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E a Igreja Católica?

No documento Vox Dei:metáfora(s) da espiritualidade (páginas 63-68)

I. Da Espiritualidade e da Arte

I.4.8. E a Igreja Católica?

Não se pode, todavia, concluir um discurso sobre a espiritualidade na arte do período Pós-2ª Guerra Mundial, sem ter em consideração todo o esforço que a Igreja Católica fez no sentido da aproximação ao mundo da arte. A arte aceite pela Igreja Católica até aos anos 50 do século XX ainda era sustentada por ideiais de beleza figurativos, extremamente cristalizados e baseados em concepções tomistas medievais - ‘o belo como aquilo que dá prazer à visão’ de São Tomás de Aquino. Os dogmas orientadores da criação artística no seio da Igreja vinham tanto do Concílio de Niceia (século IV d.C.), quanto do Concílio de Trento (século XVI d.C.). Os próprios papas Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958) falavam da possível arte sacra contemporânea como algo desfigurante e caricatural, o que contribuía, segundo eles, para a profanação dos verdadeiros valores católicos213. Nos anos 50, no contexto da reconstrução física, intelectual e moral do mundo do Pós-Guerra, nasce a ideia da renovação da arte sacra, em França, fundamentalmente através da acção de duas individualidades, os padres dominicanos Couturier (1877-1954) e Régamey (1900-1996) 214, que irão tentar encontrar um elo de ligação integrador da Igreja com o seu tempo, ou seja, levar a Igreja ao interior da arte contemporânea, através de uma

213 Cf. Fanny DRUGEON, “Querelles de l’Art Sacré?”, in Mark ALIZART, (dir. de), op. cit., p. 294. 214

O padre Couturier, figura emblemática da renovação plástica da arte sacra do Pós-Guerra, pintor por vocação, integra os ateliers de arte sacra fundados por Maurice Denis e Georges Desvallières, entre 1919 e 1925, e afirmará que o clero é incompetente no que diz respeito à arte contemporânea e ao fenómeno estético. É a sua estadia nos Estados Unidos e no Canadá, entre 1940 e 1945, que lhe permite aprofundar os seus conhecimentos da arte moderna, e mais especificamente da arte abstracta (Couturier considera-a uma estética possível para a arte sagrada). Por sua vez, o padre Régamey, figura com menor visibilidade que Couturier, trabalha como historiador de arte no departamento de Pintura do Museu do Louvre em Paris, e vai, após o falecimento do primeiro, dar continuidade ao seu trabalho, sempre na qualidade de intermediário entre os encomendadores e os artistas. Exemplos de artistas que trabalharam para a Igreja, pela acção directa ou indirecta destas duas figuras: Pierre Bonnard, Georges Bracque, Marc Chagall, Férnand Léger, Jacques Lipchitz, Henri Matisse, Georges Rouault, Jean Bazaine, Alfred Manessier, Germaine Richier, Le Corbusier, Jean Cocteau, Maurice Denis, etc.. Exemplo de projectos directamente relacionados com estes dominicanos: Assy, Vence, Audincourt, Ronchamp, La Tourette, Villefranche-sur-Mer, Saint-Germain-en-Laye, etc., cf. Valérie da COSTA, “Le Père Couturier”, in idem, p. 296. Cf. ainda James ELKINS, op. cit., p. 14 e também cf. Fanny DRUGEON, “Abstraction et Spiritualité”, in ARTS

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nova política de patrocínio de grandes trabalhos, para renovação da sua imagem. Estes agentes impulsionadores renunciam à tradição, à arte saint-sulpice e aos artistas saídos dos

ateliers de arte sacra. “«Aux grands hommes, les grandes choses».”215, dirá o padre Couturier em 1950, na revista L’Art Sacré, da qual é director e onde difundirá as suas ideias progressistas. Será, pois, a partir da vitalidade da arte profana que nascerá a nova arte cristã.

Em 1951 surge a chamada ‘querela da arte sacra’, na qual vários detractores anti- modernistas vêem como aberrante e anti-católica a introdução de ‘monstros’ no interior das Igrejas (Fig. 9)216, acrescendo o facto, dizem, dessas obras serem executadas por não crentes. Couturier e Régamey defendem-se (e defendem os autores) afirmando que a escolha dos melhores artistas da época (quer sejam crentes ou não) deve-se ao facto de não terem dúvidas que a crença do artista na sua arte é a afirmação da dimensão espiritual (e da fé) inerente à criação, pois esta assemelha-se à criação divina217.

Fig. 9 Germaine Richier, Cristo de Assy, 1950

O Concílio Vaticano II (1961-1965), contribui decisivamente para apaziguar e pôr fim a esta contenda. O Concílio propõe uma aproximação entre o dogma católico e as formas modernas de expressão, coincidindo curiosamente com a ‘vitória’ da abstracção e do informalismo do pós-guerra, no contexto da arte internacional. Os documentos emitidos pelo Concílio Vaticano II, e que subsequentemente surgiram no Catequismo da Igreja

215 Padre COUTURIER citado por Valérie da COSTA, “Art Sacré”, in Mark ALIZART, (dir. de), op. cit., p. 289. 216

O Cristo de Assy de Germaine Richier é recebido de modo violento por parte de uma comunidade nada habituada à compreensão da arte contemporânea. Foi um dos principais acontecimentos a despoletar a denominada ‘querela da arte sacra’, cf. Valérie da COSTA, “Le Père Couturier”, in idem, p. 296.

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Católica, reafirmam o papel das artes - concretamente as artes visuais - ao serviço da

Igreja, na sua missão específica de culto ao divino. Pode-se ler no artigo 122 da

Constituição da Sagrada Liturgia do Vaticano II (Sacrosanctum Concilium) : “The Fine

Arts are rightly classed among the noblest activities of man’s genius; this is especially true of religious art and of its highest manifestation, sacred art.”218

. E também se pode ler no artigo 2502 do Catequismo da Igreja Católica: “(…) the evangelical possibilities of art, specifically 'sacred art’. «Sacred art is true and beautiful when its form corresponds to its particular vocation: evoking and glorifying, in faith and adoration, the transcendent mystery of God (…) Genuine sacred art draws man to adoration, to prayer, and to love of God, Creator and Savior (…)».”219

. As declarações, em primeira instância, do papa João XXIII (1958-1963) fazem da arte um ‘quase sacramento’, conferindo-lhe um eminente valor teológico220. Mais tarde, o papa Paulo VI (1963-1978) irá mais longe e indicará as vantagens da relação recíproca entre arte contemporânea e culto e defenderá explicitamente a mudança do paradigma visual da Igreja. Sobre o assunto dir-se-á: “Essa non dev’essere servilmente realistica. Non deve dare una precisa rappresentazione di forme materiali. Non è una copia della realtà visibile. Al contrario, l’arte sacra ha il difficile compito di comunicare una realtà spirituale nascosta e invisibile.”221.

218 ARTIGO 122, “Constituição da Sagrada Liturgia do Vaticano II” citado por Hamilton Reed ARMSTRONG, The

Transmission of Faith Through Art, in http://www.catholicnewsagency.com/resource.php?n=1040 de 17-10-2010, p. 3.

219

ARTIGO 2502, “Catequismo da Igreja Católica”, citado in idem, p. 4. 220

Cf. Carlo CHENIS, “Intuizione Estetica ed Estasi Religosa”, in Natale BENAZZI, (dir. de), op. cit., p. 258. 221 Thomas MERTON, “Arte Sacra e Vita Spirituale”, in Natale BENAZZI, (dir. de), op. cit., p. 162.

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“«If we really want to know what’s going on in the present, we should first ask the artists; (…) since they live in the absolute present».”222

I.5.1. Pós-modernidade

A mais recente historiografia estabelece que, por motivos de ordem de objectivação da informação, não se deve analisar qualquer período próximo, com menos de 40 ou 50 anos de distância do momento actual. Tal afigurar-se-ia impossível porque a realidade estaria muito presente, pelo que passível de mutação, e assim não seria possível analisá-la com correcção, porque os dados não estariam ainda devidamente ‘cristalizados’. Nesse sentido optou-se, no âmbito desta investigação, por dar início à etapa sobre a actualidade precisamente no momento coincidente com o célebre Maio de 68, facto que se tornou determinante para a alteração de paradigma do processo histórico, no sentido de definição do denominado período pós-moderno (ou pós-histórico) que vem até ao momento presente.

No que consiste a pós-modernidade? Jean-François Lyotard (1924-1998), no final dos anos 70 do século passado, fala do fim das metanarrativas. No seu livro A Condição

Pós-Moderna (1979), Lyotard apresenta este período como: “(…) o estado da cultura

ocidental depois do declínio das «grandes metanarrativas» ideológicas - marxismo, idealismo, positivismo.”223

. O que está em causa é o fim da ideia de progresso (com o fim das respectivas utopias), iniciado no final do século XVIII, que serve para descrever as experiências modernas, e cujo objectivo consiste no aperfeiçoamento da vida humana, num

continuum histórico. Em causa está também o efeito de um último desencantamento: o da

razão224.

Várias são as características manifestadas neste período: a complexificação do acto de ver, o eclectismo, a circulação frenética de imagens e produtos; a dissolução da

222

Marshall McLUHAN citado in Paul VIRILIO, op. cit., p. 47. Marshall McLuhan (1911-1980), místico mediático canadiano, enunciou as noções de ‘presente absoluto’ e de ‘aldeia global’ aplicadas à actualidade.

223

Jean-François LYOTARD citado por Flavio CUNIBERTO, “Pós-moderno”, in Gianni CARCHIA, Paolo D’ANGELO, (dir. de), op. cit., p. 289. Cf. também Jean-François LYOTARD, “Introduction To The Postmodern Condition”, in Charles HARRISON, Paul WOOD, (org. de), op. cit., p. 1122 e Jean-François LYOTARD, “What Is Postmodernism?”, in idem, pp. 1131-1134.

224

A Razão, que era ‘deificada’ na Revolução Francesa e início da contemporaneidade (o primado cognitivo-racional), perde agora em definitivo o seu estatuto, cf. Giuliano ZANCHI, op. cit., p. 75.

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categoria do novo, onde tudo é imanente e contigente; uma postura irónico-crítica dos valores em desuso e uma compilação arquivística da informação; a coexistência de formas, estilos e sensibilidades diferentes e o fim da ilusão de verdade absoluta (não há uma verdade, mas sim muitas); a experiência do ‘fim da história’ e, por inerência, a noção de pós-história (mistura de todos os estilos e de todas as crenças e globalização da experiência); a descontinuidade, o relativismo dos valores, o antagonismo (convivência harmónica dos contrários e dos contraditórios); o particularismo, a tolerância da diferença e da indiferença, etc.225. Em alguns aspectos a pós-modernidade caracteriza-se também por um regresso à pré-modernidade, recuperando uma inteligência global e mística em tudo semelhante à sabedoria antiga e medieval226. As linhas de pensamento mais importantes na pós-modernidade são a crítica à noção de Ocidente, a contextualização plural e renúncia a princípios universais e objectivos, e a regulação hermenêutica da realidade, em que tudo é reduzido ao discurso, à linguagem, ao próprio evento - o ser já não é, agora acontece (trata- se sempre de uma interpretação)227.

Crê-se existir uma possível interpretação do período pós-moderno em duas grandes tendências, no que diz respeito à questão da espiritualidade no universo artístico: uma primeira niilista (com características auto-destrutivas), e uma segunda de regresso ao espiritual-religioso (com características de re-encantamento da, ou pela, realidade). Na primeira tendência, que corresponde grosso modo a uma primeira fase da pós- modernidade228, a realidade ainda vive intensamente a experiência do desencantamento existencialista do pós-2ª Guerra Mundial e Guerra Fria, caracterizada por um sistema tardo-capitalista muito agressivo, onde o materialismo e a ‘velocidade desenfreada’ da realidade não permitem a existência de tempo para a reflexão e para a contemplação. O niilismo apresenta-se, pois, como uma espécie de ponto de chegada da modernidade, onde o pensamento toma plena consciência do fim da metafísica229. Como propõe Martin

225 Cf. Flavio CUNIBERTO, “Pós-moderno”, in Gianni CARCHIA, Paolo D’ANGELO, (dir. de), op. cit., pp. 289-290. 226

Cf. João Manuel DUQUE, Dizer Deus na Pós-modernidade, (…), p. 58. 227

Cf. idem, p. 112. 228

Ter em consideração que a tendência niilista pós-moderna ainda hoje se faz sentir, e que a sua ‘colagem’ a uma primeira fase deste período serve apenas para simplificar o discurso nesta investigação; do mesmo modo, a tendência de regresso ao religioso, apesar de começar a manifestar-se desde a década de 70, só irá ser determinante e fulcral, para esta análise da actualidade, nos últimos anos do século XX.

229

Niilismo subsidiário de Nietzsche (crítico do conceito de Ocidente religioso-cristão, com a sua ‘morte de Deus’), de Heidegger (‘fim da metafísica’ e o ser e a realidade como produtos do sujeito), e também de Adorno (sujeito pensado como objecto, como puro material artificial, que faz parte da engrenagem geral da produção e do consumo), cf. Gianni VATTIMO, op. cit., p. 20. Vejam-se ainda outros factores de irreligião e de niilismo, tais como o ‘declínio do Ocidente’

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Heidegger, o sentido da história do Ocidente é o da derrota e do ‘declinar do ser’, o que só corrobora o sentido do seu significado etimológico: terra do ocaso230.

No documento Vox Dei:metáfora(s) da espiritualidade (páginas 63-68)