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CINDY SHERMAN: AUTO-RETRATO E TEATRALIDADE

I. 1 OS AUTO-RETRATOS DE CINDY SHERMAN

I. 1.1 IDENTIDADE E RETRATO FOTOGRÁFICO: A ENCENAÇÃO DO “EU”

Das primeiras vezes em que me deparei com as fotografias de Sherman, em específico com as que integram as séries Untitled Film Stills, Rear-Screen Projection, Centerfolds e

Fashion, o que me chamou a atenção foram os modos como aquela mesma mulher aparecia

transformada. Já havia sido avisada de antemão de que se tratava da mesma pessoa, e de que era a própria artista a responsável por capturar a sua presença diante da lente atenta da câmera fotográfica, o que não deixou de causar certa hesitação de minha parte, diante de algumas imagens, quanto à garantia de estar diante sempre de retratos da mesma mulher. Mas, olhando atentamente e repetidas vezes para as fotografias, se torna clara a presença de Sherman nas imagens, uma vez que sua fisiologia (fenótipo) se mantém, o que não se poderia dizer acerca de uma artista como a francesa Orlan, que se submete a milhares de cirurgias plásticas, também documentadas por fotos. Indo em outra direção que Sherman, Orlan, orientada pelos retratos consagrados da história da pintura, reconstrói partes de seu rosto e corpo tendo como modelo “a fronte da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, a arcada da Vênus de O nascimento de

Vênus, de Sandro Botticelli, o nariz da Madona do grão-duque, de Rafael, a boca de Miss Louise O’Murphy, de François Boucher etc.” (FABBRINI, 2002, p. 176).

Não tão agressivos como Orlan, os auto-retratos de Sherman se aproximam mais de um jogo de quebra-cabeça, ou daquelas brincadeiras infantis de fantasiar-se com as roupas da mãe ou de vestir as bonecas com vários modelos diferentes. Nesses casos, o jogo de monta e desmonta possibilita que as transformações possam sempre ser desfeitas, sem o risco de passar por uma mudança definitiva que não permita o retorno para o “original”, para o ponto de partida, ou, em outras palavras, para aquele lugar que permite a criação de tantas outras possibilidades de ser e de experimentar. Esse lugar, no caso de Sherman, seria a materialidade de sua presença, seu corpo.

Mas diante de tantas possibilidades criadas por Sherman de auto-transformação, qual entre elas, ou, por detrás delas, revela a Sherman “original”, aquela pessoa que se mantém, íntegra, fiel ao mais íntimo do seu ser? Essa é uma questão que pode ser levantada a partir da análise das fotografias de Sherman, além de tantas outras que passam a surgir a partir dessa.

A crítica especializada das artes visuais tende a caminhar para direções diversas, mas partindo da mesma problemática apresentada na obra de Sherman, que é a construção de identidades e o retrato fotográfico usado como meio de “captura” dessas identidades e do

vazio que se abre entre o que se é (ou se deseja ser), e o que se representa (aparência) – entre identidade e imagem do corpo.

Longe de buscar uma resposta e solução sobre a constituição de sujeito, personalidade, subjetividade, interioridade, os auto-retratos de Sherman permitem reflexões que permeiam essas noções, assim como também podem ser enquadradas dentro de discussões acerca da arte e do artista ligadas à noção de originalidade. Vale lembrar que uma característica forte nos trabalhos de Sherman são as referências utilizadas pela artista, que se vale de reproduzir objetos que por si só já são reproduções, como o cinema, a foto publicitária, as pinturas clássicas, etc. Porém, suas reproduções não são cópias, nem simples paródias do que a cultura, no caso a americana, produz como mercadoria de arte e entretenimento para ser consumida.

Uma leitura pós-moderna dos auto-retratos de Sherman, como Vladimir Safatle salienta, indica a variação nas maneiras de Sherman apresentar-se “como a afirmação de uma subjetividade enfim liberada do Eu unificador e capaz de gozar da plasticidade de seus mascaramentos” (2006, p. 2). A identidade, na contemporaneidade, deixa de ser um lugar estável de afirmação contínua e duradoura para passar a significar um lugar de sucessivas rupturas e reconfigurações constantes na construção performativa de identidade(s), agora pensada no plural.

No livro A Identidade Cultural na Pós-modernidade, o sociólogo Stuart Hall procura explorar questões relativas à problemática da identidade na pós-modernidade, dando atenção para os acontecimentos e teorias que contribuíram na mudança de enfoque e crise na noção de identidade. Para o autor, é possível se observar uma perda de um ‘sentido de si’ estável, o que se costuma chamar de descentração do sujeito12, que acompanha uma mudança estrutural nos traços formais da vida cultural, através de novos estilos de vida social e ordem econômica. Diferente do “sujeito do Iluminismo” (cartesiano) e do “sujeito sociológico”13, o sujeito pós- moderno dispõe de uma identidade que “torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e

12 Vale lembrar que a palavra sujeito vem do latim, subjectu, e faz referência àquele que se submete. No Novo Dicionário Aurélio, a definição de sujeito é: “Adj. 1. Súdito (1). 2. Escravizado, cativo. 3. Obrigado,

constrangido, adstrito. 4. Que se sujeita à vontade dos outros; obediente, dócil. 5. Dependente, submetido”. 13 Hall descreve o sujeito iluminista como totalmente centrado, unificado, com um sentimento estável de sua própria identidade e função social. Segundo o autor, alguns movimentos contribuíram para essa noção de sujeito estável, como o Protestantismo (a igreja não precisava mais mediar a relação do homem com Deus), e também as reflexões de Descartes (Penso, logo existo), concebendo o homem como a medida das coisas, sendo que as leis e as formas de sociedade são provenientes desse homem “racional”, formado pela memória do passado e pela conseqüência de suas ações. Já o sujeito sociológico é reflexo da crescente complexidade do mundo moderno. O sujeito não é mais visto como um núcleo interior autônomo, mas como fruto da relação com outras pessoas. Nesse caso, “a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade”, (p. 11) tendo o sujeito ainda um eu “verdadeiro”, interior, mas em transformação e receptível às condições sociais exteriores: sujeito que internaliza valores e significados sociais, e ao mesmo tempo as forma.

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (2004, p. 13).

Dentre os “avanços” na teoria social e nas ciências humanas do século XX, apresentadas por Hall, que tiveram grande impacto sobre a noção de identidade, destaca-se a psicanálise lacaniana, e o conhecido “estádio do espelho”, no qual o francês Jacques Lacan procura explicar a estruturação psíquica do eu, que, no caso, identifica a identidade do sujeito como uma função do olhar de reconhecimento do Outro. Lacan, inclusive, é bastante utilizado pela crítica americana das artes visuais, a exemplo da historiadora e crítica de arte Rosalind Krauss e Hal Foster, que usam esse viés psicanalítico para a leitura da obra de Sherman, mas buscando conclusões divergentes.

Nas palavras de Stuart Hall,

A formação do eu no “olhar” do Outro, de acordo com Lacan, inicia a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela mesma e é, assim, o momento da sua entrada nos vários sistemas de representação simbólica – incluindo a língua, a cultura e a diferença sexual. Os sentimentos contraditórios e não-resolvidos que acompanham essa difícil entrada (o sentimento dividido entre amor e ódio pelo pai, o conflito entre o desejo de agradar e o impulso de rejeitar a mãe, a divisão do eu entre suas partes “boa” e “má”, a negação de sua parte masculina ou feminina e assim por diante), que são aspectos-chave da “formação inconsciente do sujeito” e que deixam o sujeito “dividido”, permanecem com a pessoa por toda a vida. Entretanto, embora o sujeito esteja sempre partido ou dividido, ele vivencia sua própria identidade como se ela estivesse reunida e “resolvida”, ou unificada, como resultado da fantasia de si mesmo como uma “pessoa” unificada que ele formou na fase do espelho. Essa, de acordo com esse tipo de pensamento psicanalítico, é a origem contraditória da “identidade” (2004, p. 37-38).

É importante reter dessa discussão levantada pelos estudos psicanalíticos14, que tiveram e têm, principalmente depois da década de 60 um grande impacto no pensamento filosófico, sociológico e artístico da contemporaneidade, o fato de que a identidade passa a ser entendida não como um dado natural, presente na consciência a partir do nascimento, mas como fruto de processos inconscientes, em constante formação e não separada da linguagem. Continuando, com as palavras de Hall:

Assim, a identidade é realmente algo formado (...) Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade (...). A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós

14

Evidentemente que a discussão psicanalítica acerca da constituição do eu é muito mais complexa, delicada e exige um estudo aprofundado e cuidadoso para não se cair em senso comum, mas, para a discussão que levanto nesse corpo de texto, vale para ressaltar alguns aspectos que permeiam a análise dos auto-retratos de Sherman.

imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (2004, p. 39).

Tendo essa perspectiva de constituição de identidade, no mundo atual, pós-moderno, na era da globalização, da modernidade tardia, época de mercadorias descartáveis e do incentivo às constantes reformulações de guarda roupa, móveis, utensílios domésticos, automóveis etc., o sujeito (aquele que se sujeita) é incentivado ao múltiplo, às variações; e o corpo, nesse ambiente, lembra Safatle, torna-se o “espaço de afirmação da multiplicidade” (2006, p. 2).

O trabalho de Sherman, por esse viés, pode ser interpretado como a construção de “uma gramática de aparências compostas por gestos, poses e estilos plenamente codificados,

prêt-à-interpréter, colocando em cena alguns fantasmas fundamentais do feminino no

ocidente” (SAFATLE, 2006, p. 2). Fantasmas esses que assombram o imaginário masculino e feminino em diversas esferas da vida. Sherman esclarece: "Embora eu nunca tenha considerado a minha obra como feminista ou como uma declaração política, é certo que tudo o que lá está é desenhado a partir das minhas observações, enquanto mulher nesta cultura" (SHERMAN apud LARSEN, 1999, p. 53).

Por referenciar produtos culturais de grande alcance comercial, como as revistas de moda, televisão e cinema, costuma-se concluir, a exemplo de feministas como Laura Mulvey, que os auto-retratos de Sherman fazem uma crítica aos modelos de mulher vinculados por esses meios de comunicação e a influência que exercem na constituição da identidade feminina, já que Sherman aparece, em cada retrato, assumindo um estereótipo, seja da mulher independente, da dona de casa, da mulher sensual ou da mulher vulnerável. Porém, segundo Rosalind Krauss, os retratos de Sherman poderiam ser lidos como simples crítica às imagens de mulher produzidas pela cultura americana caso Sherman fotografasse outras mulheres que não ela própria. Mas, ao ser o próprio objeto de sua pesquisa, Sherman traz à tona uma discussão sobre a idéia de artista como “fonte de originalidade, de reação subjetiva, ou como se ele garantisse uma distância crítica em relação a um mundo com que se defronta, porém sem pertencer a ele” (2002, p. 224).

Hal Foster também vê nas fotografias de Sherman a impossibilidade de conjugar o artista à noção de originalidade, uma vez que Sherman usa uma gramática que não lhe é própria, mas que é claramente “roubada” dos meios de comunicação. “Em sua obra”, escreve Foster, “vemos que expressar é em grande medida replicar um modelo” (1996, p. 100). Pois

seus “eus”, retratados nas fotos, incluindo aí também o “eu” de artista, são, na obra de Sherman, apresentados como réplicas, como construções fictícias formadas a partir de referências externas (cinema, revistas de moda etc) que oferecem modelos para a constituição da identidade. Mesmo em poses confessionais, “o que se constrói é menos a mulher natural do que o artifício expressivo – a expressão como artifício” (FOSTER, 1996, p. 100).

Mas Sherman parece não aceitar passivamente essas identidades difundidas pelos meios de comunicação. Sobre o processo de elaboração da série Untitled Film Stills, Sherman comenta:

Suponho inconscientemente, ou semiconscientemente, no máximo, que eu estava lutando com algum tipo de tumulto meu sobre entender as mulheres. As personagens não eram modelos, nem atrizes estúpidas. Eram mulheres esforçando- se em alguma coisa, mas eu não sabia disso. As roupas faziam elas parecerem de certa forma, mas aí você olha as expressões, [...] e gostaria de saber se talvez “elas” não são o que as roupas estão comunicando. Eu não estava trabalhando com uma

comunicação consciente, mas definitivamente eu sentia que as personagens

estavam questionando alguma coisa – talvez estivessem sendo forçadas para um determinado papel. Ao mesmo tempo, esses papéis estão em um filme: as mulheres não estão sendo realistas, estão atuando. Existem tantos graus de artificialidade. Eu gostava de toda aquela confusão de ambigüidades (SHERMAN, 2003, p. 9, trad. nossa).15

“O que é meu no meu corpo?” Essa parece ser uma pergunta que poderia ser feita por Sherman, através das personagens de Untitled Film Stills. Uma pergunta que não oferece respostas prontas e fáceis, nem mesmo para Sherman, que, nesse enunciado, deixa claro o fato de que criar e fotografar suas personagens se constituía num ato de reflexão que não era separado do ato de confecção de seus auto-retratos. Nessa perspectiva, Sherman não se coloca à parte do imaginário contemporâneo difundido pela indústria cultural, mas se coloca no centro da discussão, pesquisando no próprio corpo, na construção de sua(s) auto-imagem(s), o que, dela, se conforma às identidades de mulher divulgadas pela mídia.

Agora, vale ressaltar a escolha da fotografia, como meio de expressão artística fundamental para a problemática da captura da “imagem de si”, presente na obra de Sherman. Pois, a princípio, a fotografia detém a possibilidade de apreensão da realidade, tal qual ela se apresenta diante da objetiva. Roland Barthes, em A Câmara Clara (1984), lembra que uma

15 “I suppose unconsciously, or semiconsciously at best, I was wrestling with some sort of turmoil of my own about understanding women. The characters weren’t dummies; they weren’t just airhead actresses. They were women struggling with something but I didn’t know what. The clothes make them seem a certain way, but then you look at their expression, […] and wonder if maybe ‘they’ are not what the clothes are communicating. I wasn’t working with a raised ‘awareness’, but I definitely felt that the character were questioning something – perhaps being forced into a certain role. At the same time, those roles are in a film: the women aren’t being lifelike, they’re acting. There are some many levels of artifice. I liked that whole jumble of ambiguity.”

fotografia sempre traz consigo o seu referente, já que não há foto “sem alguma coisa ou alguém” (p. 15)16. Mas o que dizer do retrato fotográfico, e do que ele consegue reter da pessoa fotografada? De acordo com Barthes,

A Foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí se afrontam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele que ele se serve para exibir sua arte. Em outras palavras, ato curioso: não paro de me imitar, e é por isso que, cada vez que me faço (que me deixo) fotografar, sou infalivelmente tocado por uma sensação de inautenticidade (...) Imaginariamente, a Fotografia (aquela de que tenho a intenção) representa esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: (...) torno-me verdadeiramente espectro. (1984, p. 27)

Barthes, nesse enunciado esclarece o caráter performático adotado por ele ao ser fotografado, revelando que por trás da “imagem de si” sempre existe algo de imaginário e ficcional, que tenta dar conta de expressar de maneira fiel aquilo que se imagina que é. Porém, o que fica é apenas a sensação de uma tentativa, nunca realizada, de revelação de si, derrotada pela constatação da apreensão apenas do (a)parecer.

No livro Identidades Virtuais – uma leitura do Retrato Fotográfico (2004), a autora Annateresa Fabris salienta o caráter ficcional inerente ao retrato fotográfico, resultado de um confronto entre “normas sociais e psicologia individual” (2004, p. 15). Partindo da hipótese de que as concepções contemporâneas de retrato fotográfico continuam permeadas pelas modalidades de representação do indivíduo no século XIX, Fabris reconhece no retrato fotográfico uma “atitude teatral”, na qual quem é retratado está inserido dentro de uma encenação, com o intuito de obter uma “idéia completa da pessoa” (2004, p. 36).

Segundo Fabris, uma das principais funções do retrato fotográfico no século XIX era representar o eu burguês, em ascensão (ver fig. 12, p. 35); privilégio restrito até então apenas para a aristocracia, através do retrato pictórico. O que um retrato visava, então, era “transformar em imagem a estabilidade e a legitimidade da burguesia graças a uma composição ordenada e unitária, que se inspira na pintura em voga”, de modo que não importava “representar a individualidade de cada cliente [o fotografado], mas, antes, conformar o arquétipo de uma classe ou de um grupo (...)” (2004, p. 31).

16 “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos” (p. 16).

Mas o que dizer dos auto-retratos de Cindy Sherman? Se no século XIX o retrato fotográfico procurava captar uma “idéia completa da pessoa”, as fotografias de Sherman, ao invés, captam “várias idéias incompletas de si mesma”. De acordo com Naves,

O conceito de auto-retrato produzido por suas imagens não sugere a concepção de um eu autônomo e unitário, mas indica um eu-sintoma: que se inscreve na superfície como inacabado, angustiado, descontínuo em séries de representações, semblantes e disfarces diversos (1998, p. 25).

Para Fabris, as diversas personagens femininas de Sherman, evocadas em Untitled

Film Stills, aproximam a atitude da artista de algumas estratégias utilizadas pelos ateliês

fotográficos do século XIX, “que convidavam o cliente a folhear álbuns, a examinar retratos estrategicamente distribuídos nas salas de espera a fim de mergulhar num universo visual que lhe sugeriria a pose e expressão mais adequadas” (2004, p. 59).

Uma após uma, cada imagem apresenta Sherman assumindo não uma, mas muitas identidades. Esse glossário de imagens de mulher, no qual Sherman é a mulher (é todas as

mulheres), chama a atenção pela capacidade da artista de mudar a própria aparência. Assim sendo, não é difícil comparar o trabalho de Sherman com o trabalho ficcional do ator.

De fato, termos conhecidos da prática teatral, como personagem, encenação, são constantes para se referir à arte de Sherman. Algumas de suas fotos, para citar alguns exemplos, são consideradas “imagens de tal modo teatralizadas que ameaçam dissolver o fato na ficção”, de acordo com Ricardo Fabbrini (2002, p. 180). Já nas palavras de Francis Frascina (1998, p. 84) algumas fotografias revelam “a própria Sherman, fantasiada, em ‘disfarce’ e num cenário teatral”. Observou-se, ainda, sobre a série Fashion, que suas criações eram “anúncios grotescos [...] através de encenações absurdas como dentes falsos, cicatrizes, caretas, partes deformadas do corpo e poses pouco lisonjeiras” (GROSENICK, 2005, p. 305).

Nas três descrições citadas acima, nota-se que a aproximação do trabalho da artista ao universo da representação teatral se dá por uma noção implícita de teatral como exagero, falsidade, fake, disfarce, ou seja, pela artimanha de fingir ser alguma coisa ou alguém que não se é. De fato, em cada fotografia, Sherman aparece com uma identidade diferente e faz isso através de roupas, adereços, maquiagem, próteses, posturas gestuais, mudança de ambientação em que as figuras atuam, e iluminação.

O travestimento é muito utilizado no teatro, e também no cinema e na televisão, e até mesmo na vida cotidiana, já que o indivíduo pode dialogar no espaço através de posturas físicas artificializadas, por roupas e atitudes que travestem seu caráter diante de outras pessoas. Mas, questionando as especificidades do fenômeno teatral, pode-se ver que algumas considerações exigem um olhar mais atencioso, a fim de responder à pergunta: que aspectos da obra de Sherman se aproximam, de fato, do qualitativo de teatral?

Foi fazendo essa pergunta que surgiu nesta pesquisa o termo teatralidade e a necessidade de conceituá-lo, pois minha hipótese é de que no trabalho da artista essa teatralidade funciona como um instrumento de mediação e está na base das discussões