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CINDY SHERMAN: AUTO-RETRATO E TEATRALIDADE

I. 2 TEATRALIDADE NOS AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN

I. 2.2 O OUTRO QUE OLHA

para Burns, constituem-se ritualizadas ou padronizadas, e o teatro se configura como uma prática estilizada e legitimada desses processos sociais. Mas enquanto Villegas refere-se à teatralidade para falar dos comportamentos humanos, principalmente gestuais e visuais, Burns considera como teatralidade apenas os comportamentos que são reconhecidos por algum observador como sendo teatrais. Dessa maneira, a teatralidade não é uma forma de conduta, mas uma interpretação, criação de um olhar que outorga a um objeto, pessoa, ou situação um valor de “teatral”. A esse respeito, vale ressaltar a explanação de Duvignaud, que propõe a análise de um aspecto que diferencia a situação social da situação teatral, que é, a saber, o fato de que no teatro as ações se dão a ver. Não é originalmente a oposição entre existência real e existência imaginária que separa as duas categorias citadas, mas o fato de se elaborar uma representação cuja função é ser vista.

Sherman, como explico com maiores detalhes a seguir, traz à tona a performatividade das relações sociais, ou, em outras palavras, revela a teatralidade (importante ressaltar que a teatralidade é revelada, ou seja, que ela vem à tona, se faz consciente) inerente aos comportamentos sociais, explorando este aspecto da teatralidade, o da recepção (no caso de Sherman, o voyeurismo), tão importante para os autores já citados, aspecto que reconhece o vínculo que une o termo teatralidade com o teatro (fonte primária de onde a teatralidade pega para si o seu nome).

I. 2.2 O OUTRO QUE OLHA

A teatralidade para Josette Féral não é uma categoria estética, apesar de ser o teatro o lugar por excelência de manifestação da teatralidade. Deve ser pensada, assim como o teatro, dentro de uma perspectiva determinada por convenções sociais. Está determinada historicamente e, portanto, varia conforme a época:

Quando designamos algo como teatral, é um juízo, é o resultado de um processo interior, pelo qual reconhecemos certas características que nos foram ditas que são

teatrais. É a maneira em que nossa própria categoria de teatralidade funciona (2003, p. 14, trad. nossa)29.

Para algo ser “portador” de teatralidade, é necessário que exista um observador que reconheça no objeto que olha características que entende como teatral. Para Féral, existem certos fatores que permitem que um observador reconheça a teatralidade, condições estas que não necessariamente se encontram no ator, nem na ficção, narrativa ou figurino, podendo então a teatralidade ser observada na vida cotidiana e em outras formas artísticas. É, portanto, um termo que faz referência direta ao teatro, mas que ao mesmo tempo se desliga dele e ganha contornos próprios.

O termo teatralidade surge da tentativa de definir especificidades do teatro, para além de estéticas e ideologias. Por isso, o termo ganha a qualidade de tudo o que na cena não esconde seus artifícios de criação da ilusão. O corpo do ator se torna o principal meio pelo qual a teatralidade se manifesta, seja porque se “arma” de uma série de artifícios técnicos que evidenciam um corpo em ação para além de suas potencialidades utilizadas no dia-a-dia, seja porque o ator, enquanto indivíduo, possui um “instinto teatral” que o incita ao jogo criativo da transfiguração, da transformação do cotidiano, de acordo com a definição de Evreinov30. A teatralidade, então, se liga a essa noção originária no teatro como espaço de criação de uma ilusão percebida como tal por um observador. Atualizada para outras áreas artísticas ou para a realidade social, essa noção se expande, mas sem perder por completo sua referência inicial do teatro.

Féral define o teatro como uma realidade que aponta para uma ilusão. A teatralidade, como o teatro, está sempre vinculada à realidade, entendida pela autora como o contrário de ficção. O teatro se inscreve no real, que Féral entende como sendo o que acontece, porque se

29 “Cuando designamos algo como teatral, es un juicio, es el resultado de un proceso interior, por el cual reconocemos ciertas caracteristicas que se nos a dicho que son teatrales. Es la manera en que nuestra propria categoria de teatralidad funciona”

30 Seus estudos relacionavam o teatro e a vida, a ponto de afirmar que em todos os aspectos da vida de um homem existem “elementos teatrais”. No livro El teatro en la vida, de 1922, Evreinov afirma que o ser humano possui um instinto de transmutação, manifesto no desejo que o indivíduo tem de desempenhar papéis sociais, “um instinto cuja essência se revela no que eu chamaria de teatralidade” (EVREINOV apud KOSOVSKI, 2001, p. 145). A teatralidade seria para ele pré-estética, justamente porque é universal, é inerente ao homem. As crianças expressam melhor a teatralidade porque têm apuradas o senso do lúdico e do jogo criativo, mas à medida que vão crescendo se enquadram às normas e às condutas sociais e o instinto se “dissipa”, porque a teatralidade se aproxima da criação livre, adaptada ao momento em que se vive. O teatro para ele deveria melhorar a vida cotidiana, fazer as pessoas fugirem da rotina. “Segundo ele, a vida deve ser concebida de maneira tal que se transforme em teatro” (FERAL, 2003, p. 52). O teatro deveria servir como modelo para a vida, e por isso Evreinov não aceita o teatro enquanto arte, mas sim como um meio de expressão capaz de liberar os instintos criativos das massas.

trata de um evento que envolve seres humanos e objetos. Este evento pertence à realidade, porque é um acontecimento inserido numa prática cultural. Mas, por outro lado, sai da realidade porque cria ilusão, ou seja, imita, mas também constrói, desconstrói e reconstrói realidades na cena.

Se o teatro cria ilusão, conforme Féral sugere, é porque propõe a criação de um mundo regido por convenções que são diferentes das da vida. Para Pavis, “a ilusão pressupõe a sensação de saber que aquilo que vemos no teatro é apenas uma representação” (1999, p. 203). Neste enunciando, percebe-se que o olhar do espectador, de um observador, é importante para delimitar o campo da representação teatral, através da distinção da ilusão de um lado, e da realidade do outro. Féral considera este olhar que distingue o real do ilusório como a “morada” da teatralidade. “A palavra teatralidade designa [...] algumas características do fenômeno teatral que implicam o descobrimento de certos signos específicos, um fenômeno ligado à percepção do sujeito” (2003, p. 70, trad. nossa)31.

Volto à origem da palavra grega teatro, que remete à arquitetura, ao lugar de onde se olha e que evoluiu até ganhar o estatuto de arte dramática32, enquadrada em leis que variam conforme a época e a cultura, mas que mantém uma constante invariável, como nos apontam Patrice Pavis (1999) e J. Guinsburg (2001), no fato de ser o teatro uma experiência artística que se estabelece na relação entre alguém que olha e alguém que é visto: “Tão somente pelo deslocamento da relação entre olhar e objeto olhado é que ocorre a construção onde tem lugar a representação” (PAVIS, 1999, p. 372). A teatralidade se constitui, então, neste entre, do qual Pavis fala e que participa do funcionamento da própria representação teatral.

Para Féral, assim como para Cornago, a teatralidade está diretamente relacionada à

mímesis e à representação, conceitos recorrentes no teatro, mas com um diferencial

importante, relativo a assunção de sua “postura” como representação. Explico melhor: a representação, diferente de apresentação, pressupõe que algo (objeto, sujeito, situação) se apresente por algum tipo de mediação. Sandra Meyer Nunes, numa leitura que parte da semiótica, explica que “na representação, mediado por algo, o objeto não se dá somente e imediatamente por suas qualidades próprias, mas se apresenta através de algo que se coloca

31 “La palabra teatralidad designa [...] algunas características del fenómeno teatral que implican el descubrimiento de ciertos signos específicos, un fenómeno ligado a la percepción del sujeto

32 Denis Guénoun chama a atenção, no livro O teatro é necessário?, para o fato de que os gregos, na Antiguidade, não tinham nome nem conceito para o que entendemos hoje por teatro. “A palavra teatro nos vem dos gregos, claro, mas eles não a aplicavam como nós à atividade teatral: ela designava uma parte do edifício provisório das representações, aquela em que ficava o público. E, para nosso ‘teatro’, nenhum termo apropriado: nem Platão nem Aristóteles dispõem de uma noção comum para a tragédia e a comédia, compreendidas como gêneros de escrita ou manifestações públicas”. (2004, p. 18).

em seu lugar, o reapresenta (ou simboliza, ou reproduz, ou atualiza)” (1998, p. 12). Já a teatralidade, de acordo com Féral e Cornago, é a apresentação da representação, uma qualidade que certas representações adquirem, “uma representação representando-se a si mesma” (CORNAGO, 2005, p. 6).

A teatralidade é, de fato, uma modalidade da representação, porque diz respeito a algo que não é a coisa em si. Porém, ela se aproxima da ilusão, porque requer para si uma duplicação33 do olhar, que percebe um evento como sendo uma representação diferenciada da realidade, mas que ao mesmo tempo requer um comprometimento deste olhar que crê no evento que observa. No caso do teatro, a teatralidade manifesta-se necessariamente a partir de um pacto entre a cena e o espectador, sendo que este último tem consciência de estar diante de uma re-apresentação. “A teatralidade projeta um tipo de olhar específico sobre o feito da representação. Esta se faz mais consciente, e o espectador desfruta ao ver de forma consciente o procedimento da representação” (CORNAGO, 2005, p. 6, trad. nossa)34.

No teatro, prática que carrega essa dinâmica descrita acima, “o público aceita um acordo inicial, e aceita prolongar a situação jogando o jogo, mantendo certos limites que estão implícitos na situação” (FERAL, 2003, p. 34, trad. nossa)35. Esse acordo que se estabelece no teatro, para Féral, e que garante a teatralidade, parte tanto da atuação do ator, como do cenário, da luz, e da arquitetura (como o palco italiano, que já coloca o espectador numa situação de observador, disposto de frente para um tablado). Mas esses elementos que encontramos no teatro não contêm “em si” a teatralidade. O teatro enquanto lugar onde se re- apresenta um acontecimento dispõe de uma quantidade de elementos que garantem a criação de uma representação que se dá a ver. Mas esses elementos não são próprios do teatro, podem ser encontrados na vida36, o que significa que no teatro esses elementos ganham significados

33 “A técnica geral da ilusão é, na verdade, transformar uma coisa em duas, exatamente como a técnica do ilusionista, que conta com o mesmo efeito de deslocamento e de duplicação da parte do espectador: enquanto se ocupa com a coisa, dirige seu olhar para outro lugar, para lá onde nada acontece” (ROSSET apud KOSOVSKI, 2001, p. 112).

34 “la teatralidad proyecta un tipo de mirada específica sobre el hecho de la representación. Esta se hace más consciente, y el espectador disfruta al ver de forma consciente el procedimiento de la representación”.

35 “el público acepta um acuerdo inicial, y acepta prolongar la situación jugando el juego, manteniendo ciertos limites que están implícitos en la situación”

36 O teatro carrega laços muito fortes com a realidade, porque os elementos de que se utiliza em cena são os mesmos que se encontram no mundo. A começar pela presença do ator, que remete invariavelmente ao homem em geral, e a tudo o que possa envolver a figura humana. Além disso, o teatro ocidental não parece ter para si signos pertencentes unicamente ao seu fenômeno, garantindo assim a sua especificidade. Pavis afirma que é impossível definir uma essência absoluta do teatro e que tal tentativa essencialista “nunca passa de uma opção estética e ideológica entre muitas outras” (1999: 143). Uma das dificuldades em delimitar o fazer teatral está no

novos, diferenciando-se de seu uso habitual. Isso significa também que esses elementos, em si, não “contém” teatralidade, quer dizer, a teatralidade não tem uma existência autônoma, não é uma qualidade inerente a um objeto ou pessoa; não é um dado empírico, algo que pré-existe no objeto. Também não está na situação fictícia, na ilusão da aparência. Se, por exemplo, em um espetáculo teatral, uma cadeira que estava do lado de uma vela pega fogo acidentalmente, a primeira reação do espectador é ficar em dúvida quanto à veracidade do acontecimento: fica sem reação porque não sabe se faz parte da cena ou não.

Do mesmo modo, a exemplo do teatro invisível de Augusto Boal, uma pessoa pode estar diante de uma representação encenada por atores em um metrô, que “fingem” estar tendo uma discussão, mas não ser capaz de reconhecer a teatralidade nem o teatro, porque crê que aquilo é a realidade. No primeiro exemplo, o espectador lê como ficcional um acontecimento real porque, ciente que estava assistindo a um espetáculo de teatro, atribuiu a todos os acontecimentos da cena um valor ilusório. No segundo exemplo, ao contrário, a pessoa reconhece como real um ato ficcional porque não percebia a ilusão da cena, prova de que a criação da ilusão, em si, não é suficiente para criar a teatralidade.

De fato a teatralidade, como pensa Féral, manifesta-se no olhar externo que identifica uma situação outra, não cotidiana, e confere a ela novas significações. A teatralidade se completa com a existência de um olhar externo, que se coloca como observador e que vê numa situação um ato de representação. A ilusão criada pelo ator na sua atuação só gera teatralidade se for reconhecida a sua ação como representação. Quando está em um espaço de representação, como um palco italiano, o ator já dispõe de uma situação prévia em que o espectador está preparado para reconhecer nele a máscara que confere às suas ações um caráter de ficção. Mas quando o ator atua em outro espaço, como a praça da cidade, precisa criar, ou através do seu próprio corpo e atuação, ou modificando o lugar, ou através do figurino, um espaço onde os transeuntes da rua possam reconhecer o que vêem como teatral e assim se colocarem como espectadores.

Em Cindy Sherman, como se instaura essa relação entre observado e observador, que estabelece a criação de uma realidade ficcional?

fato de ele se utilizar de um conjunto de elementos que não se constituem apenas no universo teatral, como por exemplo, a música, o canto, a cenografia, a luz e, mais recentemente, o vídeo. Além disso, por ser uma arte antropomórfica, ou seja, por ser o ser humano a medida do teatro, a cena opera como um duplo: “desenvolvido basicamente pela duplicação do ser humano pelo ator, do espaço físico pela cena, da trama da vida pela trama do drama” (GUINSBURG, 2001, p. 7).

O problema entre realidade e representação acompanha as reflexões sobre o fotográfico37. O retrato fotográfico, como foi dito no capítulo 1, é pensado enquanto construção artificial e ficcional, porque põe em crise a noção de identidade pelo paralelo que cria entre personalidade e fisionomia, favorecendo o “tipo” em detrimento do sujeito (que remete ao corpo no seu sentido biológico). Para Annateresa Fabris (2004), o retrato fotográfico revela a identidade como uma construção baseada em normas sociais específicas, isso porque a pessoa fotografada tende a estar inserida numa situação ideal, exprimindo-se através do corpo transformado pelo uso de diversos artifícios, de modo que o resultado da fotografia é a construção de uma “identidade totalmente conciliada com o ideal social de si mesmo” (FHÉLINE apud FABRIS, 2004, p. 15).

Sherman, em suas fotos, trabalha no sentido de exacerbar essa característica do retrato fotográfico, e faz isso denunciando a existência de um observador, para o qual ela atua. É marcante, nos auto-retratos de Sherman, as diferentes personagens que a artista cria e “assume” através da transformação do seu corpo: personagens que são “captadas em poses deliberadas, como se ela [Sherman] estivesse olhando para a câmera ou interagindo com alguma presença no espaço delimitado pela composição” (FABRIS, 2004, p. 60). Esta referência da artista, indiciada pelas suas atitudes e poses, e que sugestionam a presença de outra pessoa, faz retornar para si o olhar de um suposto observador que a fita. Nas figuras 1 (p. 22), 2 e 3 (p. 23) e 7 (p. 24) esta relação com um suposto observador se faz bastante clara, realçando o papel que a artista assume de “imagem para ser vista”.

Segundo Fabris, “colocar-se em pose significa inscrever-se num sistema simbólico para o qual são igualmente importantes o partido compositivo, a gestualidade corporal e a vestimenta usada para a ocasião” (p. 36), o que pressupõe uma gestualidade estudada, previamente concebida e elaborada da pessoa fotografada, que procura “oferecer à objetiva a melhor imagem de si, isto é, uma imagem definida de antemão, a partir de um conjunto de normas das quais faz parte a percepção do próprio eu social” (p. 36).

A foto # 6 (fig. 14), de Untitled Film Stills, mostra a imagem de uma mulher (Sherman) deitada em uma cama, com a camisola aberta, usando um sutiã preto (enorme) e uma calcinha branca (enorme). A mulher, apesar de estar olhando para o teto, não parece fitar nada em específico, e parece esvaziada de subjetividade. Ela está feliz, está triste? O espelho que Sherman segura na mão direita, com a face virada para a cama, indica que ela checou a sua pose, a pesquisou previamente. O corpo, amostra para a câmera, revela uma posição

37 Rosalind Krauss esclarece que, diferentemente do termo fotografia, o fotográfico “não remete à fotografia como objeto de pesquisa, mas apresenta o que poderíamos chamar de objeto teórico” (2002, p. 14).

montada, com o braço esquerdo dobrado e a mão levemente encaixada entre o ombro e o rosto de Sherman. A pose, aliada a sua expressão, fazem ela parecer uma boneca sem vida.

Sherman parece recriar, em imagem (e de forma exagerada) a sensação que Roland Barthes descreve sobre o sentimento de ser fotografado, em A Câmara Clara:

Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a ‘posar’, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. Essa transformação é ativa: sinto que a Fotografia cria meu corpo ou o mortifica, a seu bel-prazer (...). Eu queria, em suma, que minha imagem, móbil, sacudida entre mil fotos variáveis, ao sabor das situações, das idades, coincidisse sempre com meu ‘eu’ (profundo, como é sabido); mas é o contrário que é preciso dizer: sou ‘eu’ que não coincido jamais com minha imagem; pois é a imagem que é pesada, imóvel, obstinada (por isso a sociedade se apóia nela), e sou ‘eu’ que sou leve, dividido, disperso e que, como um ludião, não fico no lugar, agitando-me em meu frasco: ah, se ao menos a Fotografia pudesse me dar um corpo neutro, anatômico, um corpo que nada signifique! Infelizmente, estou condenado pela Fotografia, que pensa agir bem, a ter sempre uma cara: meu corpo jamais encontra seu grau zero (...) (1984, p. 23 e 24).

No caso de Sherman, as poses são produzidas pela artista que assume diferentes personagens, de modo que as roupas, acessórios, cenários, são realçados enquanto artifício. É

possível observar que se trata sempre da mesma pessoa, por causa das suas características físicas (seu corpo), mas ela aparece transformada pelo cabelo, que muda de tonalidade e corte; pelas roupas e acessórios, que imprimem um estatuto social específico; e pela maquiagem, que modifica (realça ou apaga) algumas características próprias de seu rosto. A impressão causada é a de que aquela mulher, diante da câmera, aparece sempre disfarçada.

O disfarce38, inclusive, como esclarece Oscar Cornago, traz consigo a noção de teatralidade, porque “ninguém se disfarça se não vai ser visto por outra pessoa” (2005, p. 5, trad. nossa)39. A teatralidade, como já foi mencionado, requer a presença de um observador, mas Cornago atenta para o fato de que esse observador faz parte da construção da teatralidade, e não apenas a observa:

É certo que todo fenômeno estético, portanto qualquer obra artística, está construída pensando no efeito que vai causar no seu receptor, mas no caso da teatralidade não apenas se pensa em função de seu efeito no outro, senão que não existe como uma realidade fora do momento em que alguém está olhando; quando deixa de olhar, deixará de haver teatralidade (2005, p. 4, trad. nossa)40.

Poderia-se questionar a existência da teatralidade nos trabalhos de Sherman, uma vez que não se trata de um evento “ao vivo”. A fotografia é um objeto palpável que se apresenta mesmo que não exista um observador. Mas, segundo Féral, a teatralidade não está determinada pelo tempo. Como exemplo, a autora cita o Teatro Invisível, de Augusto Boal, no qual acontece uma discussão encenada por atores num metrô, sobre a liberação ou não do fumo em ambientes fechados. O espectador, segundo Féral, a princípio não identificou o teatro nem a teatralidade, porque acreditou estar vendo uma discussão “real”. Apenas depois de terminada a cena, quando este mesmo espectador viu os atores conversando e discutindo sobre a cena, é que percebeu ter estado diante de uma representação teatral, de modo que foi capaz de conferir teatralidade posteriormente ao evento. Se o teatro exige a presença ao vivo do espectador e do observador, a teatralidade por outro lado não precisa disso, porque “o