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CINDY SHERMAN: AUTO-RETRATO E TEATRALIDADE

I. 2 TEATRALIDADE NOS AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN

I. 2.3 JOGO E SIMULACRO

Quem é a verdadeira Cindy Sherman? Importa saber quem é a verdadeira Cindy Sherman?

Catherine Morris

Na série Bus Riders, seqüência de 15 fotos produzida em 1976 quando ainda freqüentava a Universidade de Artes de Buffalo, Sherman dá forma a personagens inspiradas em pessoas que observa no transporte urbano. Escolhi aqui quatro fotos (figura 17, 18, 19 e 20), tentando ressaltar as diferenças de personagens que a artista cria. Nessas fotos percebe-se

46 Para Mary Russo (2000), há dois principais pontos de vista que dominam as discussões sobre o grotesco na contemporaneidade. Um é a partir do grotesco cômico, associado ao carnaval e festividades medievais e renascentistas, através do estudo de Mikhail Bakhtin; e o outro é através do grotesco como estranho e excepcional, através do estudo de Wolfgang Kayser, influenciado pelo ensaio de Freud intitulado “O estranho”. Porém, apesar de divergentes, as duas categorias de grotesco se apóiam sobre o corpo, que transgride normas estabelecidas (de beleza, gênero, higiene, etc.), correndo sérios riscos por isso.

que Sherman não está preocupada em esconder o dispositivo da máquina, nem em esconder os figurinos que aparecem no chão no canto da foto; seu interesse é registrar as suas personagens, e as transformações que a artista confere ao próprio corpo. Essas transformações remetem à infância, e às brincadeiras de disfarce.

Fig. 17 Fig. 18

Sem querer forçar comparações, me reporto a Evreinov e ao “instinto de teatralidade”, não para “provar” a qualquer custo que existe teatralidade nas fotos, mas para chamar atenção para o lúdico e para aquele aspecto da criação que escapa à compreensão racional: o prazer de jogar. Sherman, acerca da série Untitled Film Stills, observa:

Eu não pensei no que estava fazendo como político: para mim era uma forma de fazer o melhor do que eu gostava de fazer intimamente, que era me fantasiar. Mesmo quando eu era muito nova eu sempre tinha um baú de vestidos de festas que outras pessoas não usavam mais, então eu imagino que eu só continuei. Eu não pensava em ter uma boa aparência; brincando com as minhas sobrinhas, nós colávamos nossos rostos para parecermos monstros horríveis. Não se tratava de se fantasiar para parecer como a mãe, ou Doris Day, era apenas divertido parecer diferente. Não tinha nada a ver com insatisfação, ou fantasiar sobre ser outra pessoa, era instintivo (SHERMAN, 2003, p. 12, trad. nossa)47.

Também Eleanor Heartney, no livro Pós-modernismo (2002), propõe que os trabalhos de Sherman, antes de serem considerados como crítica feminista ao mercado cinematográfico, como representação do ego descentrado na pós-modernidade etc., sejam percebidos como uma brincadeira, como um jogo:

Todas essas interpretações [cito algumas acima] tinham uma tendência a ver Sherman como uma polemista implacável, assumindo os males do patriarcado, consumismo e fragmentação capitalista. Mas deixaram de mencionar o prazer óbvio que Sherman sentiu ao fazer essas imagens e que o espectador percebe ao vê-las. É verdade que Sherman supôs uma série de papéis baseados na mídia, mas fez isso como uma forma de brincadeira, adotando a capacidade humana da fantasia sem associá-la com a negação da individualidade (2002, p. 59).

Féral, refletindo sobre a instauração da teatralidade no espetáculo teatral, considera o jogo como fundamental para a teatralidade do ato teatral, pois é o jogo que institui as regras que irão organizar o sentido criado na cena. Féral parte da definição de Huizinga, para o qual jogo é

uma ação livre, sentida como fictícia e situada fora da vida corrente, capaz, não obstante, de absorver totalmente o jogador; uma ação despojada de todo interesse material e de toda utilidade; que se realiza em um tempo e em um espaço expressamente circunscrito, que evoluciona com ordem e segundo regras dadas (apud FÉRAL, 2003, p. 101, trad. nossa)48.

47 “I didn’t think of what I was doing as political: to me it was a way to make the best out of what I liked to do privately, which was dress up. Even when I was very young, I’d always had a trunkful of someone’s discarded prom dresses, so I guess I just kept going. I didn’t think in terms of trying to look good; playing with my nieces we would tape up our faces to look like hideous monsters. It wasn’t about dressing up to look like mom, or Doris Day, it was just fun to look different. It had nothing to do with dissatisfaction, or fantasizing about being another person; it was instinctive”.

O jogo reporta ao “deslocamento” da vida real, à criação de universos próprios de valores temporários, “na medida em que transfere os participantes para um mundo diferente” (HUIZINGA apud KOSOVSKI, 2001, p. 35). Ou seja, o jogo referencia uma ação livre, percebida como fictícia, ditada por regras e convenções próprias e é o modo pelo qual o homem “experiencia” também suas interpretações e concepções de mundo:

A perspectiva de passagem para outra realidade, que não a habitual, permitida pelo jogo, através da interiorização da representação, faculta ao homem colocar-se em circunstâncias que não estão presentes fisicamente para os sentidos, gerando ao longo da própria existência humana, através deste exercitamento imaginário, o desenvolvimento do pensamento como criador de hipóteses sobre o futuro, reconstituidor do passado e planejador do futuro (KOSOVSKI, 2001, p. 37).

Ressalto aqui o aspecto lúdico das fotografias de Sherman porque acredito que este aspecto é o fator que melhor a aproxima da prática teatral, e também é a base, ou a origem da qual seu trabalho evolui e nascem todas as interpretações subseqüentes. Mauer (2005) propõe que Sherman, ao se travestir em diversas personagens diferentes, assume o papel da aprendiz, que experimenta no próprio corpo as diversas possibilidades de “ser” que a sua cultura oferece (ou às vezes impõe) para ela. Sherman, para Mauer, está jogando, pesquisando com os códigos produzidos pela cultura, e questionando sobre as possibilidades (ou impossibilidades) de ser Sherman para além desses códigos. Ao fazer isso, ela chama atenção para os elementos que constroem as identidades, para o jogo de travestimento, e não apenas para a personagem em si que ela cria.

Minha hipótese é de que o jogo (nos auto-retratos de Sherman) não tenta “esconder- se” atrás da personagem (das identidades que Sherman constrói) mas vem em primeiro plano, e torna-se o seu próprio sentido, próximo do que Denis Guenoun, no livro O Teatro é

necessário?, (2004) defende como característica marcante do teatro contemporâneo. Para o

autor, o sentido do jogo, na cena, é o próprio jogo. O que significa dizer que se trata de um jogo que continua consciente de si mesmo e no qual o ator não procura fazer crer, diante do espectador, que “é” a personagem, nem mesmo aborda a personagem como um “ente” o qual procura identificar-se49. De modo que a personagem deixa de ter um lugar de destaque na

48 “una acción libre, sentida como ficticia y situada fuera de la vida corriente, capaz sin embargo de absover totalmente al jugador; una acción despojada de todo interés material y de toda utilidad; que se realiza en un tiempo y en un espacio expresamente circunscriptos, que evoluciona con orden y según reglas dadas”.

49 Segundo Pavis, identificação é o “processo de ilusão do espectador que imagina ser a personagem representada (ou o ator que entra totalmente ‘na pele’ da personagem). A identificação com o herói é um

representação teatral. O espectador não vai ao teatro para acompanhar apenas o desenrolar de uma narrativa, ver o conflito entre as personagens, identificar-se com elas. O espectador vai, nas palavras do autor, “ver a teatralidade em sua operação própria” (2004, p. 140), vai procurar no palco a encenação mesma, “a produção da exibição enquanto exibição”. As pessoas não vão ao teatro acompanhar unicamente a história de Hamlet, mas ver de que maneira determinado grupo constrói a narrativa. O prazer, no espectador, neste caso, surge do fato de poder ver o que o ator é capaz de fazer. Para Guenoun, ainda se produzem, na cena, efeitos de identificação, mas são efeitos passageiros e fugidios. Na cena, “formam-se

identificações menores, por fragmentos: fios, franjas, vestígios de uma experiência antiga que

retorna aqui e ali (...). Mas o teatro não pode mais se pensar tendo a categoria da identificação

com o personagem como ponto determinante da análise”. (2004, p. 98).

Sherman chama de personagens as identidades que assume nas fotografias, porém não se considera atriz, nem o que faz como performance (CRUZ, 1997). Isso porque, segundo Sherman, ela não está representando no sentido de criar uma personagem com características psicológicas definidas, com “história” (passado), ou procurando identificar-se e transmudar-se em entidade psicológica e moral semelhante aos outros homens. Por outro lado, Sherman diz que as personagens e as situações de suas fotografias não têm nada que ver com sua vida pessoal. Ela não está retratando fatos isolados da sua vida, capturando nos auto-retratos sentimentos “verdadeiros” que vivencia no momento da foto por motivos de ordem pessoal (porque brigou com alguém, etc.).

A foto #27 (fig. 18), da série Untilted Film Stills, mostra Sherman com lágrimas nos olhos e a maquiagem borrada, num lugar que pode ser um bar, no qual ela segura com a mão direita um cigarro, que está próximo de um copo com bebida. Percebe-se ali uma forte emoção expressada por Sherman. Mas é ela que está chorando, (a artista Sherman) ou sua personagem (a artista Sherman representando)? Sobre essa foto, comenta:

uma foto que eu chamei de ‘garota chorando’ (#27) foi uma das poucas que tiveram uma forte e real emoção, embora a sua face seja sem expressão (...). Nada nessa imagem e em nenhuma das outras foram relatos de coisas que aconteceram na minha vida pessoal (...). Eu coloquei um espelho do lado da câmera fotográfica e enquanto eu estava na frente da câmera, olhava para o meu reflexo no espelho dizendo, ‘eu te odeio, eu te odeio’. (SHERMAN, 2003, p. 8, trad. nossa)50.

fenômeno que têm raízes profundas no inconsciente. Este prazer provém, segundo Freud, do reconhecimento catártico do ego, mas também de distinguir-se dele (denegação)”. (1999, p. 200).

50 “The one I call the ‘crying girl (#27) is one of the few that has real strong emotion, although her face is blank (…). Neither this image nor any other was related to things happening in my personal life (…). I set up a oneway

Inserida essa foto dentro do conjunto de outras fotos, que apresentam Sherman em diferentes situações e roupas, “garota chorando” passa a ser inscrita como personagem, quer dizer, como ser fictício. Guénoun, perguntando-se sobre qual o modo de existência, ou qual o plano de realidade em que a personagem de teatro se configura, esclarece, de maneira bem simplificada, que a personagem existe na imaginação tanto do ator como do espectador, já que sua existência é imaterial. O que a cena dá a ver, no palco (por exemplo), é o corpo real (concreto) do ator, que, através de suas ações físicas e vocais, inseridas em uma narrativa, “provocam no pensamento ‘do’ espectador uma re-figuração imaginária, análoga ou, ao menos, compatível, com a que habitava o ator” (2004, p. 101). Já Robert Abirached, no livro

La crisis del personaje en el teatro moderno, esclarece que no teatro a personagem se

apresenta como uma soma de significantes cujo significado deve ser elaborado pelo espectador (1997, p. 33). Esses significantes, nos auto-retratos de Sherman, são roupas, gestos, poses, cenários, luz, ângulo da câmera, etc., que, combinados, fazem com que a personagem apareça. Segundo Abirached, “nada proíbe supor uma interioridade à personagem (...), mas essa operação só pode ser realizada por fora, pois apenas percebemos deste ‘eu’

mirror in front of the camera so that I was facing the camera but looking into a mirror. I was looking at my reflection saying. ‘I hate you, I hate you’”.

nada mais que suas manifestações, unidas entre si por um fio condutor” (1997, p. 36, trad. nossa)51.

Voltarei mais tarde a refletir sobre a questão da personagem. Por hora, o que procuro ressaltar é que as identidades de Sherman, nos auto-retratos, são lidas como personagens, na medida que em cada fotografia desmente a identidade apresentada na outra, inscrevendo a presença de Sherman em uma situação de jogo, de atuação, pela qual ela não esconde que joga, que atua. Pois “o que é atuar, senão aceitar de entrada a ambigüidade de uma metamorfose que furta o corpo de si mesmo sem confundi-lo com a imagem na qual pretende transformar-se?” (ABIRACHED, 1997, p. 73, trad. nossa)52. Sherman, ao mesmo tempo é, e não é, personagem. Pois a personagem não existe enquanto pessoa concreta, mas como

imaginário. Sherman não se apresenta simplesmente como ela mesma (o ato de ser fotografado já inscreve a pessoa fotografada em uma situação de representação, tal como sugere Barthes), e, contudo, a artista não é a personagem (sabe-se que ela não é a personagem justamente porque se está ciente de que o que a imagem apresenta é um disfarce de Sherman). Mas então o que está por trás do disfarce? O jogo. Para a teatralidade, a “sua verdade é seu ser como jogo, fingimento e dissimulação, e sua realidade não é a realidade do que é representado, mas a realidade do processo de representação” (CORNAGO, 2005, p. 7, trad. nossa)53.

Oscar Cornago usa a expressão distância de teatralidade para falar de uma dinâmica própria da teatralidade que torna visível o mecanismo de fingimento e engano presente em um evento. Para o autor, o fundamental nessa dinâmica de teatralidade é o “sistema de tensões gerado pela distância de teatralidade que se abre entre o que alguém vê, por um lado, e o que alguém percebe como escondido por detrás do que está vendo, por outro” (2005, p. 7, trad. nossa)54. Essa distância abre um vazio entre o que permanece na superfície, a aparência, e o que permanece oculto, mas que se intui, sendo que a teatralidade se articula entre este vazio.

51 “Nada prohíbe suponer una interioridad al personaje, ni proceder a una reconstrución de su yo, pero esta operación no puede ser realizada más que desde fuera, puesto que no percibimos de ese yo nada más que sus manifestaciones, unidas entre sí por un hilo conductor”.

52 “qué es actuar sino aceptar de entrada la ambiguedad de uma metamorfosis que hurta al cuerpo a sí mismo sino confundir-lo con la imagen en la cual pretende transformarse?”.

53 “Su verdad es su ser como juego, fingimiento y disimulo, y su realidad no es la realidad de lo representado, sino la realidad del proceso de representación”.

54 “sistema de tensiones generado por esta distancia de teatralidad que se abre entre lo que uno vê, por un lado, y lo que uno percibe como escondido detrás de lo que está viendo, por otro”

Dessa forma, a teatralidade valoriza o processo que organiza as representações; ela “força” o olhar sobre o mecanismo da representação, revelando o jogo da simulação e fingimento:

Quando falamos de representações pensamos nos produtos representados, nas imagens ou cenas construídas, mas quando aplicamos um enfoque teatral o que se manifesta é o caráter processual deste mecanismo, seu funcionamento externo, e é aí onde tem que encontrar seu sentido (CORNAGO, 2005, p. 7, trad. nossa)55.

Para Cornago a teatralidade envolve um procedimento no qual signos são tirados de seu contexto real e reinseridos em um plano simbólico, no qual adquire uma pluralidade de significados. Por isso afirma que a teatralidade está na base de qualquer operação artística, mesmo que seu funcionamento não seja explicitado. Ampliando para o cotidiano, uma pessoa pode observar uma situação “real” mas inserir o fato numa dimensão simbólica, porque “seu olhar é capaz de detectar atrás dos gestos, movimentos e entonações que lhe chegam [...], determinado código com que se constrói um sentido determinado” (2005, p. 8)56. Para ele a teatralidade projeta um tipo de olhar específico sobre uma situação real de modo que se valorizam os procedimentos e formas que compõem essa situação.

Sherman, ao longo de sua trajetória artística, teve como referência para os seus trabalhos, entre outros, os filmes europeus e de suspense dos anos 50, os programas de televisão dos anos 70, as fotografias de revistas de moda e de revistas pornográficas, os contos de fadas e os quadros de grandes nomes da pintura mundial, como Botticelli e Caravaggio. Mas, como a própria artista esclarece, seu objetivo nunca foi copiar estas referências, ou se espelhar em alguma imagem em específico, mas em características que observava presentes no conjunto do objeto de sua pesquisa.

A atitude de Sherman, frente as suas criações, portanto, não era mimética, no sentido de uma cópia idêntica, ou da tentativa de realizar uma cópia tão idêntica que confundisse o apreciador de suas fotografias a tal ponto que este pensasse estar de fato diante de uma foto publicitária ou de um still de um filme específico que já tivesse visto. Tão pouco Sherman se interessava em dar continuidade a uma mesma personagem, buscando construir uma narrativa seqüencial e coerente de modo a permitir que quem olhasse suas fotografias se deparasse diante da biografia de uma personagem. Pelo contrário, suas fotografias rompem com um

55 “Cuando hablamos de representaciones pensamos en los productos representados, en las imágenes o escenas construidas, pero cuando aplicamos un enfoque teatral lo que se pone de manifiesto es el carácter procesual de este mecanismo, su funcionamiento interno, y es ahí donde hay que encontrar su sentido”.

56 “Su mirada es capaz de detectar tras los gestos, movimientos y entonaciones que le llegan (...) un determinado código con el que se construye un sentido determinado”.

sentido de continuidade e apenas sugerem narrativas, deixando o espectador de suas fotos livre para fazer suas próprias associações.

Considero, portanto, que a aproximação da obra de Sherman ao universo do teatro não se dá pela imitação de um modelo, ou porque a artista finge ser alguém que não é, mas pelo jogo, no qual a personagem se inscreve como uma “ferramenta” da qual Sherman se serve. Pois, acreditando que suas fotografias não devem ser consideradas isoladamente, mas inseridas dentro de uma série na qual a artista assume diferentes personagens, o que marca a sua obra é o jogo de transformação e criação de personagens. O observador de suas fotos é levado ao mesmo tempo a olhar a personagem representada e a reconhecer o ato do disfarce e do travestimento: a ação representada e a ação de representar uma ação representada.

***

Féral chama atenção para um aspecto muito importante do teatro, que já se apresentava formulado (e que depois teve várias releituras) na Grécia Antiga, e que é, portanto, presente desde as origens no teatro ocidental. Trata-se da mímesis, formulada por Aristóteles enquanto elemento fundamental da tragédia grega. De acordo com Feral, a

mímesis é responsável pela criação da ilusão no teatro, e está intimamente relacionada à

teatralidade. Isso porque as duas noções estão invariavelmente determinadas pelas suas relações com a realidade e com a representação.

A mímesis passou, após a releitura renascentista, a ser traduzida e entendida como cópia da realidade, imitação de um original. Mas seu conceito é mais amplo, de modo que se pode falar de uma mímesis passiva e de uma mímesis ativa (FERAL, 2003). Uma peça naturalista, que recria uma situação cotidiana, é um bom exemplo de teatro que se vale da

mímesis passiva. Esta faz alusão ao seu significado comum, que é a imitação da realidade. No

teatro, essa mímesis passiva permite que o espectador perceba na cena a realização de uma representação dada por uma duplicação que tem por modelo uma realidade que este mesmo espectador reconhece, de modo que pode fazer relações constantes entre a representação que assiste e o modelo tirado da realidade social.

Já a mímesis ativa opera de outra maneira, pois não toma a realidade como modelo a ser seguido. Aristóteles usa mais freqüentemente esta acepção do termo na sua Poética, que seria “representar no sentido de dar a ver, apresentar diante do olhar, mostrar, fabricar, exibir para os olhos” (GUENOUN, 2004, p. 21). A mímesis ativa opera na expressão livre da

realidade, já que, nos termos de Aristóteles, “a arte imita a natureza, mas a arte leva até o fim o que a natureza é incapaz de fazer” (apud FERAL, 2003, p. 28, trad. nossa)57.

Denis Guenoun (2004) propõe uma análise sobre a Poética de Aristóteles a fim de elucidar um ponto de vista novo sobre a questão da mímesis. O autor traduz mímesis como representação, e não imitação, e, partindo da afirmação de Aristóteles acerca da existência da representação estar imbricada a uma tendência natural do homem de representar e, ao mesmo tempo, sentir prazer ao observar uma representação, Guenoun propõe que a mímesis se desdobra entre a ação representada e a ação de representar uma ação, e que o prazer de olhar esta ação de representar uma ação representada surge da formação e constituição de um conhecimento novo, ou seja, do prazer de aprender.

De acordo com Guenoun, a ação na tragédia para Aristóteles é a operação de agir, ato