• Nenhum resultado encontrado

AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN E TEATRALIDADE UM ESTUDO PARA A COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO E MONTAGEM DA PERFORMANCE “1A” (UMA)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN E TEATRALIDADE UM ESTUDO PARA A COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO E MONTAGEM DA PERFORMANCE “1A” (UMA)"

Copied!
123
0
0

Texto

(1)

AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN E TEATRALIDADE

UM ESTUDO PARA A COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO E

MONTAGEM DA PERFORMANCE “1A” (UMA)

(2)

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

CENTRO DE ARTES – CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO (MESTRADO)

MONICA SIEDLER

AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN E TEATRALIDADE

UM ESTUDO PARA A COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO E

MONTAGEM DA PERFORMANCE “1A” (UMA)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro (Mestrado) do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Júnior.

(3)

MONICA SIEDLER

AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN E TEATRALIDADE

UM ESTUDO PARA A COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO E

MONTAGEM DA PERFORMANCE “1A” (UMA)

Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

Banca Examinadora:

Orientador: _______________________________________ Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Júnior UDESC

Membro: ________________________________________ Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro

UDESC

Membro: ________________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos

USP

(4)

Ao Roberto Freitas, parceiro de sonhos,

alegrias e projetos artísticos.

E à minha mãe, Beatriz Siedler. Sempre

(5)

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Milton de Andrade, pela dança, pela orientação, pela força.

Ao Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro, que vem me acompanhando durante os anos de estudo na

UDESC.

À Profa. Dra. Sandra Meyer, pela orientação na banca de qualificação.

À CAPES, pela bolsa concedida no primeiro ano de pesquisa.

À Marisa Naspolini e à Melissa Ferreira, colegas do mestrado, pelas conversas, desabafos.

À minha irmã querida Elke Siedler, grande artista, dançarina, que me ensina todos os dias

sobre o que é ter força de vontade e determinação (além das aulas maravilhosas de dança que

tenho com ela).

À Iara Chaves, por suas palavras certeiras e motivadoras.

Aos organizadores do projeto Série Mergulho no Palco (em especial Zilá e Andreza)

E finalmente, aos meus (sempre) colegas e amigos da Andras Cia. de Dança-Teatro

(Asdrúbal Martin, Clara de Andrade, Juarez Nunes, Aldelice Braga, Melissa Ferreira). Em

especial à Barbara Biscaro e ao Samuel Romão, pelos ótimos momentos, danças, sonhos,

(6)

O indivíduo liquidado converte toda a superficialidade das convenções em algo apaixonadamente seu.

(7)

RESUMO

Esta dissertação propõe a construção da performance1A (UMA), partindo do estudo teórico

da teatralidade nos auto-retratos da artista plástica americana Cindy Sherman. A hipótese levantada é de que a teatralidade na obra de Sherman se evidencia pelo conjunto de suas fotografias, que revelam o jogo de transformação da auto-imagem da artista. O texto se divide em duas partes: a primeira, separada em dois capítulos, apresenta rapidamente artista e obra, para em seguida desenvolver, apoiada em bibliografia especializada das artes visuais, reflexões suscitadas pelos auto-retratos de Sherman, através das quais se problematizam a noção de identidade na contemporaneidade, assim como a idéia de arte e artista ligado à noção de originalidade e ao caráter performático do corpo no retrato fotográfico. A partir da afirmação de Karen Henry de que a teatralidade é uma condição das imagens de Sherman, busca-se, com apoio nos escritos dos teatrólogos Josette Féral, Juan Villegas e Oscar Cornago, definir o termo teatralidade bem como os aspectos que evidenciam a teatralidade nos auto-retratos de Sherman. Já a segunda parte, separada em três capítulos, descreve os meios pelas quais a atriz-dançarina (e intérprete-criadora) articulou a prática laboratorial que culminou na performance 1A (UMA). No primeiro capítulo resumem-se os principais

aspectos elaborados na primeira parte. No segundo, apresentam-se as metodologias que guiarão a prática laboratorial e de montagem, metodologias apreendidas pela atriz-dançarina dentro de um grupo de pesquisa teórico prático. No terceiro capítulo, descreve-se o processo de montagem da performance, articulando a hipótese levantada na primeira parte com as

metodologias descritas no capítulo dois.

(8)

ABSTRACT

This work aims the construction of the performance 1A (UMA), which has its bases in the

theoretical study of the american plastic artist´s self-portraits, Cindy Sherman. The hypothesis raised is that the theatricality of Sherman´s work is relevant by her set of photos, that shows the transformation´s game of the artist´s auto-image. The text is shared in two parts: the first one composed of two chapters that presents briefly the artist and her work; and after it is developed reflections about the Sherman´s self-portraits supported in specialized visual arts´ bibliography. Through this aspects is quarreled the concept of contemporary identity, and also the idea of art and artist in association with the notion of originality and performing nature of the body in the photographic portrait. According to the statement of Karen Henry that the theatricality is a condition of Sherman´s image, it is searched, based in the writings of theatricals theorists Josette Féral, Juan Villegas e Oscar Cornago, to define the term theatricality as the aspects that make evident the theatricality of the Sherman´s self-portraits. The second part - divided in three chapters – describes the ways that the dancer-actress (creative interpreter) linked the lab practical that resulted in the performance1A (UMA). The

first chapter is a sum of the main aspects elaborated in the first part. On the second one it is shown the methodologies that will guide the lab practical and the production. This methodologies were learnt by the dancer actress in a theoretical practical research group. On the third chapter, it is described the process of performance´s production linked with the

hypothesis raised in the first part with the methodologies described in the chapter two.

(9)

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – C. S1: Untitled Film Stills, Untitled #54 (1980) 23 Figura 2 – C. S:Rear Screen Projections, Untitled # 76 (1980) 24

Figura 3 – C. S: Centerfolds, Untitled #93 (1981) 24

Figura 4 – C. S: Fashion, Untitled #122 (1983) 25

Figura 5 – C. S: Fashion, Untitled #132 (1983) 25

Figura 6 – C. S: Pink Robes, Untitled #156 (1982) 25

Figura 7 – C. S: Centerfolds, Untitled #92 (1981) 25

Figura 8 – C. S:Fairy Tales, Untitled # 129 (1985) 26

Figura 9 – C. S: History Portraits, Untitled #228 (1990) 26

Figura 10 – C. S: Disasters, Untitled #175 (1987). 27

Figura 11 – C. S: Sex Pictures, Untitled #250 (1992) 27

Figura 12 – Retrato século XIX (album de família) de Archiminio A. H. Siedler 35

Figura 13 – C. S: Untitled Film Stills, Untitled #3 (1977) 46

Figura 14 – C. S:Untitled Film Stills, Untitled #6 (1977) 53

Figura 15 – C. S: Fashion, Untitled #138 (1984) 57

Figura 16 – Anotações de C.S sobre a série Fashion (1984) 58

Figura 17 – C. S: Bus Riders, Untitled #4 (1976) 60

Figura 18 – C. S: Bus Riders, Untitled #5 (1976) 60

Figura 19 – C. S: Bus Riders, Untitled #14 (1976) 60

Figura 20 – C. S: Bus Riders, Untitled #7 (1976) 60

Figura 21 – C. S:Untitled Film Stills, Untitled #27 (1979) 64

(10)

Figura 22 – Figura “jardineira”2 95

Figura 23 – Figura “capuz vermelho” 95

Figura 24 – Figura “vovó” 95

Figura 25 – Figura “dark balada” 95

Figura 26 – Figura “mulher tela” 96

Figura 27 – Figura “expressionista” 96

Figura 28 – Figura “Pina Baush” 97

Figura 29 – Figura “dona de casa” 97

Figura 30 – Figura “morte” 97

Figura 31 – Montagem fotográfica de projeções sobre figura mulher tela 105

Figura 32 – Figura “jardineira” surgindo da figura “mulher tela” 109

Figura 33 – Paisagem projetada na abertura da performance 110

(11)

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1: Roteiro de 1A (UMA) 89

QUADRO 3: Fases do trabalho 99

(12)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

I – CINDY SHERMAN: AUTO-RETRATO E TEATRALIDADE

I. 1 Os auto-retratos de Cindy Sherman 22

I. 1.1 Identidade e retrato fotográfico: a encenação do “eu” 29

I. 2 Teatralidade nos auto-retratos de Cindy Sherman 37

I. 2.1Realidade e teatralidade 40

I. 2.2O “Outro” que olha 47

I. 2.3Jogo e simulacro 59

II – 1A (UMA): COMPOSIÇÃO DO MOVIMENTO E MONTAGEM

II. 1Introdução à segunda parte 75

II. 1.1Performancee intérprete-criador 76

II. 2 Considerações sobre a prática: um caminho compartilhado 81 II. 2.1 Dramaturgia do movimento, partitura corporal, improvisação e montagem 83

II. 3 Composição do movimento e montagem de 1A(UMA) 88 II. 3.1 Laboratório prático: composição do movimento (entre o gesto figurativo e o abstrato) 92

II. 3.2 Montagem: entre dança e projeção (considerações finais) 104

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 117

APÊNDICE 122

(13)

INTRODUÇÃO

Atuar significa atacar o conceito de realidade, de verdade, de existência.

Ricardo Bartís

Para o encenador polonês Jerzy Grotowski (1933-1999), existem duas vias possíveis para o ator trabalhar o seu corpo: uma é através da obediência do corpo a uma técnica com códigos específicos e rígidos, como, por exemplo, o balé clássico, a mímica de Decroux, o Nô e o Kabuki japonês; e a outra, é dar desafios ao corpo que parecem ultrapassar as suas capacidades. Eugenio Barba, idealizador da Antropologia Teatral, também vê dois caminhos possíveis para o ator ocidental, muitos próximos aos de Grotowski, mas que ele chama de

aculturação e inculturação. As técnicas de aculturação, pelas quais o ator se “serve” a fim de

objetivar um “comportamento” cênico diferenciado do cotidiano, determinam uma aprendizagem de códigos gestuais precisos, já existentes e fixados que são apreendidos durante anos de treinamento. Já as técnicas de inculturação prevêem também anos de

aprendizagem e treinamento do ator, porém este não aprende uma “técnica” exterior, imposta, mas procura buscar mecanismos particulares, pessoais, para obter uma presença cênica diferenciada.

Minha formação de atriz-dançarina se aproxima da técnica de inculturação, no que se

refere à pesquisa e criação de metodologias para a ampliação das capacidades psicofísicas do ator-dançarino em cena. Durante cinco anos (2003-2007) participei de um grupo de pesquisa universitário, junto com outros estudantes do curso de licenciatura em artes cênicas da UDESC, sob a orientação do Prof. Dr. Milton de Andrade, e ali, através de ensaios diários, buscamos (o grupo) sedimentar e fomentar uma prática preocupada com os procedimentos que garantem uma pesquisa objetiva sobre o trabalho do ator-dançarino. De acordo com Andrade (2003, p. 331), “A definição de treinamento psicofísico oferece a base metodológica para um percurso de busca do ato criativo e da composição artística da cena através da análise do gesto, do movimento corpóreo e da ação expressiva”3.

(14)

O termo ator-dançarino, inclusive, sugere uma prática artística que credita ao ator, e à sua presença em cena, o centro de uma expressividade rica em criar sentidos, mundos, valores e saberes que não se subordinam ao texto dramático, à personagem, e que não dependem das emoções e sentimentos para existir, mesmo que busquem emoções e sentimentos4. Como Patrice Pavis esclarece (2003), a partir do momento em que os estudos sobre o ator se abriram para os espetáculos extra-europeus, a teoria psicológica das emoções foi logo ultrapassada, sendo essa teoria insuficiente para pretender descrever tanto o trabalho do ator quanto o do dançarino:

No teatro, as emoções são sempre manifestadas graças a uma retórica do corpo e dos gestos nos quais a expressão emocional é sistematizada, ou mesmo codificada. Quanto mais as emoções são traduzidas em atitudes ou em ações físicas, mas elas se liberam das sutilezas psicológicas do indizível e da sugestão (PAVIS, 2003, p. 50).

O ator de teatro, então, se aproxima mais e mais do dançarino, no sentido de que se preocupa em se inserir numa prática cotidiana, sistemática, de treinamento intenso visando a aumentar a resistência aeróbica e muscular, a elasticidade e força dos músculos, a consciência e organização espacial de sua presença, a consciência de cada parte de seu corpo – pés, mãos, tronco, quadril, cabeça, olhos, etc. – e a orquestração consciente dessas partes. Porém, tal desenvolvimento e aprimoramento das potencialidades do corpo humano não visam simplesmente ao virtuosismo, ou seja, à demonstração de habilidades, mas, antes, procuram desenvolver a expressividade do ator-dançarino, entendendo por expressão a capacidade de criação e formalização de sua presença em cena, que nunca se satisfaz com resultados óbvios e fáceis.

Se criatividade é a maneira pela qual o homem, numa situação dada, reage de maneira inusitada, rompendo velhos paradigmas e idéias pré-concebidas, então existe aí o risco também do fracasso e da rejeição. O músico Stephen Nachmanovitch, no livro Ser Criativo

(1993), atenta para o fato de que, quando o artista incursiona no trabalho criativo, joga abertamente com a transitoriedade da vida, com uma certa “consciência da morte”. O artista, sem seguir receitas, encara o mistério da própria existência.

Todo ato criativo, de pesquisa de metodologias, que não tem um referencial externo “pronto” que possa guiar os resultados obtidos para uma estética específica, produz resultados

4 Para Barba (1995), a tendência de separar teatro e dança (uma característica da cultura ocidental) revela um

(15)

muitas vezes aquém ou além do esperado, o que influencia bastante o rumo da pesquisa. Tem-se, assim, um movimento constante de retroalimentação entre os procedimentos empregados e os resultados obtidos. Desse modo, configuram-se diferentes poéticas, que tiveram e têm na presença do ator-dançarino, e no desenvolvimento de suas potencialidades, o mote para a criação da cena.

No caso do grupo de pesquisa universitário, a prática revelou uma aproximação entre as linguagens da dança e do teatro, sem que isso fosse uma vontade manifestada anteriormente. O próprio trabalho sobre ações físicas, gesto expressivo, pesquisa sobre a qualidade do movimento, seus deslocamentos no espaço, foram encaminhando o cotidiano do grupo de pesquisa para uma aproximação maior com a dança, com o “gesto dançado”.

Butterfly (2006), terceiro espetáculo montado pelo grupo de pesquisa, foi apresentado em

2007 em uma mostra de dança e também em um festival de teatro. Mas na mostra de dança, não foi considerado dança, e no festival de teatro, não foi considerado teatro (apesar dessa dúvida, porém, o público em geral recebeu muito bem o espetáculo).

Foi nesse ambiente de trabalho, de investigação sobre a materialidade do corpo, numa zona híbrida, entre a dança e o teatro, ou melhor, na dança e no teatro, que algumas questões referentes ao corpo e suas representações começaram a me ocupar. E, também foi nesse contexto que tive conhecimento da obra da artista plástica americana Cindy Sherman, que me conquistou imediatamente, por motivos que até agora não posso precisar com clareza. Contudo, vi em seus auto-retratos uma formalização das questões que me ocupavam, e que até então não era capaz de organizar em um discurso lógico. Tais questões não se limitavam ao corpo do ator-dançarino e a essa zona de contaminação entre a dança e o teatro. Mas diziam respeito a quanto das “técnicas cotidianas” do corpo estão presentes na constituição desse corpo em situação de representação, e à influência do imaginário social nos modos do homem se apresentar e representar (tanto no dia-a-dia, como em cena).

Nas palavras de Le Breton,

Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída: atividades perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação (...) produção de aparência, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o sofrimento, etc (2006, p. 7).

(16)

as abordagens possíveis para se pensar e entender o corpo na contemporaneidade: ciências sociais, ciências cognitivas, psicanálise, etc.

Nas artes cênicas, o corpo se faz eixo central de discussão, geralmente oportunizando discussões férteis e infindáveis acerca da dicotomia entre interno e externo, interioridade e exterioridade, etc. Os laboratórios, os treinamentos, e os materiais bibliográficos produzidos sobre a prática do ator procuram romper com essa dicotomia, a fim de evidenciar não um treinamento físico do ator, mas sim um treinamento psicofísico (mental-físico-emocional).

Os auto-retratos de Sherman não se ocupam dessa dicotomia, mas, ao contrário, emergem de uma idéia de corpo como antinatureza, como artifício e simulacro. Sujeito e

objeto de suas fotografias, Sherman se auto-retrata em composições estilísticas que reportam às revistas de moda, pornografia e cinema (entre outros), insinuando que expressar é em grande medida replicar um modelo. Dessa forma, as auto-imagens que a artista dá a ver são fruto de junções e sobreposições de signos externos a ela, advindos do imaginário social que a cerca.

As fotografias de Sherman também se encontram em uma zona de hibridez, oscilando entre a fotografia e a performace art. Alguns críticos a consideram performer (Artur Danto) e

outros a consideram fotógrafa (Annateresa Fabris). Tal é a situação em que a arte contemporânea se encontra: nunca se falou tanto em hibridismo, contaminação entre artes, rompimento de fronteiras, perda de parâmetros definidos, etc: a performance art, a escultura

minimalista, a dança-teatro estão entre os exemplos de práticas artísticas que rompem fronteiras, que se deixam contaminar.

O termo contaminar sugere corromper, transformar, modificar. Comumente, a contaminação (do latim contaminatio) significa mácula, marca deixada, “resultado de um

contato impuro”; já na lingüística, se refere a contaminação de uma palavra por outra. Na literatura é usada como ato de fundir, em um só texto, várias comédias ou contos:

“o termo foi usado para explicar as relações de empréstimos e apropriação entre a comédia latina em construção e a comédia grega já estabelecida. A contaminação ou a contaminatio podia ser tanto uma fusão de partes de diferentes peças gregas

na criação de uma nova peça, como o fazia Terêncio, ou a inclusão de situações narrativas conhecidas dentro de uma nova peça, à moda de Plauto. (...) o termo era usado para indicar mais que um relacionamento espúrio, pois havia também o sentido da mistura do conhecido para gerar o novo. A contaminatio era uma forma

de assegurar uma nova existência, uma estratégia empregada para construir um novo texto” (COSSON, 2007).

(17)

teatralidade nos auto-retratos da artista plástica americana Cindy Sherman, para, em seguida, desenvolver uma pesquisa prática, laboratorial, tendo em vista a construção de uma

performance. Criados e interpretados por mim, procurei articular, na segunda fase da

pesquisa, aspectos observados no estudo teórico da primeira parte com os procedimentos advindos de minha formação como atriz-dançarina dentro do grupo de pesquisa universitário.

A teatralidade é abordada aqui como uma estratégia multidisciplinar que perpassa eventos socioculturais e artísticos (teatro, dança, fotografia, cinema), servindo como uma ferramenta para a constituição de poéticas que têm no imaginário contemporâneo, apoiado nas reflexões sobre a pós-modernidade, o campo para a investigação de procedimentos que viabilizem a reflexão em linguagem cênica. Tendo como foco a obra de Sherman, investigam-se as principais influências conceituais no investigam-seu trabalho, dando destaque para a noção de identidade na pós-modernidade, entendida como uma construção social e fragmentária que se estabelece a partir da relação entre observado e observador. Da articulação formal do dispositivo fotográfico e do corpo da artista como sujeito e objeto de sua arte, a reflexão acerca da identidade feminina se materializa na teatralidade evocada por Sherman, que revela a identidade como simulacro, encenação e máscara social.

As fotografias de Sherman chamam atenção pela capacidade da artista de transformar o próprio corpo, criando personagens diferentes, e elaborando-as através da manipulação do próprio corpo. Ela é diretora, atriz, cabeleireira, figurinista, iluminadora: ela é várias em uma só. Chama a atenção, também, o modo divertido e crítico com o qual Sherman aborda suas personagens, descontextualizando-as de seu habitat natural (cinema, publicidade, revistas

pornográficas, contos de fada) e reinserindo-as em um novo contexto (museus), de modo que propõe para o espectador uma maneira nova e crítica de observar as imagens de mulher que a

massmedia produz.

Da forma como a artista articula seu trabalho, não é rara a comparação de suas fotografias com o universo do teatro. De fato, as relações entre o teatro e os trabalhos de Cindy Sherman são evidentes: a artista encarna o papel da atriz e, tendo o próprio corpo como objeto de sua arte, metamorfoseia-se em personagens diferentes através de atitudes, figurinos, maquiagens, adereços e próteses, elaborando esses elementos de forma que muitas vezes faz referência a estereótipos sociais que o espectador consegue reportar a tipos específicos presentes no seu cotidiano.

(18)

suas manifestações e formas), ou com alguma estética teatral específica (a farsa, o melodrama, etc.)? Teatralidade é uma pré-condição do teatro, e por isso é invariável, ou modifica-se em consonância com as transformações estéticas suscitadas pelas poéticas artísticas? Estas perguntas revelaram a necessidade de aprofundar a noção de teatralidade e suas implicações nos auto-retratos de Cindy Sherman.

O aprofundamento no entendimento do termo evidenciou que a teatralidade tem sido usada para pensar a contemporaneidade. O qualitativo de “teatral”, segundo o teatrólogo Oscar Cornago, nos últimos tempos ganhou uma grande difusão, expandindo os limites da prática teatral, o que sugere pensar em que medida tal difusão afeta a cena cultural de hoje. Para Cornago,

O fenômeno das grandes urbes, o surgimento das massas provocado pela revolução industrial, a sociedade de consumo e a revolução eletrônica dos meios de comunicação, potencializaram os níveis de teatralidade. O número de cenários onde atuar, olhar e ser olhado, conheceram um considerável aumento com a proliferação de monitores, câmaras e outros espaços públicos ao alcance de todos. (2005, p. 2, trad. nossa)5.

O teatrólogo Juan Villegas sugere que a teatralidade se refere aos modos de relações entre as pessoas de determinada cultura, com ênfase na produção e percepção visual do mundo. Para o autor, a cultura atual é predominantemente visual, sendo que a produção teatral se dedica pouco a pesquisar estratégias que tratam dessa dimensão própria da nossa cultura:

Nos últimos anos, técnicas ou códigos produzidos pela televisão, pelos sistemas de comunicação multidimensional, e os espetáculos públicos massivos ou publicitários projetaram códigos e mecanismos de representação que afetaram profundamente as teatralidades representadas no teatro, as teatralidades sociais, os modos de representação visual ou os discursos críticos sobre o objeto teatro (2000, p. 27, trad. nossa)6.

A arte de Sherman caminha em consonância com filósofos, lingüistas, sociólogos e críticos de arte que pensam a contemporaneidade como uma época de simulacros, dominada por imagens e espetáculos, e a teatralidade, no seu trabalho, aparece como uma “estratégia”

5 “El fenómeno de las grandes urbes, el surgimiento de las masas provocado por la revolución industrial, la

sociedad de consumo y la revolución electrónica de los medios de comunicación, ha potenciado los niveles de teatralidad. El número de escenarios donde actuar, en los que mirar y ser visto, ha conocido un abrumador aumento con la proliferación de monitores, cámaras y otros espacios públicos al alcance de todos”.

6 “En los últimos años, técnicas o códigos producidos por la televisión, por los sistemas de comunicación

(19)

que exacerba essa sensação. Não por acaso, a teatralidade já é percebida e considerada como um dispositivo bastante usado na fotografia contemporânea (principalmente a partir dos anos 80), com o potencial de questionar os elos entre representação e realidade, verdade e ficção (HENRY, 2006). Neste sentido, a teatralidade na fotografia é, antes de tudo, um modo encontrado e utilizado por artistas para refletir sobre o próprio instrumento de seu trabalho: a fotografia. O mesmo vale para Sherman, para quem a fotografia não é apenas um instrumento de captura de suas performances, um documento que constata a realização de um ato, mas

integra o corpus conceitual de sua obra; é, em certa medida, um dos pontos de reflexão da

artista.

Antes de entrar na discussão sobre o termo teatralidade, se faz necessário, então, apresentar as principais obras de Sherman. Para essa pesquisa, me concentrei nas discussões propiciadas principalmente pela leitura das séries Untitled Film Stils (1977-1980), Rear-Screen Projections (1980-1981), Centrefolds (1981), Pink Robes (1982) e Fashion (1983-84 e

1993-94), obras que, apesar de possuírem estilos diferentes, giram em torno de problemáticas “semelhantes”, de acordo com a crítica especializada das artes visuais. A fotografia será tratada, no primeiro capítulo, tal como sugere a crítica americana Rosalind Krauss, como um objeto teórico, que permite a reflexão não sobre a fotografia em específico, mas sobre algumas problemáticas levantadas por ela7. No caso de Sherman, o retrato fotográfico é o meio pelo qual se abrem possibilidades de leitura sobre a identidade como encenação, construção artificial (FABRIS, 2004), assim como também permite a reflexão sobre modelo e representação, e sobre o questionamento acerca do “conjunto do conceito de unicidade do objeto de arte, de originalidade do autor, de coerência da obra, [e] de individualidade da assim chamada ‘expressão pessoal’” (KRAUSS, 2002, p. 226).

No segundo capítulo, apresento o termo teatralidade como um conceito importante para o entendimento da obra de Sherman. Procuro refletir sobre o termo teatralidade, através de estudos teatrais, levantando aspectos da teatralidade nas fotografias de Sherman. Desenvolvo estes capítulos a partir dos escritos de Josette Féral, Juan Villegas e Oscar Cornago, autores que se dedicaram a pensar especificamente o termo teatralidade principalmente no teatro contemporâneo.

7 Segundo Krauss, Roland Barthes e Walter Benjamin utilizaram a fotografia como um objeto teórico (que ela

chama de o fotográfico), para reflexionar sobre outras questões. Barthes, no livro A Câmara Clara, parte da

fotografia para pensar a “ciência impossível do ser único” e Benjamin, em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, usa a fotografia para “refletir sobre a cultura modernista a partir das condições

(20)

Nesse capítulo desenvolvo a hipótese de que a teatralidade, na obra de Sherman, se evidencia principalmente pelo jogo de transformação de sua auto-imagem, através do conjunto de suas fotografias. Desse jogo de oscilação entre uma personagem e outra (e não pela criação da personagem em si), o observador de suas fotos pode descobrir o disfarce que está por traz de seus auto-retratos. Também a pose e o grotesco (no caso da série fotográfica

Fashion) são elementos que contribuem para a visualização da teatralidade em sua obra.

Justamente por causa dessa característica dos auto-retratos de Sherman, que constroem o seu sentido dentro do conjunto de imagens, não me concentrei apenas em uma série fotográfica. Porém, se me ative mais à série Untitled Film Stills foi porque, além de ser a obra

mais comentada da artista, é também a obra sobre a qual Sherman mais comentou; caso raro, já que a artista evita dar explicações sobre seu trabalho.

Sobre essa hipótese levantada na primeira parte é que a pesquisa prática da segunda parte irá se guiar. Nessa fase da dissertação, me atenho à performance 1A (UMA),

procurando esclarecer sobre os modos em que a prática laboratorial foi conduzida. As “ferramentas” pelas quais desenvolvi a prática foram retiradas de minha experiência junto ao grupo de pesquisa universitário já referido. Por tanto, faço uma breve apresentação do grupo de pesquisa para depois esclarecer sobre a metodologia desenvolvida no grupo, esclarecendo termos e conceitos que serão importantes para o entendimento da descrição do processo de montagem de 1A (UMA).

Como essa dissertação previa a pesquisa prática, sendo um de seus objetivos principais, optei por não relegar a descrição do processo de montagem da performance para os

apêndices. Acredito que essa formalização poética, artística, é necessária, já que os conteúdos elaborados nesta dissertação, principalmente na primeira parte, surgiram de questões provenientes de minha prática artística, pautada na investigação do corpo cênico e em linguagens “híbridas”.

O resultado obtido foi fruto de cinco meses de ensaios e montagem, tempo em que, diariamente, trabalhei não apenas em sala de ensaio, mas também em “pesquisa de campo”, procurando figurinos, adereços, perucas, e também em estúdio, gravando as imagens para serem projetadas na performance e preparando a edição. As infindáveis conversas com o

(21)

1A (UMA) estreou no dia 2 de julho de 2007, no teatro Ademir Rosa (Centro Integrado de Cultura), em Florianópolis, dentro do projeto Mergulho no Palco, sob

coordenação de Zilá Muniz. Os cinco meses de ensaios foram remunerados, por conta de um edital realizado pelo projeto Mergulho no Palco, em 2006, que previa uma bolsa de estudos

para a criação de um solo. Essa bolsa garantiu a compra de materiais para a construção de 1A (UMA), como figurinos, fitas de vídeo, tela, etc.

Para encerrar esta introdução, transcrevo um trecho extenso de Oscar Cornago, que vê no estudo da teatralidade a possibilidade de se pensar sobre diferentes estratégias de criação teatral na contemporaneidade:

O teatro da Modernidade, como a própria cultura moderna, se apresenta como uma reflexão em profundidade sobre a vida, a realidade e a história como mecanismos de representação, e na medida em que se ilumina o espaço onde funciona esta maquinaria, abrindo um vazio entre os resultados da representação, a cena que estamos vendo, e o sentido daquilo que se está fazendo, a identidade destes atores que obviamente estão interpretando, acaba por questionar também o sentido do real, mas não para afastá-lo, como se fez nas vanguardas, senão para acometê-los a um constante processo de revisão, de revisão de verdades e dogmas, e de ideologias e discursos com pretensões de verdade universal. Como as personagens da criadora espanhola Sara Molina, o teatro e a realidade moderna parecem lançar uma outra vez uma pergunta final que funda a condição cênica, mas não mais sobre quem somos ou o que significa, senão: ‘!!!Onde estamos?!!!’. (2005, p. 13, trad. nossa)8.

8 “El teatro de la Modernidad, como la propia cultura moderna, se presenta como una reflexión en profundidad

(22)

PRIMEIRA PARTE

(23)

I. 1 OS AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN

Cynthia Morris Sherman nasceu no dia 19 de janeiro de 1954, em Glen Ridge, Nova Jersey, nos E.U.A, e cresceu em Huntington Beach, Long Island. Em 1972 ingressou no curso de artes visuais, no State University College, em Buffalo, espaço onde esboçou e fez seus primeiros experimentos em fotografia, documentando as transformações que aplicava à sua própria aparência.

Tendo ingressado na universidade com o intuito de desenvolver suas habilidades em pintura, o contato com a arte conceitual, performance art, body art e os meios para

documentar essas artes performáticas (fotografia, vídeo, cinema) foram fundamentais para Sherman reorientar seu trabalho para os auto-retratos que se tornaram o eixo de sua produção artística.

Conhecida pela capacidade camaleônica de aparecer em disfarce em cada imagem capturada pelo dispositivo fotográfico, Sherman desenvolveu, e desenvolve ainda, um olhar voltado para o corpo humano, através de um jogo de manipulação, construção e desconstrução da sua auto-imagem e da imagem do corpo, através de artifícios como roupas, perucas, maquiagens, próteses e também manequins, que substituem a presença da artista em algumas fases de seu trabalho.

Suas fotografias costumam ser enquadradas e nomeadas dentro de séries de imagens que respeitam uma lógica temática e estilística. Mas, com exceção de Untititled Film Stills,

não é Sherman a responsável pelos nomes que identificam as suas séries fotográficas, tarefa essa deixada a cargo dos críticos de arte.

A seguir apresento as séries criadas por Sherman ao longo de sua carreira, até o momento, respeitando a cronologia de suas realizações: Untitled Film Still [Stills

cinematográficos sem título] (1977-1980); Rear-Screen Projection [Projeções num telão]

(1980-1981); Centerfolds [Páginas centrais] (1981); Pink Robes [Roupões rosa] (1982); Fashion (1983-1984 e 1993-1994); Fairy Tales [Contos de fada] (1985); Disasters

[Desastres] (1986-1989); History Portraits [Retratos históricos] (1989-1990); Sex Pictures

[Retratos sex] (1992); Horror and Surrealist Pictures [Retratos surrealistas e de horror]

(1994-1996); Office Killer [O assassino do escritório] (1997); Untitled 2000 [Sem título 2000]

(2000); Clowns [Palhaços] (2003-2004)9.

(24)

O cinema sempre foi uma influência forte para Sherman, que cresceu, segundo a própria, em uma cidade pequena em que o passa-tempo era assistir televisão e se entreter com filmes. Sherman, inclusive, afirma: “filmes são e foram a única coisa a que eu me dediquei a estudar, não importando quanto tempo fosse necessário gastar”10 (SHERMAN apud MORRIS, 1999, p. 29). Seu interesse maior é pelos filmes de suspense, como os de Hitchcock, porque “não dá para saber muito da vida das personagens, então se procura achar alguma coisa nos pedacinhos de vida de cada um” (SHERMAN APUD NAVES, 1998, p. 45).

A série Untitled Film Still aborda esse universo cinematográfico, através de fotos de

cenas de filmes que nunca existiram. Produzidas entre 1977 e 1980, quando já residia em Nova York (se mudou em 1977 com o então namorado e artista Robert Longo), essa série, composta de 69 fotografias em preto-e-branco, apresenta a artista que (re)cria stills (fotos

publicitárias) dos filmes clássicos da década de 50 de Hollywood, os filmes Noir, filmes B, e

filmes europeus (fig. 1). Porém, apesar de as fotos remeterem aos filmes clássicos, elas não se referem a nenhuma película, diretor ou ator em específico.

Sherman também buscou fontes imagéticas e estilísticas na televisão e nas revistas pornográficas e de moda. A partir de Rear-Screen Projection, a artista passa a fotografar em

colorido, retornando poucas vezes para a imagem em preto-e-branco. Nessa série, Sherman se fotografa apenas em estúdio, tendo como cenário de fundo projeções fakes que reportam a

10 “Movies are and have been the only thing I have ever given myself over to study, no matter what a waste of

(25)

ambientes externos, como praças, calçadas, avenidas. Esses slides projetados em telão fazem referência clara aos seriados de televisão da década de 60 e 70 que mostravam cenas, como as de personagens filmadas dentro do carro, em que se colava a cena gravada com os atores junto a um fundo gravado separadamente (fig. 2). As personagens retratadas nessa série são diferentes das de Untitled Film Stills, mostrando-se em atitudes e roupas que denotam uma

auto-confiança e uma proximidade maior com as mulheres “reais” da classe média americana.

Já as séries Centerfolds (fig. 3 e 7), Pink Robes (fig. 6) e Fashion (fig. 4 e 5), apostam

nas fotos publicitárias de revistas masculinas e de moda. A câmera, nesses ensaios fotográficos, se aproxima mais do corpo de Sherman, que parece, através de sua performance

diante da câmera, estar capturada em uma moldura que a sufoca e a prende, deixando suas personagens pouco à vontade e vulneráveis.

Fig. 3

(26)

As fotos para a série Fashion, por exemplo, foram feitas sob encomenda para duas

revistas de moda que contrataram Sherman para fazer auto-retratos com roupas de grandes estilistas da moda, como Paul Gaultier e Rei Kawarkudo. Mas se as roupas eram por vezes glamourosas e sensuais, as poses e os ângulos em que a câmera capturava Sherman não eram. O resultado são poses estranhas e grotescas, atitude essa que passa a prevalecer nos trabalhos seguintes.

Fig. 4 Fig. 5 Fig. 6

(27)

Fairy Tales (fig. 8) e History Pictures (fig. 9) são séries mais grotescas e apostam na

utilização, por parte de Sherman, de próteses que compõem o seu corpo, como nariz, seios, barriga, glúteo, língua etc. Saem de cena as personagens femininas para a entrada de seres metade humano e metade bicho; e tantos outros criados a partir do imaginário de contos de fada, além de personagens, no caso de History Portraits, reconhecíveis de retratos produzidos

por grandes nomes da tradição da pintura ocidental, como Caravaggio, etc. Nessas fotos, a iluminação e a cor acentuam as próteses, induzindo o olhar do observador para esses pontos artificiais que ajudam a construir o corpo das personagens de Sherman.

Próteses e manequins ganham espaço também nos trabalhos seguintes e ocupam a cena, que se transforma em um lugar repleto de corpos despedaçados, ordenados e reordenados em combinações estranhas, geralmente valorizando as partes íntimas do corpo humano e também os dejetos que saem deste corpo, mas sempre retratados com um colorido intenso (fig. 10 e 11).

(28)

Com exceção de um filme dirigido por Sherman, Office Killer, e de um cenário para

espetáculo de dança, no qual utilizava seus manequins e próteses, a artista sempre teve a fotografia como suporte de seu trabalho. Apesar disso, não se considera uma fotógrafa: “A

(29)

única razão pela qual não me chamo fotógrafa é que pessoas que consideram a si mesmas fotógrafas não pensariam que sou uma delas” (SHERMAN apud MORRIS, 1999, p. 12).11

Provavelmente, e essa é uma hipótese minha, seria difícil aceitá-la como fotógrafa porque a força de seus retratos está na evidente performatividade de Sherman diante da lente da câmera fotográfica, quer dizer, na qualidade de seu desempenho como atriz, diretora, figurinista, maquiadora e iluminadora. Inclusive, alguns críticos de arte, como Artur Danto, consideram a arte de Sherman mais performática do que fotográfica, sendo a fotografia apenas um registro que “captura” as encenações de Sherman. Para Danto, as fotografias de Sherman não podem ser consideradas auto-retratos porque caminham numa lógica inversa, já que, se o auto-retrato supõe o desdobramento da vida interior e da profundidade psicológica do eu, Sherman, ao contrário, mostra retratos que ela “divide com qualquer mulher desconhecida que concebeu a narrativa de sua vida no idioma de um filme barato” (DANTO apud NAVES, 1998, p. 24).

Porém, é inegável a importância do suporte fotográfico na arte de Sherman, já que é o estilo da fotografia (enquadramento, granulação da foto, etc.), como por exemplo em Untitled Film Stills, que permite ao observador se reportar aos filmes da década de 50, e não apenas

por causa das roupas e atitudes de Sherman. Além disso, deve-se considerar que é justamente com a noção de auto-retrato que Sherman está trabalhando (noção que instaura a problemática da constituição da identidade), só que para pôr em crise os modos de auto-representação do corpo. E são essas questões que abordarei a seguir, questões que permearão a produção da

performance1A (UMA).

Para esta pesquisa, concentrei o interesse nas primeiras obras da artista, a partir de

Untitled Film Stills até Fashion, porque ali se encontram presentes aspectos relacionados à

construção da identidade, e uma gradual transformação “estilística” das personagens de Sherman, caminhando de uma artificialidade mais “natural” para uma artificialidade assumidamente grotesca. Depois de Fashion, as discussões sobre os retratos de Sherman,

levantadas por críticos de arte, tende para direções diversas, relacionadas à arte abjeta e ao informe.

11 “The only reason I don’t call myself a photographer is that I don’t think other people who consider themselves

(30)

I. 1.1

IDENTIDADE E RETRATO FOTOGRÁFICO: A ENCENAÇÃO DO “EU”

Das primeiras vezes em que me deparei com as fotografias de Sherman, em específico com as que integram as séries Untitled Film Stills, Rear-Screen Projection, Centerfolds e Fashion, o que me chamou a atenção foram os modos como aquela mesma mulher aparecia

transformada. Já havia sido avisada de antemão de que se tratava da mesma pessoa, e de que era a própria artista a responsável por capturar a sua presença diante da lente atenta da câmera fotográfica, o que não deixou de causar certa hesitação de minha parte, diante de algumas imagens, quanto à garantia de estar diante sempre de retratos da mesma mulher. Mas, olhando atentamente e repetidas vezes para as fotografias, se torna clara a presença de Sherman nas imagens, uma vez que sua fisiologia (fenótipo) se mantém, o que não se poderia dizer acerca de uma artista como a francesa Orlan, que se submete a milhares de cirurgias plásticas, também documentadas por fotos. Indo em outra direção que Sherman, Orlan, orientada pelos retratos consagrados da história da pintura, reconstrói partes de seu rosto e corpo tendo como modelo “a fronte da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, a arcada da Vênus de O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, o nariz da Madona do grão-duque, de Rafael, a boca de Miss Louise O’Murphy, de François Boucher etc.” (FABBRINI, 2002, p. 176).

Não tão agressivos como Orlan, os auto-retratos de Sherman se aproximam mais de um jogo de quebra-cabeça, ou daquelas brincadeiras infantis de fantasiar-se com as roupas da mãe ou de vestir as bonecas com vários modelos diferentes. Nesses casos, o jogo de monta e desmonta possibilita que as transformações possam sempre ser desfeitas, sem o risco de passar por uma mudança definitiva que não permita o retorno para o “original”, para o ponto de partida, ou, em outras palavras, para aquele lugar que permite a criação de tantas outras possibilidades de ser e de experimentar. Esse lugar, no caso de Sherman, seria a materialidade de sua presença, seu corpo.

Mas diante de tantas possibilidades criadas por Sherman de auto-transformação, qual entre elas, ou, por detrás delas, revela a Sherman “original”, aquela pessoa que se mantém, íntegra, fiel ao mais íntimo do seu ser? Essa é uma questão que pode ser levantada a partir da análise das fotografias de Sherman, além de tantas outras que passam a surgir a partir dessa.

(31)

vazio que se abre entre o que se é (ou se deseja ser), e o que se representa (aparência) – entre identidade e imagem do corpo.

Longe de buscar uma resposta e solução sobre a constituição de sujeito, personalidade, subjetividade, interioridade, os auto-retratos de Sherman permitem reflexões que permeiam essas noções, assim como também podem ser enquadradas dentro de discussões acerca da arte e do artista ligadas à noção de originalidade. Vale lembrar que uma característica forte nos trabalhos de Sherman são as referências utilizadas pela artista, que se vale de reproduzir objetos que por si só já são reproduções, como o cinema, a foto publicitária, as pinturas clássicas, etc. Porém, suas reproduções não são cópias, nem simples paródias do que a cultura, no caso a americana, produz como mercadoria de arte e entretenimento para ser consumida.

Uma leitura pós-moderna dos auto-retratos de Sherman, como Vladimir Safatle salienta, indica a variação nas maneiras de Sherman apresentar-se “como a afirmação de uma subjetividade enfim liberada do Eu unificador e capaz de gozar da plasticidade de seus mascaramentos” (2006, p. 2). A identidade, na contemporaneidade, deixa de ser um lugar estável de afirmação contínua e duradoura para passar a significar um lugar de sucessivas rupturas e reconfigurações constantes na construção performativa de identidade(s), agora pensada no plural.

No livro A Identidade Cultural na Pós-modernidade, o sociólogo Stuart Hall procura

explorar questões relativas à problemática da identidade na pós-modernidade, dando atenção para os acontecimentos e teorias que contribuíram na mudança de enfoque e crise na noção de identidade. Para o autor, é possível se observar uma perda de um ‘sentido de si’ estável, o que se costuma chamar de descentração do sujeito12, que acompanha uma mudança estrutural nos traços formais da vida cultural, através de novos estilos de vida social e ordem econômica. Diferente do “sujeito do Iluminismo” (cartesiano) e do “sujeito sociológico”13, o sujeito pós-moderno dispõe de uma identidade que “torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e

12 Vale lembrar que a palavra sujeito vem do latim,

subjectu, e faz referência àquele que se submete. No Novo

Dicionário Aurélio, a definição de sujeito é: “Adj. 1. Súdito (1). 2. Escravizado, cativo. 3. Obrigado,

constrangido, adstrito. 4. Que se sujeita à vontade dos outros; obediente, dócil. 5. Dependente, submetido”.

13 Hall descreve o sujeito iluminista como totalmente centrado, unificado, com um sentimento estável de sua

(32)

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (2004, p. 13).

Dentre os “avanços” na teoria social e nas ciências humanas do século XX, apresentadas por Hall, que tiveram grande impacto sobre a noção de identidade, destaca-se a psicanálise lacaniana, e o conhecido “estádio do espelho”, no qual o francês Jacques Lacan procura explicar a estruturação psíquica do eu, que, no caso, identifica a identidade do sujeito como uma função do olhar de reconhecimento do Outro. Lacan, inclusive, é bastante utilizado

pela crítica americana das artes visuais, a exemplo da historiadora e crítica de arte Rosalind Krauss e Hal Foster, que usam esse viés psicanalítico para a leitura da obra de Sherman, mas buscando conclusões divergentes.

Nas palavras de Stuart Hall,

A formação do eu no “olhar” do Outro, de acordo com Lacan, inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela mesma e é, assim, o momento da sua entrada nos vários sistemas de representação simbólica – incluindo a língua, a cultura e a diferença sexual. Os sentimentos contraditórios e não-resolvidos que acompanham essa difícil entrada (o sentimento dividido entre amor e ódio pelo pai, o conflito entre o desejo de agradar e o impulso de rejeitar a mãe, a divisão do eu entre suas partes “boa” e “má”, a negação de sua parte masculina ou feminina e assim por diante), que são aspectos-chave da “formação inconsciente do sujeito” e que deixam o sujeito “dividido”, permanecem com a pessoa por toda a vida. Entretanto, embora o sujeito esteja sempre partido ou dividido, ele vivencia sua própria identidade como se ela estivesse reunida e “resolvida”, ou unificada, como resultado da fantasia de si mesmo como uma “pessoa” unificada que ele formou na fase do espelho. Essa, de acordo com esse tipo de pensamento psicanalítico, é a origem contraditória da “identidade” (2004, p. 37-38).

É importante reter dessa discussão levantada pelos estudos psicanalíticos14, que tiveram e têm, principalmente depois da década de 60 um grande impacto no pensamento filosófico, sociológico e artístico da contemporaneidade, o fato de que a identidade passa a ser entendida não como um dado natural, presente na consciência a partir do nascimento, mas como fruto de processos inconscientes, em constante formação e não separada da linguagem. Continuando, com as palavras de Hall:

Assim, a identidade é realmente algo formado (...) Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade (...). A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza

que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós

14 Evidentemente que a discussão psicanalítica acerca da constituição do eu é muito mais complexa, delicada e

(33)

imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a

“identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (2004, p. 39).

Tendo essa perspectiva de constituição de identidade, no mundo atual, pós-moderno, na era da globalização, da modernidade tardia, época de mercadorias descartáveis e do incentivo às constantes reformulações de guarda roupa, móveis, utensílios domésticos, automóveis etc., o sujeito (aquele que se sujeita) é incentivado ao múltiplo, às variações; e o corpo, nesse ambiente, lembra Safatle, torna-se o “espaço de afirmação da multiplicidade” (2006, p. 2).

O trabalho de Sherman, por esse viés, pode ser interpretado como a construção de “uma gramática de aparências compostas por gestos, poses e estilos plenamente codificados,

prêt-à-interpréter, colocando em cena alguns fantasmas fundamentais do feminino no

ocidente” (SAFATLE, 2006, p. 2). Fantasmas esses que assombram o imaginário masculino e feminino em diversas esferas da vida. Sherman esclarece: "Embora eu nunca tenha considerado a minha obra como feminista ou como uma declaração política, é certo que tudo o que lá está é desenhado a partir das minhas observações, enquanto mulher nesta cultura" (SHERMAN apud LARSEN, 1999, p. 53).

Por referenciar produtos culturais de grande alcance comercial, como as revistas de moda, televisão e cinema, costuma-se concluir, a exemplo de feministas como Laura Mulvey, que os auto-retratos de Sherman fazem uma crítica aos modelos de mulher vinculados por esses meios de comunicação e a influência que exercem na constituição da identidade feminina, já que Sherman aparece, em cada retrato, assumindo um estereótipo, seja da mulher independente, da dona de casa, da mulher sensual ou da mulher vulnerável. Porém, segundo Rosalind Krauss, os retratos de Sherman poderiam ser lidos como simples crítica às imagens de mulher produzidas pela cultura americana caso Sherman fotografasse outras mulheres que não ela própria. Mas, ao ser o próprio objeto de sua pesquisa, Sherman traz à tona uma discussão sobre a idéia de artista como “fonte de originalidade, de reação subjetiva, ou como se ele garantisse uma distância crítica em relação a um mundo com que se defronta, porém sem pertencer a ele” (2002, p. 224).

(34)

seus “eus”, retratados nas fotos, incluindo aí também o “eu” de artista, são, na obra de Sherman, apresentados como réplicas, como construções fictícias formadas a partir de referências externas (cinema, revistas de moda etc) que oferecem modelos para a constituição da identidade. Mesmo em poses confessionais, “o que se constrói é menos a mulher natural do que o artifício expressivo – a expressão como artifício” (FOSTER, 1996, p. 100).

Mas Sherman parece não aceitar passivamente essas identidades difundidas pelos meios de comunicação. Sobre o processo de elaboração da série Untitled Film Stills, Sherman

comenta:

Suponho inconscientemente, ou semiconscientemente, no máximo, que eu estava lutando com algum tipo de tumulto meu sobre entender as mulheres. As personagens não eram modelos, nem atrizes estúpidas. Eram mulheres esforçando-se em alguma coisa, mas eu não sabia disso. As roupas faziam elas parecerem de certa forma, mas aí você olha as expressões, [...] e gostaria de saber se talvez “elas” não são o que as roupas estão comunicando. Eu não estava trabalhando com uma comunicação consciente, mas definitivamente eu sentia que as personagens estavam questionando alguma coisa – talvez estivessem sendo forçadas para um determinado papel. Ao mesmo tempo, esses papéis estão em um filme: as mulheres não estão sendo realistas, estão atuando. Existem tantos graus de artificialidade. Eu gostava de toda aquela confusão de ambigüidades (SHERMAN, 2003, p. 9, trad. nossa).15

“O que é meu no meu corpo?” Essa parece ser uma pergunta que poderia ser feita por Sherman, através das personagens de Untitled Film Stills. Uma pergunta que não oferece

respostas prontas e fáceis, nem mesmo para Sherman, que, nesse enunciado, deixa claro o fato de que criar e fotografar suas personagens se constituía num ato de reflexão que não era separado do ato de confecção de seus auto-retratos. Nessa perspectiva, Sherman não se coloca à parte do imaginário contemporâneo difundido pela indústria cultural, mas se coloca no centro da discussão, pesquisando no próprio corpo, na construção de sua(s) auto-imagem(s), o que, dela, se conforma às identidades de mulher divulgadas pela mídia.

Agora, vale ressaltar a escolha da fotografia, como meio de expressão artística fundamental para a problemática da captura da “imagem de si”, presente na obra de Sherman. Pois, a princípio, a fotografia detém a possibilidade de apreensão da realidade, tal qual ela se apresenta diante da objetiva. Roland Barthes, em A Câmara Clara (1984), lembra que uma

15 “I suppose unconsciously, or semiconsciously at best, I was wrestling with some sort of turmoil of my own

(35)

fotografia sempre traz consigo o seu referente, já que não há foto “sem alguma coisa ou alguém” (p. 15)16. Mas o que dizer do retrato fotográfico, e do que ele consegue reter da pessoa fotografada? De acordo com Barthes,

A Foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí se afrontam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele que ele se serve para exibir sua arte. Em outras palavras, ato curioso: não paro de me imitar, e é por isso que, cada vez que me faço (que me deixo) fotografar, sou infalivelmente tocado por uma sensação de inautenticidade (...) Imaginariamente, a Fotografia (aquela de que tenho a intenção) representa esse

momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: (...) torno-me verdadeiramente espectro. (1984, p. 27)

Barthes, nesse enunciado esclarece o caráter performático adotado por ele ao ser fotografado, revelando que por trás da “imagem de si” sempre existe algo de imaginário e ficcional, que tenta dar conta de expressar de maneira fiel aquilo que se imagina que é. Porém, o que fica é apenas a sensação de uma tentativa, nunca realizada, de revelação de si, derrotada pela constatação da apreensão apenas do (a)parecer.

No livro Identidades Virtuais – uma leitura do Retrato Fotográfico (2004), a autora

Annateresa Fabris salienta o caráter ficcional inerente ao retrato fotográfico, resultado de um confronto entre “normas sociais e psicologia individual” (2004, p. 15). Partindo da hipótese de que as concepções contemporâneas de retrato fotográfico continuam permeadas pelas modalidades de representação do indivíduo no século XIX, Fabris reconhece no retrato fotográfico uma “atitude teatral”, na qual quem é retratado está inserido dentro de uma encenação, com o intuito de obter uma “idéia completa da pessoa” (2004, p. 36).

Segundo Fabris, uma das principais funções do retrato fotográfico no século XIX era representar o eu burguês, em ascensão (ver fig. 12, p. 35); privilégio restrito até então apenas para a aristocracia, através do retrato pictórico. O que um retrato visava, então, era “transformar em imagem a estabilidade e a legitimidade da burguesia graças a uma composição ordenada e unitária, que se inspira na pintura em voga”, de modo que não importava “representar a individualidade de cada cliente [o fotografado], mas, antes, conformar o arquétipo de uma classe ou de um grupo (...)” (2004, p. 31).

16 “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que

(36)

Mas o que dizer dos auto-retratos de Cindy Sherman? Se no século XIX o retrato fotográfico procurava captar uma “idéia completa da pessoa”, as fotografias de Sherman, ao invés, captam “várias idéias incompletas de si mesma”. De acordo com Naves,

O conceito de auto-retrato produzido por suas imagens não sugere a concepção de um eu autônomo e unitário, mas indica um eu-sintoma: que se inscreve na superfície como inacabado, angustiado, descontínuo em séries de representações, semblantes e disfarces diversos (1998, p. 25).

Para Fabris, as diversas personagens femininas de Sherman, evocadas em Untitled Film Stills, aproximam a atitude da artista de algumas estratégias utilizadas pelos ateliês

fotográficos do século XIX, “que convidavam o cliente a folhear álbuns, a examinar retratos estrategicamente distribuídos nas salas de espera a fim de mergulhar num universo visual que lhe sugeriria a pose e expressão mais adequadas” (2004, p. 59).

Uma após uma, cada imagem apresenta Sherman assumindo não uma, mas muitas identidades. Esse glossário de imagens de mulher, no qual Sherman é a mulher (é todas as

(37)

mulheres), chama a atenção pela capacidade da artista de mudar a própria aparência. Assim sendo, não é difícil comparar o trabalho de Sherman com o trabalho ficcional do ator.

De fato, termos conhecidos da prática teatral, como personagem, encenação, são constantes para se referir à arte de Sherman. Algumas de suas fotos, para citar alguns exemplos, são consideradas “imagens de tal modo teatralizadas que ameaçam dissolver o fato na ficção”, de acordo com Ricardo Fabbrini (2002, p. 180). Já nas palavras de Francis Frascina (1998, p. 84) algumas fotografias revelam “a própria Sherman, fantasiada, em ‘disfarce’ e num cenário teatral”. Observou-se, ainda, sobre a série Fashion, que suas criações

eram “anúncios grotescos [...] através de encenações absurdas como dentes falsos, cicatrizes, caretas, partes deformadas do corpo e poses pouco lisonjeiras” (GROSENICK, 2005, p. 305).

Nas três descrições citadas acima, nota-se que a aproximação do trabalho da artista ao universo da representação teatral se dá por uma noção implícita de teatral como exagero, falsidade, fake, disfarce, ou seja, pela artimanha de fingir ser alguma coisa ou alguém que não

se é. De fato, em cada fotografia, Sherman aparece com uma identidade diferente e faz isso através de roupas, adereços, maquiagem, próteses, posturas gestuais, mudança de ambientação em que as figuras atuam, e iluminação.

O travestimento é muito utilizado no teatro, e também no cinema e na televisão, e até mesmo na vida cotidiana, já que o indivíduo pode dialogar no espaço através de posturas físicas artificializadas, por roupas e atitudes que travestem seu caráter diante de outras pessoas. Mas, questionando as especificidades do fenômeno teatral, pode-se ver que algumas considerações exigem um olhar mais atencioso, a fim de responder à pergunta: que aspectos da obra de Sherman se aproximam, de fato, do qualitativo de teatral?

Foi fazendo essa pergunta que surgiu nesta pesquisa o termo teatralidade e a necessidade de conceituá-lo, pois minha hipótese é de que no trabalho da artista essa teatralidade funciona como um instrumento de mediação e está na base das discussões levantadas neste capítulo. Proponho, ao pesquisar a teatralidade, ampliar a leitura dos trabalhos da artista plástica, e fazendo isso, busco aproximar Sherman das discussões do campo teatral.

Procurarei sedimentar, nas páginas seguintes, aspectos dos auto-retratos de Sherman que permitem o fenômeno da teatralidade em sua obra, aspectos esses que podem servir de ferramentas para modos de construção da teatralidade na cena teatral, ou seja, no caso desta dissertação, que servem efetivamente para a pesquisa de linguagens no contexto da

performance, através da construção de 1A (UMA), fruto da pesquisa laboratorial, tendo como

(38)

I. 2 TEATRALIDADE NOS AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN

A teatralidade é um conceito que extrapola os limites do teatro. Serve como um fio condutor para o estudo do teatro e sua história e também é ferramenta heurística para o estudo da cultura, porque toca em questões como realidade, representação e identidade. A noção de teatralidade aparece, então, tanto em textos de Vsévolod Meyerhold (1874-1940) e Bertolt Brecht (1898-1956), como em escritos de filósofos como Jean-François-Lyotard (1924-1998) e Michel Foucault (1926-1984). Mas sendo um termo utilizado em diversas áreas do conhecimento, a teatralidade ganha abordagens e sentidos que variam de acordo com o autor. Por isso a dificuldade, ou a impossibilidade, de conceituá-lo claramente (FERAL, 2003, p. 46).

O termo teatralidade foi usado no início do século XX pelos russos Nicolas Evreinov (1879-1942) e Meyerhold, mas ganhou maior atenção a partir da década de 60, acompanhando as discussões sobre a literalidade, conceito que buscava identificar as especificidades da linguagem literária. Roland Barthes (1915-1980) define a teatralidade desta maneira:

(...) é o teatro menos o texto, é uma espessura de signos e de sensações que se edifica em cena a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior (apud PAVIS, 1999, p. 372).

A semiologia aplicada ao teatro tenta dar conta das especificidades do teatro, a partir do estudo dos signos teatrais, perguntando-se se o teatro detém um signo próprio, ou se a relação entre os signos é que caracteriza a especificidade do teatro. A teatralidade seria então o conjunto dos signos textuais, corporais e audiovisuais que se apresentam num espaço cênico ou textual diante de espectadores ou leitores.

Mas as investigações literárias, como lembra Juan Villegas (2000), não se restringem a utilizar o termo aos estudos teatrais, usando a teatralidade como metáfora para revelar a desnaturalização da subjetividade e seu caráter performático em personagens da literatura.

(39)

humana era uma encenação dirigida pelos deuses, até Shakespeare, em sua célebre frase “o mundo inteiro é um palco”. Na contemporaneidade, a sociologia e a antropologia farão suas correlações entre teatro e realidade, utilizando mesmo o termo teatralidade para aproximar teatro e outras formas artísticas de manifestações culturais não artísticas.

Já nas artes visuais, o termo teatralidade foi o responsável por uma discussão polêmica na crítica da escultura moderna, iniciada no ensaio Arte e Objetude (1967) de Michael Fried.

Para o crítico americano, a arte “degenera-se à medida que se aproxima da condição do teatro” (apud ARCHER, 2001, p. 58), atitude essa que Fried observava como uma característica da escultura minimalista. Acreditando que o sucesso da arte modernista se encontrava na auto-consciência de suas especificidades formais, e no trabalho sobre sua própria “essência irredutível”, a garantia desse sucesso passaria “a depender cada vez mais de sua capacidade de vencer o teatro” (apud KRAUSS, 2001, p. 243).

Rosalind Krauss, no livro Caminhos da escultura moderna, ao refletir sobre a

escultura minimalista e sobre os artistas dessa corrente, demonstra a necessidade de compreensão do termo teatralidade:

(...) ‘teatralidade’ é um termo de sentido amplo, que se pode vincular tanto à arte cinética como à arte de luzes, e à escultura ambiental e aos quadros vivos, além de às artes performáticas mais explícitas, como os happenings ou os acessórios cênicos (...) devemos procurar esclarecer o termo ‘teatralidade’. Isso por ser ela demasiado densa e confusa. Está repleta de contradições internas, de motivos e intenções conflitantes. A questão não é saber se determinados artistas pretenderam apoderar-se do espaço do palco ou explorar o tempo dramático projetado pelo movimento real; a questão é saber por que pretenderiam eles apoderar-se ou fazer uso dessas coisas e com que objetivos estéticos (2001, p. 243).

No ensaio The Artful Disposition: Theatricality, Cinema, and Social Context in Contemporary Photography, que compõe o catálogo Acting de Part: Photography as theatre

(2006), a autora Karen Henry se refere à teatralidade como uma característica e um dispositivo bastante usados na fotografia contemporânea, com o potencial de refletir a experiência social e o constante fluxo entre realidade e ficção.

(40)

para quem o teatro é uma condição de comunicação e sobrevivência” (2006, p. 142, trad. nossa).17

A autora sugere, sem esmiuçar e problematizar o assunto, que as fotografias de Sherman apresentam dois aspectos importantes que permeiam a teatralidade: um, que é referente “à condição das imagens” e outro, referente à performatividade denunciada pelos procedimentos de construção da imagem, o que significa que a teatralidade aparece tanto como um princípio formal quanto “temático” na obra da artista.

Proponho tratar, no capítulo seguinte, esses aspectos da teatralidade evocada nas fotografias de Sherman, e apenas sugerida por Karen Henry, procurando trazer à luz questões que envolvem a teatralidade. Uso principalmente como referência bibliográfica os estudos dos teatrólogos Juan Villegas, Josette Féral e Oscar Cornago – todos autores que se debruçaram sobre o estudo do termo em questão.

Para Féral, a teatralidade trata de conceitos amplos, que ela divide em três principais “vertentes”: uma é a teatralidade em sua relação com a realidade e a vida, a outra é a teatralidade inerente ao teatro e a última é a teatralidade ligada ao fenômeno da recepção. Em cada uma dessas abordagens, a teatralidade é utilizada com noções distintas, o que não significa que são abordagens que se excluem; pelo contrário, cada uma dá suporte às outras:

A palavra teatralidade designa algumas características do fenômeno teatral que implicam o descobrimento de certos signos específicos [...] A teatralidade apareceria, então, seja como um procedimento de produção, seja como um procedimento de comunicação, seja, finalmente, como um procedimento de percepção (2003, p. 70, trad. nossa)18.

Parto dessas três abordagens, buscando esclarecer que, na obra de Sherman, a teatralidade pode ser pensada:

1 – como procedimento que enfatiza a representação como uma condição das relações sociais (procedimento de comunicação);

2 – como fenômeno que “existe em função de”, ou seja, que apenas se completa em relação a alguém que olha, através de um olhar que reconhece o caráter performático do objeto ou evento observado (procedimento de percepção).

17 “She is a shape-shifter for whom theatre is a condition of communication and survival”. 18 “La palabra

teatralidad designa, según los enfoques, algunas características del fenómeno teatral que implican

el descubrimiento de ciertos signos específicos [...]. La teatralidad aparecería entonces, ya como un

Imagem

Fig. 4  Fig. 5  Fig. 6
Fig. 8  Fig. 9
Fig. 11 Fig. 10
Fig. 19  Fig. 20
+3

Referências

Documentos relacionados