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Metamorfoses do corpo: Experimentos com vídeo, fotografia e projeção: trabalhar diante

FASES DO TRABALHO

LABORATÓRIO D (ESTÚDIO)

1. Metamorfoses do corpo: Experimentos com vídeo, fotografia e projeção: trabalhar diante

da câmera fotográfica ou de vídeo. Captar, com luz de estúdio, através de fotografia ou vídeo, algumas partituras criadas no laboratório A e B. Depois projetar as figuras capturadas pela lente, em tamanho natural no meu corpo, que ganha o estatuto de tela de projeção (ver figurino branco). Como se relacionar com imagens projetadas? Que sentido brota desta opção de trabalhar com imagem?

De modo geral, os ensaios respeitaram as fases de trabalho descritas acima. Apenas o LABORATÓRIO D, em estúdio, que imaginei ser a última etapa a fazer, acabou acontecendo algumas vezes durante o processo, devido à necessidade que tinha de ver algumas partituras criadas, e o impacto visual do figurino sobre essas partituras.

O LABORATÓRIO A, no qual busquei pesquisar o que chamei de gestos figurativos, pretendeu, através de improvisações com os figurinos, elaborar pequenas partituras que fossem mais ou menos as mesmas para todas as figuras. Queria trabalhar em cima de uma característica forte dos auto-retratos de Sherman, referente às poses, que remetem a um momento logo “após” uma ação (ou situação) ou “anterior” a uma ação (ou situação). Nas palavras da artista, sobre a série Untitled Film Stills,

Algumas das mulheres nas cenas externas [e internas] poderiam estar sozinhas, ou sendo assistidas ou seguidas – as cenas que eu escolhia eram sempre aquelas entre as ações. Essas mulheres estão se encaminhando para a ação (ou para sua desconstrução)... ou acabaram de vir de um confronto (ou um encontro) (SHERMAN, 2003, p. 9, trad. nossa)79.

Na foto #27 (fig. 18, p. 60), por exemplo, a personagem não está chorando, mas já chorou, não está fumando ou bebendo, mas segurando um cigarro. Na foto #6 (fig. 13, p. 51), a personagem não está se olhando no espelho e nem sequer olhando para nada, mas apenas segurando um espelho e deitada na cama. Na foto #3 (fig. 12, p. 44), a personagem está na cozinha, de frente para a pia, não está lavando a louça, mas olhando para algo que se encontra fora do enquadramento da foto.

Busquei trabalhar esses aspectos nos ensaios a partir de gestos e ações simples como caminhar, sentar (no chão, na cadeira), levantar, olhar (sem definir/imaginar para quem ou o que estava olhando), correr, espirrar, esperar. Porém, cada figurino modificava os modos de sentar, de levantar, e até mesmo de olhar e correr. Correr de sapato alto modifica a corrida, pois altera o equilíbrio do corpo, que se direciona para a frente, deslocando o peso para o metatarso (figura capuz vermelho). O sentar também muda, quando se está com um vestido justo e curto (dark balada). A camisola (figura vovó), também influencia na caminhada, porque a camisola, que é longa, é relativamente justa e não permite passos largos; assim como no momento de sentar, modifica a decida porque o decote é grande e quando se inclina o tronco o seio aparece. Por outro lado, as figuras, querendo ou não suscitam o que eu chamaria de “afetos”, que são maneiras particulares de se portar (comportar), como a figura vovó, que me reportava a imagens pessoais (e estereotipadas) de uma vovó simpática, ceguinha, corcunda. Ou a figura Pina Baush, que denominei desse modo porque o vestido, super confortável, leve, me recordava os figurinos das dançarinas de Pina Baush. A vontade, quando vestia o vestido, era de sair girando e dançando.

79 “Some of the women in the outdoor shots could be alone, or being watched or followed – the shots I would choose were always the ones in-between the action. These women are on their way to wherever the action is (ot to their doom)… or have just come from a confrontation (or a tryst)”.

A partir dessa pesquisa, criei as partituras que foram projetadas na tela, na cena. Tratam-se, digamos assim, da mesma partitura, mas com pequenas variações. A partitura é “simples”: figura de costas, vira para frente. Espera. Olha para um lado (como se algo repentinamente chamasse a sua atenção). Caminha para uma direção e abaixa. Levanta. Retorna para a posição anterior. Espera. Corre de um lado para o outro.

Nesse nível de composição do movimento, fixei-me no campo da eucinética, através de um laboratório sobre as dinâmicas do movimento: contra-peso, oposições, qualidades de energia (leve, pesado, rarefeito), variações de ritmos, etc.

Também procurei, nessa partitura, que as figuras “se fizessem” cientes de estarem sendo observadas. Desenvolvi isso através do olhar, que, às vezes, se volta para o que convencionei ser a frente da cena (nos ensaios). Filmei alguns ensaios para criar essa relação direta com um olhar externo.

O LABORATÓRIO B propunha a elaboração de movimentos abstratos, de modo a compor partituras dançadas, ou, em outros termos, coreografia80. Nesse momento, parti de improvisações guiadas por música, e sempre pesquisando a partir das figuras. Procurei trabalhar sobre deslocamentos e desenhos espaciais, pesquisando acerca da coreologia do movimento, através de um resgate dos princípios desenvolvidos no grupo de pesquisa, como alguns deslocamentos dados por passos já codificados e também desenhos espaciais dados pela articulação organizada das extremidades (braços e pernas) no espaço, construindo desenhos geométricos, curvilíneos, etc.

Os figurinos trouxeram limitações a determinados movimentos, assim como estimularam a criação de outros ou também realçaram certos gestos. A figura “expressionista”, por exemplo, por valorizar o busto nu, favorecia os desenhos com os braços. A saia branca, comprida, volumosa e pesada, por causa das muitas camadas de tecido, favorecia uma lentidão nos deslocamentos no espaço, de modo que os passos eram menores. Já a figura “Pina Baush” favoreceu os desenhos com as pernas, que nos movimentos realçou o vestido, feito de um tecido leve. A figura “dark balada” já não favoreceu desenhos com as pernas, porque a saia era muito curta, e aberturas de perna levantam o vestido justo. E assim por diante.

O trabalho com a atriz-dançarina Barbara Biscaro, para a montagem do espetáculo

Butterfly, influenciou a pesquisa laboratorial descrita acima. No grupo de pesquisa, em alguns

ensaios, trabalhávamos em frente ao espelho, onde o professor e coreógrafo Milton de

80 “O que é uma coreografia? É um conjunto de movimentos que possui um nexo próprio, quer dizer, uma lógica de movimento” (GIL, 2005, p. 67).

Andrade, passava para o grupo alguns movimentos criados por ele. Em seguida partíamos (o grupo) para a improvisação, respeitando os movimentos passados, mas propondo e pesquisando junções, ligações para esses gestos. Por exemplo: aprendíamos os movimentos A, B, C, D e E. Repetíamos varias vezes até compreender (no corpo) os princípios que regiam os movimentos. Nas improvisações, partíamos desses movimentos, mas transformando-os, sem perder a qualidade de cada movimento. Assim, compúnhamos seqüências como A-A-E- A-C-B, ou E-D-C-A-B, ou também criávamos o movimento F, para juntar o B com o E.

Nesses ensaios, Biscaro usava figurinos, próximos do que ela imaginava para Kate, personagem da ópera Madame Butterfly, de Puccini. Como a princípio os movimentos eram os mesmos para todos os integrantes do grupo, se tornou bastante evidente a influência do figurino para o movimento. Giros eram valorizados pela saia vermelha e larga que a atriz usava. Desenhos espaciais com as pernas se tornavam cômicos com outro figurino usado pela atriz, que vestia uma saia preta relativamente justa, de modo que toda vez que ela tentava realizar os movimentos com a perna, a saia impedia, “desviando” a perna para um outro movimento que era hilário. Essas experiências com figurino, que geraram um efeito cômico, fizeram a atriz experimentar deformar partes de seu corpo, a fim de limitar mais os movimentos. Uma de suas figuras, que permaneceu no espetáculo posteriormente, consiste numa saia preta, justa, e numa camiseta branca. Mas a atriz colocou um enchimento nos ombros, de modo que ficou parecendo que a atriz não tinha pescoço e que seus seios ficavam na altura do umbigo. Também colocou uma tala no braço direito, de modo que não conseguisse dobrar o braço. Essa limitação gerou uma seqüência de movimentos muito cômicos, levando à criação da cena mais divertida do espetáculo, feita em parceria com o ator-dançarino Samuel Romão.

Essas experiências observadas na montagem do espetáculo Butterfly serviram como uma importante referência na composição de movimentos.

O LABORATÓRIO C previu a improvisação sobre trocas de figuras, modos de compor e decompor em cena as 9 figuras criadas. Porém esse laboratório teve curta duração. Ao longo dos ensaios (laboratórios A e B), conforme os resultados iam aparecendo, e também pelas conversas com o artista plástico Roberto Freitas, a montagem do espetáculo foi se esclarecendo, de modo que o jogo de transformação entre uma personagem e outra se daria na projeção, que projetaria sobre a figura “mulher tela” as personagens em tamanho natural (do meu tamanho).

As personagens se projetariam sobre a figura “mulher tela”. Quando escolhi o macacão branco, pensava que ele representava o oposto de um figurino de dança, que

geralmente procura realçar o corpo da bailarina em cena, evidenciando os músculos e as curvas do corpo. O macacão branco, comprado em loja de material de construção, serve para proteger o trabalhador do contágio com materiais tóxicos. Essa função “anti-contágio” da roupa me sugeriu uma “imagem” interessante, pois alude, a meu ver, a uma negação, ou tentativa de negação, de valores externos, de contato com o mundo social.

Comecei a ensaiar apenas com a figura “mulher-tela”, buscando trazer para a movimentação os materiais recolhidos nos laboratórios anteriores. Alguns gestos que surgiram durante improvisações com as 9 figuras criadas, por exemplo, foram inseridos nessa nova pesquisa. Tratava-se, neste momento de compor a partitura a partir das pequenas partituras elaboradas ao longo da pesquisa, dos materiais recolhidos das improvisações.

Mas, como se previa, em alguns momentos específicos da coreografia, entrariam projeções das personagens sobre meu corpo, de modo que para poder estruturar a coreografia, se fazia necessário definir exatamente o que seria projetado, em que momentos, e qual a duração.

Era o momento, então, de filmar as personagens, e montar o espetáculo.