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1A (UMA): COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO E MONTAGEM

II. 1.1 – PERFORMANCE E INTÉRPRETE-CRIADOR

II. 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁTICA: UM CAMINHO COMPARTILHADO

II. 2.1 DRAMATURGIA DO MOVIMENTO, PARTITURA CORPORAL, IMPROVISAÇÃO E MONTAGEM.

De acordo com Andrade, “a dramaturgia do movimento, conforme entendida na contemporaneidade, nasce a partir das inovações de teorias teatrais novecentistas que passam a desenvolver métodos de análise do movimento e da ação cênica” (2006, p. 18). Das diversas teorias e da interação entre essas teorias se sedimentarão, gradualmente, metodologias de composição da dramaturgia do movimento. No grupo de pesquisa, “os conceitos de eucinética, coreologia e partitura corporal constituem, na nossa prática artística de ‘dramaturgos-do-corpo’, as bases instrumentais para a definição dos principais procedimentos de composição da ação cênica” (ANDRADE, 2006, p. 18).

Eucinética e coreologia são termos provenientes de Rudolf Laban (1879-1958), que

elaborou um sistema tendo como principal objetivo “o delineamento de uma linguagem apropriada ao movimento corporal, com aplicações teóricas, coreográficas, educativas e terapêuticas” (FERNANDES, 2002, p.23). A eucinética é o estudo da ação dinâmica a partir de uma unidade espaço-tempo-energia dentro dos limites do corpo do ator-dançarino. “O nível eucinético é um primeiro plano de composição no qual são determinados os segmentos

da ação, as diversas qualidades de energia, as variações do ritmo e a orquestração das relações entre as diversas partes do corpo do ator” (ANDRADE, 2006, p. 18). Já a coreologia é o estudo da harmonia das formas através de seqüências e escalas de movimento projetadas no espaço. A coreologia, segundo Andrade, numa chave labaniana,

trata do sentido e da composição dos desenhos e das projeções do movimento expressivo no espaço geral, amplificado para fora e além do corpo do ator em forma de arquitetura espacial. A coreologia constitui, em extensão ao plano

eucinético, um segundo nível de composição da dramaturgia do movimento, onde

ocorre o estudo e a composição da ação construída sobre elementos direcionais e sobre leis da estruturação e da configuração espacial do movimento. (2006, p. 18)

Sobre esses dois planos de composição do movimento, se delineia a composição das partituras corporais, seqüências de ações detalhadamente elaboradas pelo ator-dançarino, fixadas e codificadas, servindo tanto como base concreta para o trabalho do ator-dançarino, como de material sobre o qual o diretor investe para a construção da cena, tal qual um diretor de cinema lida com os fotogramas de um filme.

Na monografia “Partitura corporal e trabalho do ator”71, trabalhei sobre o entendimento de partitura pesquisando em alguns encenadores europeus do século XX o tratamento dado a tal noção. Aparecendo pela primeira vez nos escritos de Constantin Stanislavski (1893-1938), a partitura é referenciada pelo encenador enquanto instrumento para a construção da personagem, através da linha geral das ações físicas, que garantiam uma harmonia seqüencial destinadas à verossimilhança. Meyerhold, que usa a expressão “desenho dos movimentos”, ao invés de partitura, acreditava que muita coisa era dita além das palavras, e a maneira de elas virem à tona e se transformarem diante do espectador era através da plasticidade do movimento

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Ao longo de anos de pesquisa, seu trabalho torna-se sempre mais independente do texto, modelando a partitura através do conhecimento musical ao invés de se utilizar do pensamento dramatúrgico literário. Sua linguagem de trabalho é composta de terminologia musical e de palavras como “ritmo”, “dança”, “biomecânica”, que substituíram a “interpretação”. Mas foi através de Grotowski e Eugenio Barba que o termo partitura ganhou destaque na prática do ator-dançarino. Grotowski, acreditando que o ator, antes de pensar, deve agir, propõe, através de uma reflexão sobre a artificialidade (metáfora que utiliza para designar a notação dos signos visíveis das ações físicas do ator), que o ator deve estruturar

71 Fundamental para a monografia foi o texto de Patrice Pavis “Da Stanislvaskij a Wilson: antologia portatile sulla partitura” in MARINIS, Marco De. (org.). Dramaturgia dell’attore. Porreta Terme: I Quaderni del Battello Ebbro. 1996, p. 63 a 81. A tradução, de Paulo Dodet, se encontra em anexo junto com a monografia.

formalmente a sua presença em cena, sendo este o único caminho para a realização de um ato de “desvelamento”72. Já Eugenio Barba amplia a noção de partitura proposta por Grotowski, ao falar de uma relação entre partitura e sub-partitura, que se refere aos pontos de apoio, à mobilização interna do ator73. A definição de partitura, para essa pesquisa, se aproxima da definição apresentada por Barba:

O termo partitura implica: a forma geral da ação, seu ritmo em linhas gerais (início, ápice, conclusão); a precisão dos detalhes fixados: definição exata de todos os segmentos da ação e de suas articulações (sats, mudanças de direção, diferentes qualidades de energia, variações de velocidade); o dínamo-ritmo, a velocidade e intensidade que regulam o tempo (no sentido musical) de cada segmento. É a métrica da ação, o alternar-se de longas e curtas, de tônicas (acentuadas) e átonas; a orquestração da relação entre as diferentes partes do corpo (mãos, braços, pernas, olhos, vozes, expressão facial). (BARBA, 1994, p. 174).

Mas existe também um outro nível de partitura, ligada à montagem do espetáculo. Seria o que Pavis (2003) chama de partitura terminal, no sentido de que as partituras criadas pelos atores (que Pavis chama de partituras preparatórias) são reordenadas e ganham novas significações inseridas dentro de um contexto maior, que é a da dramaturgia da cena. Esse trabalho de montagem, só é possível porque o ator já fixou e estruturou as suas ações. Na mão do encenador, essa partitura do ator vira “material”, ou seja, vira “pedaços” menores que o encenador pode colocar em ordens diferentes, separá-las, ocultá-las e até mesmo excluí-las. Por exemplo: um ator cria uma seqüência simples, que começa com uma caminhada; subitamente pára, e põe a mão na nuca, como se algo atingisse sua cabeça; ele se volta para traz; olha; abaixa e pega uma pedra (imaginária); levanta, a joga e sai correndo. O diretor, diante dessa seqüência, pode “recortá-la”, e pedir para que o ator a faça de trás para frente: entra correndo, joga a pedra, vira de costas, é atingido, e caminha. As ações realizadas pelo ator são as mesmas, mas o sentido da seqüência muda. Se antes podia-se ler que o ator era atacado e por isso revidava e saía correndo, depois, o sentido criado era de que o ator atacava

72 “Acreditamos que a composição artificial não só não limite o processo espiritual, mas na realidade facilite o caminho. (A tensão trópica entre o pensamento interior e a forma reforça ambos. A forma é como uma armadilha a cujo convite o processo espiritual responde espontaneamente lutando contra)” (GROTOWSKI apud SIEDLER, 2003, p. 35).

73Pela própria definição, a subpartitura se situa sob a partitura visível e concreta do autor: ao contrário da partitura, ela não está visível, perceptível, assimilável a um signo realizável concretamente. Ela é a idéia por trás da ação, o fundamento da partitura. Esteja ela [a subpartitura] sob ou atrás ou ao lado da partitura, a subpartitura subtende e suporta a parte visível e emersa do ator: sua partitura. Ela a sustenta, a precede e a engendra: nesse sentido ela é muito mais que um suporte provisório e aleatório, muito mais que uma massa gelada informe, ela é um terriço sobre o qual florescerá o ator. A subpartitura é, em todo caso, o que sustenta o ator, aquilo sobre o que ele se apóia: em suma, é apenas ele mesmo, já que tudo o que faz só pode vir de seus próprios recursos, físicos ou mentais”. (PAVIS apud SIEDLER, 2003, p. 90).

(alguma coisa ou alguém), e por isso sofria uma retaliação. O diretor pode pedir ainda que o ator acelere ou diminua o tempo de realização das ações, insira pausas, etc.

Dessa forma, pode-se definir montagem como sendo a construção de significado através da composição e da síntese de materiais e fragmentos que são retirados de seus contextos originais e recriados, ganhando outra dimensão de significação. Especificamente no teatro, a montagem está na base da dramaturgia e do trabalho sobre as ações74 ou sobre o efeito que elas devem produzir no espectador. Na preparação da montagem teatral, os processos que dão origem às ações físicas têm sua relevância, porém o que mais importa são os materiais que resultam das ações. O fato de se ter um número considerável de ações delineadas e memorizadas permite a mistura, o corte, ou seja, permite um verdadeiro trabalho de composição, assemelhando-se ao processo de montagem de um filme, um fotograma que é cortado e reinserido junto com outro fragmento, ganhando novo significado.

O trabalho de composição de partituras, tanto do ator como do encenador, passa por um processo, antes de serem fixadas, de experimentação e “vivência”, através de improvisações guiadas por estímulos específicos, a fim de limitar e objetivar o campo da experimentação. Os estímulos para a improvisação podem ser tanto poéticos quanto regulamentados por códigos fixos. O estímulo poético pode ser uma frase, poesia, ou imagem, som, etc. Já um estímulo dado por códigos fixos é a definição de um campo específico de trabalho sobre o corpo, como, por exemplo, trabalhar sobre modos de se locomover pelo espaço, direções, etc. (coreologia). Ou ainda, desenvolver desenhos no espaço com os membros superiores (tronco, braços, cabeça), sem deslocamento espacial (eucinética). Os modos de ligações entre os movimentos, a adaptação do corpo à tarefa sugerida, dependerá de cada ator-dançarino, de maneira que, mesmo diante do mesmo exercício, cada corpo produzirá movimentos e respostas diferentes.

Um percurso criativo no âmbito das práticas desenvolvidas no grupo de pesquisa acima citado pode ser então esquematizado, pelos seguintes passos:

1 – Identificação, estudo e reconhecimento de princípios psicofísicos de composição do movimento;

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Quanto à ação física, me remeto à definição de Burnier (2001, p. 62), para o qual a ação é tudo o que modifica o ator de uma certa maneira, que tem relação com a sua vontade, seus anseios e determinações.

2 – Prática disciplinada, cotidiana, desses princípios em composições individuais a partir de esquemas diretivos e compartilhados pelo grupo (exemplo: dínamo-ritmo, escalas

eucinéticas e coreológicas);

3 – Composição de partituras individuais; 4 – Improvisação coletiva com códigos fixos;

5 – Definição ou ajustamento de contentor dramatúrgico; 6 – Laboratórios de dramaturgia e montagem.

As etapas apresentadas acima foram utilizadas, em parte, para essa pesquisa. A composição do movimento, as partituras corporais, e as improvisações com códigos fixos se deram a partir do estudo da obra de Cindy Sherman, através da qual criei uma metodologia de trabalho prático (apresentado a seguir, no capítulo 3). Os princípios de composição do movimento (dínamo-ritmo, coreologia, eucinética), bem como a prática diária de trabalho veio de minha experiência e vivência dentro do grupo de pesquisa (com o qual continuei trabalhando paralelamente a esse projeto da dissertação). Esses princípios estavam, nesta pesquisa, condicionados ao estudo da teatralidade nos auto-retratos de Sherman. Ao mesmo tempo, por uma via inversa), esses princípios condicionaram as aproximações estabelecidas de minha prática como atriz-dançarina com a pesquisa da primeira parte da dissertação.

Procurei identificar aspectos da obra de Sherman que me interessavam, por aproximações a questões que permeiam minhas reflexões e preocupações enquanto artista, ligadas não apenas ao trabalho do ator-dançarino e a sua presença em cena, mas também às significações do corpo e identidade na sociedade atual, e as suas projeções no imaginário social. Não procuro, portanto, em Sherman, apenas procedimentos que sirvam para o trabalho do ator-dançarino em cena, mas sim um campo de investigação de modos de pensar (e produzir) a arte e o social.

Desse encontro de especificidades artísticas diversas (de atriz-dançarina com os auto- retratos da artista plástica Cindy Sherman) elaborou-se a performance 1A (UMA), que não é reprodução, cópia ou tentativa de tradução da obra da artista americana.