre si. Em outras palavras: os seres humanos que compartilham uma religião, compartilham-na ao mesmo tempo em que estão numa vida coletiva, com muitas dimensões imbricadas, ligadas, relacionadas entre si. Com esse ponto de vista aparentemente simples (para nós no século XXI, depois de toda a tradição da teoria social moderna) vemos como Marx desloca a compreensão histórica do fenômeno religioso280.

Agora, o segundo problema: a questão do materialismo contemplativo. Para Marx, o problema de todo materialismo formulado até aquele momento (o que incluía o de Feuerbach) era que a realidade era apreendida de forma objetiva, ou contemplativa, não como “atividade humana sensível”, “como prática”, “subjetivamente” (tese 01)281

. O máximo que chegava o materialismo contemplativo era a “contemplação de indivíduos singulares e da sociedade burguesa” (tese 09)282. Assim, o ponto de vista deste materialismo era a sociedade burguesa, não a sociedade humana (tese 10)283. Com esta crítica, Marx demonstrou estar incomodado com o dualismo – típico de uma filosofia da consciência – entre sujeito e objeto. Mas a questão discutida aqui não era sobre o papel da filosofia. Certamente, na cabeça de Marx o dualismo já tinha sido sepultado por Hegel e, por conseguinte, uma filosofia deste tipo não tinha muito crédito. A questão era outra: Marx não admitia um sujeito abstrato, amputado da sociedade; o sujeito, para ele, deveria ser concreto, logo, não poderia se afastar da sociedade e limitar-se a descrevê-la. Seria preciso agir sobre ela. O materialismo, pois, não poderia ser nem abstrato nem contemplativo; teria que ser prático.

Para Marx, e aqui ele luta tanto contra o idealismo quanto contra o materialismo feuerbachiano, a realidade só pode ser investigada quando mediada pela práxis (tese 02)284. Assim, “a disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da

279 MARX, Karl. Ad Feuerbach. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, op. cit., p. 534. 280

SILVA, Romero Júnior Venâncio. A crítica da religião em Marx: 1840-1846. Recife: UFPE, 2010 (Tese de Doutorado), p. 110.

281 MARX, Karl. Ad Feuerbach. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã, op. cit., p. 533. 282 Idem, p. 535.

283

Idem, p. 535.

prática – é uma questão puramente escolástica”285. Em Marx, só na práxis pode ser conhecida a “verdade” do mundo. Pela valorização da prática, que é social, não era possível que ninguém se situasse acima da sociedade, e, assim, apenas condicionando o social sem ser condicionado por ele (tese 03)286, o que o leva a concluir que “toda vida social é essencialmente prática”287.

Agora, como ultrapassar esse materialismo abstrato-contemplativo que apenas “observa” a sociedade burguesa? Bastaria modificá-lo e criar um novo? Bastaria modificar seu nome? Não. Para Marx, seria preciso modificar as condições materiais para que as ideias também se modificassem. Portanto, era preciso mudar o mundo, coisa que era estranha aos jovens hegelianos. Este é o conhecido lema da 11ª tese: “os filósofos apenas

interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”288. Mas será que os direitos humanos se prestavam a isso?

285 Idem, p. 533. 286 Idem, p. 533. 287 Idem, p. 534. 288 Idem, p. 535.

CAPÍTULO IV

O MARX CÉTICO E O ABANDONO DOS DIREITOS HUMANOS:

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