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3 1 LABORATÓRIO PRÁTICO: COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO (ENTRE O GESTO FIGURATIVO E O ABSTRATO)

1A (UMA): COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO E MONTAGEM

II. 3 1 LABORATÓRIO PRÁTICO: COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO (ENTRE O GESTO FIGURATIVO E O ABSTRATO)

Tanto a coreografia apresentada “ao vivo” para o espectador, como a partitura elaborada para ser projetada foi criada a partir dos estímulos dados pela pesquisa laboratorial sobre as figuras criadas. Denomino por figuras as futuras personagens que se apresentarão diante do espectador. Essa separação se faz importante para valorizar o papel que o espectador tem para a “constituição” da personagem. Nos auto-retratos de Sherman, a artista esclarece que não se ocupou em se aprofundar nas personagens criadas, no sentido de imaginar e construir uma “interioridade” para essas personalidades imaginárias. Sherman, nos seus tempos de universidade e nos primeiros anos em que se mudou para Nova York, costumava ir a festas, vernissages e trabalho (em 1997 era secretária da galeria de arte Artists Space) “travestida”. Podia aparecer grávida para ir trabalhar, ou vestida a caráter (fantasiada de secretária), ou ir a festas como Rose Scalisi:

Outra vez eu me transformei em Rose Scalisi, uma invenção de Robert [Robert Longo, seu então namorado] e um casal de amigos dele. Ela era obviamente uma cópia de Rrose Sélavy de Duchamp, e um tipo de mascote deles. Eles tinham batizado uma velha cabeça de manequim em nome dela e eu me tornei a cabeça. Eu ainda tenho isso e uso para focar, coloco no tripé como meu dublê. (SHERMAN, 2003, p. 8) 77.

77 “Another time I turned into Rose Scalisi, na invention of Robert’s and a couple of his friends. She was obviously a takeoff on Duchamp’s Rrose Sélavy, and kind of their mascot. They’d chistened and old manikin head in her name and I became that head. I still have it and use it for focusing, setting it on a tripod as my stand- in”.

Mas, segundo a artista, ela não estava interpretando uma personagem, porque “não estava mantendo uma personagem”, mas apenas “vestindo uma roupa e saindo com ela”78. Essa questão se torna mais clara ao entrar numa discussão levantada, no teatro, sobre a diferença entre interpretar e representar.

Renato Ferracini, ator do Lume, propõe uma diferença entre interpretar e representar, limitando os termos ao que concerne à prática do ator. Interpretar sugere uma tradução, por parte do ator, do que está escrito no texto para a materialidade da cena, e também evoca uma prática de ator que busca uma identificação psíquica com a personagem. Nesses termos, o ator permanece entre a personagem e o espectador, remontando um teatro ligado intimamente ao texto literário. Já a representação não prevê uma prática de ator que parte do texto literário, de modo que o ator “busca o material para seu trabalho em sua própria pessoa” (2001, p. 43). O ator que representa, em cena, “ilude” o espectador, pois não está interpretando a personagem que o espectador “crê” ver, e sim realizando ações que “estão ‘vestidas’ com um figurino, dentro de um cenário e um contexto” (2001, p. 44).

Para explicar o modo de trabalho do ator que não interpreta, mas representa, Ferracini cita a cena do “Lobisomem”, incluída no espetáculo Contadores de História, do Lume:

O ator, em nenhum momento, enquanto faz a cena, pensa ou age como lobisomem, mas está realizando uma seqüência de ações físicas e vocais orgânicas, nascidas de um trabalho com objetos (bastão e tecidos). Essas ações físicas e vocais, independentes entre si, foram montadas para fazer com que o espectador veja um lobisomem, dentro do contexto do espetáculo; mas o ator está, simplesmente, executando as ações vivas encontradas após uma busca interna em sua pessoa (...). As imagens e associações que essas ações têm para o ator não interessam, desde que elas sejam vivas e pulsantes. Elas independem do contexto proposto (2001, p. 44-45).

Do mesmo modo, Sherman, diante da câmera fotográfica, não pensa e age como se fosse outra pessoa, imaginando para si uma outra “personalidade”. Ela posa para a câmera “vestida” com um figurino, dentro de um cenário e um contexto, próximo ao ator que representa, como descrito acima. De modo que a personagem se delineia de um conjunto de signos, dados pelo figurino, o cenário e a pose. Mas em Sherman esses signos são justamente o campo de investigação de sua obra, no sentido de que, como já foi dito, a artista chama a atenção para esses signos que constroem as suas identidades, já que em cada fotografia se apresenta assumindo identidades diversas. Diferentemente do ator descrito por Ferracini, que procura na própria pessoa a base investigativa para a construção de uma ação crível, viva e

78 “(...) Sherman never considered these outhings ‘performances’ in na artistic sense because she was ‘not maintaining a character’ but simply ‘getting dressed up to go out” (CRUZ, 1997, p. 2)

pulsante, Sherman procura nos materiais externos a ela (roupas, perucas, etc.) a base investigativa para a construção de um corpo/identidade ficcional.

As figuras, então, nesta pesquisa, não são tratadas como personagens, mas dizem

respeito aos acessórios e roupas que “vestem” o corpo da atriz-dançarina. Dessa forma, o processo de elaboração das figuras se deu a partir de roupas, adereços e objetos que fui encontrando em minhas andanças por brechós, lojas de roupas “baratas”, lojas de festas, e também nas “visitas” aos armários de amigos, de amigos de amigos, da família e à rouparia do CEART/UDESC.

Não tinha muita certeza sobre o que estava procurando especificamente, mas me interessava em construir figuras femininas bem características, como a mulher do interior, a mulher “gostosa”, a dona de casa, a mulher “misteriosa”, a feia, a menina, a velha, etc. Porém, não me interessava mandar fazer roupas específicas, justamente porque não queria que a roupa tivesse esse caráter especial e específico de figurino teatral, com saia e blusa do mesmo tecido, com a cor das peças combinando (feitas uma para a outra) de modo a construir figuras

fakes de “dona de casa”, ou de “mulher gostosa”. Era muito importante que as figuras

“surgissem” de restos abandonados pelas pessoas, peças de roupas que já tiveram história, que foram de outras mulheres, usadas em situações desconhecidas, ou também roupas herdadas da família. Esse jogo de montar e desmontar, de juntar uma blusa com uma saia, depois manter a saia, mas trocar a blusa, tinha que estar desde o início do processo, até mesmo para dar forma a figuras que parecessem “semelhantes” (reconhecíveis) perante os olhos do espectador, mas que ao mesmo tempo fossem “diferentes”, por serem fruto de junções e sobreposições de peças que respeitavam a minha escolha (o meu olhar). Também procurei perucas e acessórios, mas como são relativamente mais caros, fiquei limitada a poucas perucas (sintéticas) e também a poucos sapatos, bijuterias, etc.

Dentre as várias combinações de peças de roupas e acessórios que fui montando em frente ao espelho, selecionei nove figuras, as quais denominei: 1 – jardineira (fig. 22); 2 – capuz vermelho (fig. 23); 3 – vovó (fig. 24); 4 – dark balada (fig. 25); 5 – mulher tela (fig. 26); 6 – expressionista (fig. 27); 7 – Pina Baush (fig. 28); 8 – dona de casa (fig. 29); 9 – morte (fig. 30).

Propus-me a pesquisar em cena algumas questões a partir das figuras criadas. Essas questões se relacionam tanto ao como a roupa influencia os movimentos elaborados pelo artista, como à influência da roupa sobre a leitura posterior feita pelo espectador diante da partitura corporal criada pelo artista. Os movimentos foram pensados para serem desenvolvidos a partir de uma oscilação entre gestos figurativos e abstratos.

Fig. 22 Fig. 23

Fig. 26

Fig. 28 Fig. 29

Conforme assinala Fernandes, “os gestos são movimentos corporais realizados na vida diária ou no palco” (2000, p. 23). No cotidiano, os gestos são parte de uma linguagem do dia a dia que se associa a determinadas atividades e funções, diferente do palco, onde os gestos ganham uma função estética, são estilizados e tecnicamente estruturados. Quando me referir a gestos figurativos, ou movimentos cotidianos, quero dizer os movimentos realizados no dia-a- dia, gestos habituais, “automáticos”, espontâneos, funcionais e utilitários que exprimem significações precisas, como, por exemplo, um adeus (abanar as mãos), ou até ações simples, como sentar (para descansar), espirrar (reação alérgica), olhar (para alguém que chama). “Na vida comum, submetida a múltiplos sistemas de codificação dos gestos (...), os gestos tornam- se inteiramente transparentes, traduzíveis em significações gerais” (GIL, 2005, p. 75).

Já os gestos abstratos respeitam uma lógica diversa, pautada na criação de sensações cinestésicas, através da estruturação técnica de um gestual ocupado com ritmos, cadências, pesos e contrapesos, dínamo-ritmos, etc.

Transcrevo um trecho extenso do livro Movimento Total: o corpo e a dança, do filósofo português José Gil, que me parece descrever de forma clara a “zona” em que se encontra o gesto “dançado”:

Pensemos em alguns movimentos da vida real, por exemplo, “inclinar-se para apanhar um objeto” ou “afastar-se de um projétil”. Entre a primeira e a última posição do corpo (que têm significações precisas articuladas pelas expressões “estar de pé”, “inclinar-se”, “afastar-se”), tem lugar um número indefinido de posições intermédias que não significam nada: não são mais que meios para chegar a certos fins. Retiremos de cada conjunto os movimentos significativos do começo e do fim; consideremos as seqüências que restam em si próprias: obtêm-se movimentos de

transição que possuem um sentido, embora nos seja impossível significá-lo com

palavras. São movimentos que mostram as maneiras de agir, as modalidades da ação quando são efetuadas por corpos. Para apanhar um objeto, temos de nos inclinar, quer dizer, dobrar o corpo deixando-o cair ou forçando-o para baixo; para nos afastarmos, temos de deslocar a cabeça enquanto olhamos para o projétil, etc. Todos estes movimentos que nada significam de preciso a não ser quando se integram em seqüências significativas, finalizadas, têm contudo um sentido imediatamente apreensível: dobrar o corpo para diante, abandonar a cabeça à força da gravidade extraem o seu sentido do fato de pertencerem a uma espécie de “linguagem do sentido”, porque são movimentos do próprio sentido. “Abandonar-se ao peso” implica uma certa inflexão, um certo deslizar do corpo que faz sentido em múltiplas esferas de movimento (2005, p. 90-91).

Pode-se, nesses movimentos de transição, captar “em parte” o que seria o gesto

abstrato: desprovidos de sentido definido, incapaz de serem traduzidos na linguagem articulada, mas que possuem um sentido que é próprio.

Para os ensaios, fiz um esquema prévio, o qual dividi em fases de trabalho, a fim de orientar a pesquisa prática. Parti de algumas idéias sobre modos possíveis de trabalhar e

pesquisar os movimentos (figurativos e abstratos), tendo em vista estímulos dados pelas

figuras criadas.