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Duas perspectivas sobre o estudo da resiliência: o modelo ecológico e o modelo construtivista

Factores Protectores Face ao Risco Psicossocial na Adolescência: O Estudo da Resiliência

3. Estudar a resiliência nos adolescentes

3.3. Duas perspectivas sobre o estudo da resiliência: o modelo ecológico e o modelo construtivista

A partir do momento em que os investigadores interessados no estudo da resiliência passaram a adoptar uma perspectiva ecológica da resiliência, os termos “invulnerável” ou “invencível” perderam utilidade uma vez que, segundo diversos autores (McGloin & Widom, 2001; Schoon & Parsons, 2002; Olsson et al., 2003), três pressupostos estão associadas a esta terminologia: 1) na etiologia do sucesso são determinantes os factores constitucionais; 2) o sucesso abarcaria várias áreas de funcionamento; 3) o sucesso é estático e permanente. No entanto, como salientam McGloin & Widom (2001), temos de considerar que a ausência de resultados negativos ou problemáticos no desenvolvimento pode ser devido, quer a factores constitucionais, quer a factores ambientais. Deste modo, uma pessoa pode ser bem sucedida numa área de funcionamento mas ser mal sucedida noutra; pode ser bem sucedida num momento do seu percurso de vida, vindo contudo mais tarde a fracassar ou a manifestar um funcionamento menos adaptativo.

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O modelo ecológico enfatiza as contribuições de inúmeras variáveis ambientais para o desenvolvimento infantil nas suas diversas áreas (Sameroff, 2000). As abordagens ecológicas ao estudo da resiliência derivam da Teoria dos Sistemas e preconizam o estabelecimento de relações preditivas entre os factores de risco e os factores protectores, as quais se processam através de uma causalidade circular e de processos transaccionais que suportam a resiliência. Segundo o paradigma ecológico, a resiliência é definida como saúde apesar da existência de adversidade (Masten et al., 1999). LeBlanc, Talbot e Craig (2005) concebem a saúde psicossocial como um dos componentes da resiliência, consistindo em recursos psicossociais internos que são modelados pelo ambiente do indivíduo.

Nesta linha de pensamento, a adaptação individual está associada às características individuais, mas é também influenciada por factores externos à criança, como sejam um ambiente familiar suportivo, ou o apoio emocional e instrumental proveniente do ambiente social mais vasto.

Como exemplo de recursos de resiliência têm sido referidas: as características da personalidade – por exemplo, o nível intelectual e a capacidade de resolução de problemas ou estratégias de coping, que reduzem ou evitam resultados desenvolvimentais negativos (Fergus & Zimmerman, 2005), apresentar uma auto-estima ou um auto-conceito elevados (Lerner, Walsh & Howard, 1998), ou ainda, possuir perspectivas e projectos de futuro (Aronowitz & Morrison-Beedy, 2004); têm sido sugeridas diferenças relativas à forma como os rapazes e as raparigas lidam com diferentes adversidades (Herrera & McCloskey, 2001); o suporte familiar, nomeadamente os vínculos às figuras parentais (Fergusson & Horwood, 2003) ou a qualidade da parentalidade (Armstrong, Bernie-Lefcovitch & Ungar,

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2005); as relações extra-familiares, nomeadamente, a existência de um adulto do contexto extra-familiar ao qual a criança se vinculou significativamente (por exemplo, um professor) (Crosnoe & Elder, 2004) e ainda, o sentimento de pertença a um grupo social (por exemplo, religioso) como um recurso externo importante para o saudável desenvolvimento do adolescente, ao ter um papel protector face às circunstâncias de risco ou à adversidade psicossocial (Carothers, Borkowski, Lefever & Whitman, 2005).

Uma questão importante que se coloca no estudo da resiliência é em que medida os processos que promovem as competências nas crianças e adolescentes são universais (i.e., comparáveis entre diferentes populações) ou, por outro lado, específicos (i.e., a sua eficácia difere consoante o contexto social e as dotações individuais) (Wyman et al., 2003). Se encontramos estudos que confirmam a universalidade de determinados sistemas adaptativos, como sejam, a importância do sistema familiar para o desenvolvimento da criança6, mesmo atendendo às especificidades sócio-culturais de algumas das populações estudadas (e.g., Barrera, Hageman, & Gonzales, 2004), outras investigações sugerem a especificidade contextual quer dos riscos, quer de muitos processos protectores (e.g., Bowman, 2006; Blackstock & Trocmé, 2005; Grossman, et al., 1992).

Por exemplo, Blackstock e Trocmé (2005) referiram que os motivos pelos quais as crianças aborígenes do Canadá entram em contacto com o sistema de segurança social prendem-se com a pobreza, com deficiências habitacionais e com o abuso de substâncias. No entanto, estas comunidades não apresentam níveis significativos de maus-tratos físicos e sexuais, pelo que estes autores sugerem que a questão principal em termos do suporte a estas famílias passa por melhorar as redes de apoio social e o suporte do sistema de

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segurança social, ao invés de responsabilizar somente as famílias pelo bem estar das crianças.

Para além das perspectivas a que os investigadores possam aderir, estes continuam a levar a cabo estudos sobre a resiliência, na esperança de revelar formas de inocular as crianças contra os factores stressantes pessoais, familiares e ambientais, quer de carácter agudo, quer crónicos. No entanto, o modelo ecológico baseado nos estudos quantitativos e enfatizando as relações causais e a predeterminação das consequências para a saúde, é incapaz de acomodar a pluralidade dos significados que os indivíduos atribuem nas suas construções como resilientes (Ungar, 2004).

Por sua vez, importa ter em consideração a perspectiva construtivista por esta fornecer explicações complementares ao modelo ecológico e aprofundar formas de compreender os processos individuais de resiliência. Isto não significa no entanto, que a perspectiva ecológica não seja válida do ponto de vista científico e pertinente no estudo das questões do risco e da resiliência, como refere Ungar (2004). O modelo construtivista, defende que, ao contrário das interpretações ecológicas de resiliência que são caracterizadas pela hegemonia cultural, a resiliência é uma construção social, uma vez que aquilo que é definido como um comportamento adequado e saudável depende do contexto no qual este surge.

Segundo o paradigma construtivista, as relações entre os factores de risco e os factores protectores é não-sistémica e não hierárquica, variando entre os diversos contextos sociais, culturais e políticos, de forma caótica, complexa, relativa e contextual (Ungar, 2004). Quer no contexto da investigação quanto na prática clínica, este modelo procura fornecer uma perspectiva alternativa dos fenómenos relacionados com a resiliência, de

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forma a aprofundar a compreensão de como as populações de risco se tornam resilientes e sustentam o processo da resiliência.

Neste contexto, Ungar (2004) defende que as famílias e as crianças que desafiam a autoridade e as normas sociais são frequentemente aquelas que permanecem saudáveis, por comparação com aquelas que são vítimas passivas dos sistemas de educação e da segurança social. No entanto, são-no de forma frequentemente invisível aos olhos dos prestadores de cuidados de saúde, pois não correspondem às convenções socialmente vigentes. Nesta linha de pensamento, os factores de resiliência são, não apenas multidimensionais, mas específicos para cada contexto.

Também se verifica que a predição dos resultados em termos de saúde e de doença está dependente da forma como são definidos pelo indivíduo e pelo seu grupo de referência social. Deste modo, a capacidade de sobrevivência, é construída com base nas experiências de vida dos indivíduos, dos desafios que enfrentam e a protecção em relação às ameaças ao bem-estar é feita através da exploração dos recursos de saúde disponíveis. As características resilientes são pois, identificadas pelos indivíduos como compensatórias em relação aos riscos, também eles auto-definidos. Nesta ordem de ideias, a saúde é construída com uma pluralidade de comportamentos e de significantes (Ungar, 2001, 2004, 2005).

Um estudo de índole qualitativa, ilustrativo desta perspectiva foi desenvolvido por Ungar e Teram (2000) com 41 adolescentes delinquentes e não delinquentes. Este estudo teve como objectivo clarificar a relação entre os comportamentos resilientes e a saúde. No entanto, os autores não conseguiram diferenciar com base nas suas narrativas os adolescentes “normais” dos delinquentes. Assim, as construções sobre a saúde mental, quer dos adolescentes classificados como vulneráveis, quer dos adolescentes classificados como

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resilientes agiam como protectores ou promotores de saúde. O que diferenciou estes dois grupos foi a presença de recursos que pudessem manter o seu bem-estar e as suas auto- construções como sujeitos saudáveis. Além do mais, é interessante referir que, neste estudo, os jovens mais vulneráveis encontraram, através dos seus comportamentos delinquentes, os mesmos recursos para a saúde (auto-estima, competência, envolvimento significativo com as suas comunidades e vínculos a outros) que os seus pares classificados à priori como resilientes.

De facto, a saúde mental é uma construção social, no sentido em que os resultados do desenvolvimento normativo assentam quer nas construções que o sujeito faz sobre si, como também nas construções sociais que os outros fazem sobre ele, e portanto, assentam em pressupostos de desejabilidade social7. Então uma limitação ao conceito de resiliência é o de estar fortemente associado às nossas construções sociais do que é o “normal” e da normatividade face a determinados resultados desenvolvimentais. Se o resultado não é desejável, então a capacidade do sujeito em atingir determinados resultados perante circunstâncias de risco, é considerada não resiliente (Kaplan, 1999, citado por Ungar, 2004).

Se as histórias de resiliência ou as trajectórias dos sujeitos resilientes são únicas, todavia, as diferenças individuais relativas ao processo da resiliência não impedem a existência de factores comuns, consoante tem sido documentado na literatura científica (Manciaux, 2003).

No nosso entender, quer o modelo ecológico, quer o discurso construtivista, interessam ao estudo das questões dos comportamentos desviantes. O primeiro de forma a

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Pio Abreu (2001) referiu a este propósito que, a saúde mental não é necessáriamente um equivalente de uma vida com sucesso.

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estudar as relações entre os factores de risco e os factores protectores ao dispor do indivíduo; o segundo, porque de forma alternativa, pretende explicar os problemas relativos às especificidades contextuais e à variabilidade individual. Estes têm sido identificados através do estudo da resiliência, mas não foram resolvidos pelos investigadores (Born, Chevalier, & Humblet, 1997; Olsson et al., 2003; Ungar, 2004). Por exemplo, se bem que esteja identificado na literatura um vasto leque de factores ecológicos que se correlacionam com o funcionamento saudável em crianças e em famílias de elevado risco, um tal corpo de conhecimento, se bem que impressionante, não pode predizer quais as crianças de elevado risco irão sobreviver a estes e adaptar-se ou, pelo contrário, irão experienciar problemas desenvolvimentais e /ou comportamentais. Sabemos apenas que as crianças e os jovens resilientes são caracterizados através de qualidades individuais, sociais e ambientais que temos vindo a associar à resiliência. Se, segundo o modelo ecológico, a resiliência é saúde apesar de adversidade, segundo o modelo construtivista, a resiliência é uma consequência da negociação do sujeito com o ambiente para a obtenção de recursos, de forma a definir o self de um indivíduo como saudável apesar de adversidade (Ungar, 2004). Assim sendo, é possível que indivíduos classificados à priori como não resilientes, segundo uma perspectiva ecológica, se auto-descrevam como resilientes.