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2 SOBRE O PORTUGUÊS BRASILEIRO: BREVE REVISÃO SOCIOHISTÓRICA Tenciona-se, neste capítulo, apresentar uma breve revisão dos principais eventos sócio-

2.1 O DOMÍNIO INDÍGENA

Destaca-se, primeiramente, a situação de contatos empreendida em solo do que viria a ser Brasil: o embate entre o homem e a língua de Portugal e as línguas dos povos autóctones, os indígenas.

A colonização do território brasileiro se deu, inicialmente, ao longo da costa, que, segundo testemunhos históricos, era habitada por civilizações, falantes de línguas pertencentes ao tronco Tupi. Apenas, posteriormente, estabeleceu-se o contato, mais para o interior, com línguas pertencentes ao tronco Macro-Jê.

Segundo Tavares (2000, p.16), o índio encontrado pelo europeu, no litoral baiano, entre 1500 e 1532, era o tupi. De acordo com o autor, esses grupamentos indígenas, provavelmente, teriam vindo do alto Xingu, tendo combatido e expulsado para o interior as tribos jê5. Em razão

desse contato prematuro entre tais indígenas e os colonizadores, o número de informações acerca de suas línguas e hábitos seria mais significativo.

Acerca dos grupamentos indígenas, na Bahia, no século XVI, o autor comenta que precisar o seu posicionamento, com relação ao atual território estadual, é praticamente impossível, tendo em vista os seus deslocamentos. Tratava-se de indivíduos nômades. Todavia,

5 Para Lucchesi (2017, p.362), a dispersão do povo tupi ter-se-ia iniciado entre três e cinco mil anos atrás e sua expansão deve ter ocorrido entre dois e três mil anos atrás, possibilitando a difusão de diversas línguas de tal origem por uma extensa área do atual território brasileiro. À altura da chegada dos portugueses no Brasil, o autor acredita que a dispersão desses indivíduos pelo litoral, de São Paulo até o rio Amazonas, ainda estaria em curso. Essa expansão, segundo o autor, além de ter trazido consequências à história sociolinguística do Brasil, justificando, por exemplo, a contribuição do tupi e do tupinambá no léxico do PB, donde se destacam os campos semânticos da fauna e da flora, além da toponímia e, até mesmo, da antroponímia brasileiras.

estabelece uma proposta de distribuição geográfica, a qual pode ser observada no Quadro 2, e deve ser tomada com cautela, segundo advertência do próprio autor.

Quadro 2 – Distribuição geográfica dos grupamentos indígenas na Bahia do século XVI

LOCALIZAÇÃO GRUPAMENTO INDÍGENA

LITORAL

Da costa de Sergipe até Camamu

Tupinambá

De Camamu até o Espírito Santo

Tupiniquim

REGIÃO DOS RIOS PARDO E DE CONTAS

Nas fronteiras do Espírito Santo com Minas Gerais

Aimoré ou botocudo / pataxó

Entre o rio Pardo e o rio de Contas

Camacã, nogoió, gongoió e crancaió.

VALE DO RIO PARAGUAÇU E SERRA DO SINCORÁ Maracá

NORDESTE

Na região de Rodelas Kariri Nas margens do rio São

Francisco

Anaió e caiapó

REGIÃO DO RIO CARINHANHA (FRONTEIRA COM GOIÁS)

Chicriabá e acroá

Fonte: elaborado com base em TAVARES (2000).

Diante desses dados, percebe-se que, de modo geral, no Estado da Bahia6, berço do

Brasil, a situação é semelhante ao contexto geral: a costa, marcada pela presença dos tupi e tupinambá, se contrapõe ao interior, para onde convergiram indígenas pertencentes a diferentes nações, sendo, boa parte delas, falantes de línguas do tronco Macro-jê7.

Tratando, especificamente, das línguas pertencentes ao tronco linguístico Tupi, é preciso que se compreendam as múltiplas situações associadas a esses indígenas. Rodrigues (2010) conta que, no que se refere às questões étnicas, o termo tupidesignou, no começo do século XVI, o povo vivente no litoral de São Vicente e nas serras do atual Estado de São Paulo. Em termos linguísticos, a designação recobria tanto as línguas faladas por esses indivíduos, como aquelas cultivadas por indígenas da costa do Rio de Janeiro, da Bahia e do Espírito Santo, além

6 Sobre a presença indígena na Bahia atual, Tavares (2000), pautando-se em mapa elaborado pela Associação

Nacional de Apoio ao Índio, situa tribos no norte, nordeste, oeste e sul do Estado. Dessas, destacam-se os kaimbé, em Euclides da Cunha, os aricobé em Barreiras e os pataxó, em Santa Cruz Cabrália, cidades contempladas por este trabalho.

7 No que concerne à presença indígena nas localidades estudadas, informações serão disponibilizadas no Capítulo 3 desta Tese, referente à história social de tais cidades.

dos chamados tupinambás do Rio de Janeiro, do Recôncavo e norte da Bahia, de Sergipe, Alagoas e Rio Grande do Norte.

O autor comenta, sintetiza e explicita os desdobramentos dessa situação nos dois primeiros séculos coloniais:

De um ponto de vista estritamente linguístico, os nomes tupi e tupinambá têm sido empregados mais recentemente para distinguir aquelas duas variedades de língua muito próximas, filiadas à família linguística tupi-guarani, com as quais o português esteve em contato no século XVI.

Durante o século XVII, o nome tupi ficou mais associado, sobretudo no sudeste e sul do Brasil, aos índios recrutados pelos bandeirantes para invadir e dominar as missões jesuíticas e outras comunidades de indígenas guaranis na bacia do Rio Paraná. Os bandeirantes, em sua maioria, eram mamelucos descendentes de mães tupis e pais portugueses e, além do português, falavam uma variedade diferenciada da língua dos índios tupis, para a qual foi se firmando, então, o nome de língua geral e que hoje distinguimos como língua geral paulista. (RODRIGUES, 2010, p.28).

O contato do homem português com os indígenas da costa brasileira se deu já nas três primeiras décadas da colonização brasileira. Considerando a realidade dos índios da costa, falantes de línguas aparentadas, é levantada a hipótese da existência de uma língua geral, conforme aponta Rodrigues (1994, 2006, 2010), noção relativa, em um primeiro momento, às línguas indígenas de grande difusão na área litorânea.

No que concerne ao contexto brasileiro, todavia, o termo passa a recobrir uma gama de situações, ao longo do povoamento da Colônia. Além dessa primeira compreensão, referente a uma língua altamente difundida na costa brasileira e cultivada pelas populações indígenas nela viventes, o termo língua geral poderia servir à ideia de uma koinébaseada nas línguas tupi, que objetivava a comunicação entre as tribos do litoral e, posteriormente, à língua franca, oriunda dessa, usual entre os portugueses e os indígenas.

Conforme explicitado, com o avanço dos colonizadores em direção ao sudeste e ao interior, por ocasião das bandeiras, passa a ser adquirida como língua materna pelas populações mestiças (mamelucos), oriundas do contato entre os bandeirantes e as mulheres indígenas. Sabe- se que, àquela altura, era pequeno o número de mulheres vindas nas expedições portuguesas. Os homens de Portugal estabeleciam relacionamentos com as nativas, gerando, assim, filhos mestiços.

Segundo Rodrigues (2010), o número de descendentes mestiços foi crescendo aos poucos. Esses indivíduos, filhos de pais portugueses e mães indígenas, embora falassem, prioritariamente, a língua da mãe e familiares maternos, eram atraídos para os trabalhos de seus pais, na empreitada de desbravamento do interior brasileiro. Nem sempre, todavia, adquiriam a língua portuguesa. E, quando o faziam, adquiriam-na de modo defectivo.

Esse processo ter-se-ia intensificado na região de São Vicente. O número de mamelucos era grande a ponto de sua língua ter se difundido e ter recebido a designação de língua geral, sendo hoje, na literatura específica, tratada por língua geral paulista (LGP). De acordo com o autor: “A LGP, derivada do tupi, tendo-se expandido assim, com a ação dos bandeirantes, pelo interior de São Paulo e Minas Gerais, por Goiás e Mato Grosso e pelo nordeste do Paraná, vigorou da segunda metade do século XVI até a segunda metade do século XIX.” (RODRIGUES, 2010, p.37-38).

Na segunda metade do século XVI e primeira metade do século XVII, como atestam documentos, delineia-se uma nova situação. O termo língua geral passa a recobrir a língua utilizada por populações mestiças de origem tupinambá, no Maranhão e no Pará. Essa língua foi se diversificando, na medida em que era adquirida por indígenas falantes de diferentes línguas, muitos de etnias não tupi, ao longo do Rio Amazonas.

Posteriormente, foi designada de língua geral amazônica (LGA), tendo sido falada do século XVII até hoje, no vale do rio Amazonas. A LGA era a língua dos mestiços amazonenses e era considerada, pelos indígenas não Tupi, como a língua dos brancos: para a negociação com os colonizadores, era necessário dominá-la (RODRIGUES, 2010, p.39). Contemporaneamente, na cidade de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, sobrevive, sob a designação de nheengatu (língua boa) e foi tornada oficial.

No caso da Bahia, em específico, além do domínio da língua mais falada na costa e de sua utilização no contato com os portugueses, Argolo Nobre (2011, 2015) discute e retoma testemunhos encontrados por Lobo, Machado Filho e Mattos e Silva (2006), que apontam a existência de uma língua geral no sul do Estado. Para o autor, tratava-se de três situações sociolinguísticas distintas e que diziam respeito a situações sociais e comunicativas diferentes. A LGA, por exemplo, teria sido gestada em um contexto de heterogeneidade linguística muito mais profundo do que nas situações desempenhadas na costa brasileira.

A língua geral, na Bahia, teria seus domínios localizados do sul do Recôncavo ao extremo sul do Estado, na divisa com o Espírito Santo (vilas e aldeias das antigas Comarcas de Ilhéus e Porto Seguro). Em termos temporais, as peculiaridades dessas línguas teriam sido formadas a partir do início do século XVII, tempo em que as populações mamelucas bilíngues em português e tupinambá já estariam presentes na costa do Brasil e em que o tupinambá falado em contexto de bilinguismo se diferenciasse daquele utilizado em situações de monolinguismo. De acordo com Argolo Nobre (2011):

[...] na Comarca de Ilhéus, sua população mameluca começou a se formar em 1524; na Capitania de São Vicente, em 1532; e na Comarca de Porto Seguro, em 1534. Quanto ao seu declínio e extinção, a língua geral, em São Paulo, começou a perder

sua hegemonia para língua portuguesa na segunda metade do século XVIII, enquanto que, no sul da Bahia, esse processo só começou a se intensificar mais tardiamente, a partir da primeira metade do século XIX. (ARGOLO NOBRE, 2011, p.223-224, grifos do autor).

A situação linguística do sul da Bahia, então, deve ser tratada considerando tal peculiaridade em seu caminho. Se, de um lado, em Salvador e no entorno da Baía de Todos os Santos, tem-se a formação de um domínio português, ao lado das línguas africanas, já no século XVI, na porção meridional da Bahia, há a persistência da língua geral até a primeira metade do século XIX.

Às conjunturas mencionadas, em plano geral, deve ser somada a existência de uma “[...] versão gramaticalizada pelos jesuítas sob o modelo do português e utilizada largamente na catequese, até de tribos de língua não tupi...” (LUCCHESI, 2009, p. 43). O autor se refere à

Arte de Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil, do Padre Anchieta, de 1595.

Sobre essa versão, cabe salientar que Anchieta e outros, que, posteriormente, também escreveram no sentido de padronizar tal língua, a designavam como língua brasílica.

A respeito desse quadro, considere-se, por último, que o contato entre o português e as línguas indígenas foi marcado pela violência, geradora de uma história de genocídios e glotocídios8, bem como pelo recuo no uso da mão de obra nativa, em decorrência de aspectos culturais e das constantes campanhas jesuíticas.

Assume-se, portanto, a visão de que os cinco séculos de Brasil não equivalem ao tempo de domínio da língua portuguesa, em solo nacional. Ainda assim, esse panorama deve ser levado em conta na interpretação da realidade atual do PB, uma vez que o português estava presente desde os primeiros momentos da colonização, tanto em condição de aquisição defectiva por parte dos mamelucos, em contato com a língua do pai, quanto como língua da elite colonial, àquele tempo centrada entre Pernambuco e a Bahia.

Descartando a postura preconceituosa, com relação aos povos autóctones, a situação em causa é precisamente resumida no seguinte excerto da obra de Silva Neto (1963, p. 74-75):

É escassíssimo o elemento branco, que se vê afogado na maré dos índios e dos africanos. É a fase do gentio desbravador dos sertões impenetráveis, conhecedor profundo da estranha natureza americana.

[...]

É porém, por excelência, a fase do mameluco bilíngüe. A língua geral era necessária a todos: aos mercadores nas suas viagens, aos aventureiros em suas expedições, sertão a dentro, aos habitantes das vilas em suas relações com o gentio...

[...]

8 Segundo informações oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tomando por base dados do censo de 2010, a população indígena atual é constituída de 869,9 mil habitantes, distribuídos em 375 etnias, falantes de apenas 274 idiomas. No passado colonial, segundo Rodrigues (2005, p.35), estimava-se a existência de 1,2 mil idiomas.

Mas se, de um lado, a língua portuguêsa assim se estropiava e abastardava na bôca de gentes brutas e tôscas, de outro era carinhosamente estudada, em Pernambuco e Bahia – os núcleos principais dessa fase – pelos padres em seus colégios e por uma pequena minoria de funcionários, letrados e senhores de engenho.

Entende-se, dessa forma, que as situações sociolinguísticas envolvendo as línguas indígenas são complexas e correspondem a um primeiro momento do panorama linguístico do Brasil e da Bahia. Desse modo, devem-se considerar esses contextos na compreensão da realidade atual do PB, senão pela estrutura das línguas com as quais o português esteve em contato na antiga Colônia, mas, sobretudo, pelas situações de difusão e aquisição da língua aqui encontradas.