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Possíveis sentidos finais

No documento Vox Dei:metáfora(s) da espiritualidade (páginas 134-185)

I. Da Espiritualidade e da Arte

II.1.10. Possíveis sentidos finais

Na esteira de Novalis, só resta, neste momento final da investigação sobre estas obras de Rui Chafes, apresentar os argumentos do que se considera serem os possíveis sentidos ou significados novos desta série escultórica. As ‘esferas em suspensão’ podem sugerir, num plano metafórico, o momento mágico em que os espermatozóides fecundam o óvulo e se constitui o ovo, o preciso momento em que a vida é gerada uterinamente439. O artista parece congelar/fossilizar um instante transitório, na realidade um micro-segundo, que durará séculos devido à sua concretização em ferro. Esta interpretação é baseada na convocação constante que o escultor português faz da obra poética de Novalis. Rui Chafes afirma-o: “Quando me refiro a ‘imagens’ orgânicas, tais como florações ou flores e órgãos 436 Ibidem, p. 169. 437 Ibidem, pp. 178-179. 438

Foram também os pensadores gnósticos pós-Corpus Hermeticum que traçaram, à luz da alquimia, a imagem de uma Natureza divina transmutada a partir da matéria escura, tornando-se uma espécie de preconizadores da veneração posterior romântica pela Natureza, cf. Alexander ROOB, op. cit., p. 23.

439

O objectivo da hipótese metafórica da concepção não é o da definição de uma vertente única de interpretação para estas esculturas de Chafes; apenas se pretende criar um nível discursivo que, no final da tese, una todas as obras e autores convocados. Neste sentido, todos estes autores (quer estejam vivos ou não) são avessos a interpretações limitadas e estanques das suas obras, o que possibilita uma certa liberdade de interpretação das mesmas.

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sexuais humanos que se assemelham a florações, vejo-me de novo ligado a Novalis quando ele diz, por exemplo, que «os órgãos do pensamento são os geradores do Mundo, os órgãos sexuais da Natureza».”440. Confrontado com esta problemática sexual (que já outros autores haviam questionado, como por exemplo Maria Filomena Molder no seu livro

Matérias Sensíveis, no qual apresenta as obras de Chafes, à luz de Novalis, como dejectos,

expulsões do corpo, rastos de uma latência sexual aplicada às formas), Chafes afirma: “Gosto da ideia de semente, de inseminação. De as ideias serem sementes levadas pelo vento e, conforme o terreno onde caem, podem ou não germinar.”441

. O escultor não deixa de ser evasivo e ambíguo no resto da resposta, mas acrescenta: “Eu entendo a sexualidade no meu trabalho como Novalis a entendia.”442. A questão importante é que, além do facto da sexualidade ser evocada e não explicitada e de ser um dos muitos possíveis universos de significação (e não o único), na realidade as esculturas estão a falar de sexualidade, não do ponto de vista prático e funcional (algo que tem a ver com a intimidade ‘consciente’ de cada um), mas do ponto de vista do sagrado colectivo (algo que tem a ver com a intimidade ‘inconsciente’ de todos)443

.

A sexualidade assim vista, segundo o pensamento junguiano, acaba por tornar estas observações mais claras e razoáveis. Num dos primeiros livros sobre a obra de Rui Chafes, Harmonia, é revelada a ‘doutrina da natureza’ de Novalis, a relação de afinidade entre as formas da natureza e os organismos vivos; neste contexto animista uma forma leva sempre à outra, estabelece-se sempre uma analogia entre sexualidade humana, botânica, embriologia, alquimia, etc.. Escreve Hubertus Gassner no seu texto The Unknown

Masterpiece de 1998 (ano de nascimento das primeiras ‘esferas suspensas’): “Os desenhos

e as esculturas de Rui Chafes representam o desejo de estar no corpo do outro e integrar-se no corpo do outro, (…).”444

. Num crescendo revelador, Gassner adianta: “Toda a obra de arte se assemelha, portanto, à forma oclusa de uma semente, que, a despeito do seu

440

Rui CHAFES, Um Sopro, (…), p. 245. No livro da autoria de Drathen, Chafes diz algo semelhante: “I think of Novalis, for instance, when he says «the organs of thought are the genitals of nature which create the world», (…).”, Doris von DRATHEN, op. cit., p. 41.

441

Rui CHAFES entrevistado em anexo 1. 442 Idem, p. 388.

443

A propósito, diz Pires do Vale: “Há algo de sagrado nesta aproximação ao interior do corpo (…).”, Paulo Pires do VALE, “Vós aqui, Sr. Brunetto?”, in Rui CHAFES, Inferno (a Minha Fraqueza é Muito Forte), Lisboa, Galeria João Esteves de Oliveira, 2011, p. 37.

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fechamento formal, é apenas início de um devir, que em si encerra e que de si provém.”445. E finalmente acaba por dizer: “A cápsula esférica (…) faz pensar (…) também na cápsula seminal ou no óvulo numa cavidade pélvica feminina, onde a nova vida humana se desenvolve e de onde sai. (…) Porquanto as esferas (…) como o óvulo num ventre de mulher, (…).”446

.

Além de Novalis, com a sua concepção completa de Universo como analogia do indivíduo humano na sua dimensão corpo, alma e espírito, outro escritor alemão, caro a Chafes, poderá ser determinante para corroborar esta hipótese. Refiro-me a Rainer Maria Rilke, que afirma: “(…) cresce nos capilares, aspirado para cima através de canais até às últimas ramificações da tua existência infinitamente ramificada. É lá que ele sobe, é lá que ele te supera, mais alto que a tua respiração em que te refugias como no último lugar de abrigo.”447

. Esta possível associação aos capilares que investem para cima até ao abrigo, não só faz recordar as tiras ondulantes que suportam as esferas, como também remetem para uma outra imagem vital no universo iconográfico do escultor: a árvore448.

Mas não são só os poetas e as suas palavras que justificam esta ideia de tempo suspenso no momento da fecundação. Também outras obras, no percurso do artista, denunciam a aproximação a esse momento genesíaco: são os casos de Cinza de 2002 e

Unborn de 2001 (Figs. 50 e 51). Em Cinza, várias formas serpenteantes, com configuração

semelhante a espermatozóides, são dispostas num espaço fechado e muito escuro; a iluminação é propositadamente dramática para pontuar/focalizar cada unidade escultórica,

mas também para

Fig. 50 Cinza, 2002 445 Idem, p. 7. 446 Ibidem, pp. 8-9. 447

Rainer Maria RILKE citado in Rui CHAFES, Würzburg Bolton Landing, (…), p. 116. 448

A árvore é um dos principais locus das esculturas exteriores de Chafes ao longo de toda a sua obra, todavia esse facto não será aqui objecto de estudo. A simbologia da árvore será comentada no ponto relativo ao filme Andrei Rublev de Tarkovsky e no terceiro capítulo, referente à obra pictórica Dei concebida por mim para esta investigação.

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Fig. 51 Unborn, 2001

mas também para conferir ao espectador a sensação de estar inserido num contexto envolvente, saudável para a germinação, como um abrigo uterino. Alexandre Melo diz sobre este conjunto: “(…) configuração de um devir. O mais importante é o lugar de onde estas formas vêm e para onde estas formas vão. Porque estamos no princípio o tema é o nascimento. Ou melhor, para ser mais exacto, o espaço evocado é o espaço do corpo antes de haver corpo.”449

. Está-se, portanto, perante a evocação da potenciação energética antes da fusão com o óvulo (ou esfera) e consequente nascimento do embrião.

A série Unborn, por sua vez, está inscrita directamente na Natureza, num espaço não artificial, mas que, paradoxalmente, se torna inóspito, pois não confere (ainda?) ‘vida’ às esculturas. A configuração dos elementos escultóricos que, para alguns, poderá ser descrita como semelhante a alfinetes gigantes (fazendo ressoar também associações a instrumentos cirúrgicos), é a de aparentes fósforos à espera de serem acesos com o ‘sopro vital’. Esta associação ao elemento ígneo relembra o exposto por Gaston Bachelard: “O sexo feminino é depositário de pequenas esferas humanas que se encontram no ovário. Essas pequenas esferas constituem uma matéria eléctrica sem vida, sem acção; como uma vela apagada, ou um ovo pronto a receber o fogo da vida, a pevide ou a semente: ou, enfim, como a torcida ou o pau de fósforo que esperam esse espírito do fogo (…).”450

. Bachelard fala do ‘devaneio do fogo’ (da sexualização da entidade ígnea) para explicar o processo alquímico de transmutação. O fogo como elemento de acção, refere este pensador, une a matéria e o espírito, como uma cópula, em que o princípio masculino entra no princípio feminino para acender uma nova luz451. O certo é que, para o pensamento espiritual ocidental e, mais concretamente, para o pensamento cristão e católico, a alma

449

Alexandre MELO, “Rui Chafes e Vera Mantero, Comer o Coração”, in AAVV, Comer o Coração, Rui Chafes/Vera

Mantero, (…), p. 20.

450

Gaston BACHELARD, op. cit., pp. 32-33. 451 Cf. idem, pp. 56-57.

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nasce no preciso momento da fusão original, quando ‘dois’ se metamorfoseiam em ‘um’ ulterior: “(…) to come to life again and again as a fundamental principle in the sculptures of Rui Chafes.”452

, explica Doris von Drathen. O que Chafes evoca é a sacralização do milagre que é a vida, ou melhor, é o movimento primário (ou princípio vital) masculino de aproximação ao outro feminino453.

Rui Chafes é um dos autores actuais que melhor espelha a possível dinâmica do sagrado e da espiritualidade como formulação de um processo artístico. O escultor tem uma singular devoção ao ferro e ao fogo e explora, no limite, um saber demiúrgico, ancestral e secreto, que tem por objectivo último gerar algo concreto, físico, imanente, imbuído de espiritualidade e transcendência. A sua arte influi sobre a vida como uma iluminação; restitui ao espectador da arte contemporânea uma sensação de ascese que há muito parecia ter sido esquecida. Diz o autor: “Posso dizer que a arte cura as pessoas. Acredito absolutamente e de forma inabalável que a arte e a poesia têm esse poder de cura. A arte é uma espécie de pureza e de salvação da pureza no meio da catástrofe. E uma forma de restituir às pessoas essa dignidade é restituir também essa fé na arte.”454.

Tal como Rui Chafes, no seu percurso intelectual e artístico, também agora esta investigação se dirigirá para Norte.

452 Doris von DRATHEN, op. cit., p. 20. 453

No texto Uma Fenda no Mundo Paulo Pires do Vale refere-se a este movimento como o regresso às origens da vida: “(…) a experiência da ‘Grande Mãe’! O ventre, receptáculo e produtor de vida.”, Paulo Pires do VALE, Uma Fenda no

Mundo. Do Espiritual na Arte Contemporânea (II), O Sagrado e a Obscuridade, (…), p. 4.

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II.2. Mark Rothko: capela de Houston

“My relation with God was not very good, and it has gotten worse day by day.”455

Mark Rothko é o autor que se segue nesta tentativa de analisar percursos visuais e simbólicos que problematizam o fenómeno da espiritualidade no momento contemporâneo. Artista do denominado expressionismo abstracto americano, Rothko concebeu no período final da sua vida uma série pictórica - 14 grandes pinturas agrupadas em 3 trípticos e 5 trabalhos individuais (Figs. 52 a 59) - que, conjuntamente com o espaço arquitectónico onde está exposta - a capela adjacente à Universidade Católica St. Thomas de Houston (Texas, E.U.A.) -, se constitui como um dos expoentes máximos da arte dita religiosa do século passado.

A pintura de Rothko é muitas vezes apelidada de espiritual pela expressividade dos seus campos de cor saturados e difusos que vibram e se confrontam em grandes contrastes cromáticos e que corresponde, segundo uma visão crítica da sua obra, à fase clássica do seu percurso (a que o próprio autor aludia como ‘pensamento trágico’). Porém, neste caso da capela de Houston isso não acontece; o pintor renuncia à sensualidade da cor e apresenta pela primeira vez aspectos inovadores no seu trajecto visual: os pensamentos ‘monocromático’ e ‘hard-edge’. Está-se perante aquilo que os ensaístas apelidaram de

void, um último capítulo da obra do artista, no qual as suas pinturas não reflectem luz mas

sim absorvem-na, tal como um vórtice ou um sugadouro existencialista. Rothko pretendeu, nesta série, condensar tanto a dimensão finita da realidade quanto a infinita através da apresentação simbólica do princípio e fim da luz ou, melhor ainda, pretendeu demonstrar a mais pura luz ‘visível’ na ‘escuridão interior’ do ser humano. Rothko, que sempre considerou a música como a maior das artes, e que pensava normalmente os seus quadros do ponto de vista de intensidade sonora456, de repente, a partir desta série, passa a fazer pinturas ‘graves’, quase ‘inaudíveis’, como se as suas obras tivessem perdido a capacidade

455 Mark ROTHKO citado por James ELKINS, Pictures & Tears, Londres e Nova Iorque, Routledge, 2005, p. 204. 456

Dimensão sinestésica, de possível analogia entre sentidos diferentes (neste caso entre visão e audição). Sinestesia - do grego sin (união, junção) + estesia (sensação) - corresponde ao fenómeno perceptivo através do qual o estímulo sensorial dirigido a determinado sentido é percepcionado não só por este último, mas também por outro, ou mais sentidos, cf. Paolo d’ANGELO, “Sinestesia”, in Gianni CARCHIA, Paolo D’ANGELO, (dir. de), op. cit., pp. 323-324.

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de ‘emitir’ sons. A questão que se levanta é até que ponto esta série surgiu precisamente porque o autor, que sempre havia pensado a sua actividade como um acto de fé, se confrontou com a dúvida quanto a ela457.

Fig. 52 Pintura isolada com forma negra (Sul) Fig. 53 Tríptico ‘monocromático’ da ábside (Norte)

Fig. 54 Tríptico lateral com formas negras (Este) Fig. 55 Tríptico lateral com formas negras (Oeste)

Fig. 56 ‘Monócromo’ (Sudeste) Fig. 57 ‘Monócromo’ (Sudoeste) Fig. 58 ‘Monócromo’ (Nordeste) Fig. 59 ‘Monócromo’ (Noroeste)

457 Rothko mostrou-se muito hesitante, como se verá, quanto à conclusão do conjunto pictórico de Houston. Sabia que estava numa fase final da sua carreira (constantes problemas de saúde impediam-no de trabalhar com regularidade), e que, assim sendo, esta obra poderia vir a ser considerada o culminar da sua carreira, mas também tinha consciência do quão radicais eram as alterações e novidades introduzidas no seu discurso (não estava seguro desta sua nova imageless

141 II.2.1. A invenção de Rothko

Convirá fazer uma breve abordagem de alguns aspectos biográficos deste autor, para se poder entender melhor toda a carga emocional, trágica e tendencialmente depressiva que estruturou, durante décadas, o seu processo criativo e que acabou por definir a sua obra. Marcus Rothkovitz458 nasceu em 1903 em Dvinsk (Rússia) no seio de uma família judaica, em pleno período final da Rússia czarista. Entre 1903 e 1913, ele e a sua família testemunharam um clima crescente e generalizado de anti-semitismo459. A perseguição aos judeus russos intensificou-se entre 1906 e 1911460. O pai de Mark emigrou em 1910 para Portland (Oregon) nos Estados Unidos da América, onde havia uma grande comunidade de emigrantes judeus russos. Em 1912 seguiram-se-lhe os dois irmãos mais velhos de Mark, para evitarem o serem alistados no exército russo. Mark, a sua irmã e a sua mãe permaneceram no interior da comunidade judaica em Dvinsk, cada vez mais ameaçada e hostilizada, mas em 1913 fugiram ao drama social em que viviam e embarcaram também para os E.U.A., onde se reuniram com o resto da família. O seu pai, único membro da família com emprego, morreu oito meses depois em Março de 1914461.

Será toda uma carga negativa traumática o que caracterizará a chegada do jovem Rothko ao ‘novo mundo’, a um contexto totalmente diferente daquele experienciado na Rússia. Toda a cosmovisão vivida nos anos subsequentes levam o jovem Mark a constituir uma personalidade fragmentada e dividida entre duas realidades: por um lado, uma forte ligação à cultura misticista hebraica e russa, através do seu núcleo familiar, por outro, a predisposição para uma abertura à realidade modernista e cosmopolita que, gradualmente, se faz sentir no contexto americano462.

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Após tornar-se cidadão norte-americano em 1938, o autor encurtou o nome para Mark Rothko (a partir de 1940). 459

No início do século XX grande parte dos 5 milhões de judeus do império russo viviam na região de Dvinsk. Rothko e a sua família assistem à perseguição dos judeus (os denominados pogrom), e à repressão e clima de terror perpetrados pelos cossacos e polícia secreta russa contra os primeiros focos de activismo revolucionário.

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Anos mais tarde, em entrevista, Rothko chega mesmo a afirmar recordar-se de ter visto judeus a cavarem as suas próprias sepulturas, antes de serem executados, e familiares seus a serem chicoteados e reprimidos pelos cossacos, cf. Geneviève VIDAL, Mark Rothko, The Artist of the Red Night, 1903-1970, in http://vidal.genevieve.pagesperso- orange.fr/rothko/ de 12-10-2010, capítulo 1, p. 3.

461 Cf. Geneviève VIDAL, op. cit., capítulo 2, pp. 1-2. Veja-se também Jessica STEWART, “Chronology”, in Jeffrey WEISS, (dir. de), Mark Rothko, New Haven e Londres, Yale University Press, 1998, p. 333.

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Rothko, contudo, defronta-se ainda na sua juventude com a latente violência da vida nos E.U.A. e a dura realidade das injustiças sociais. Portland, cidade industrial onde vivia, estava na vanguarda das lutas sociais e sindicais pelos direitos dos trabalhadores e por diversas vezes foi foco de tumultos sociais graves, nas primeiras décadas do século passado.

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Mas o que levou Mark Rothko a adoptar, anos mais tarde, uma pintura exponencialmente abstracta e não-objectiva com sentido mitológico, trágico e simbólico? Quais os aspectos que lhe permitiram criar um universo de valores estéticos capazes de aceder a uma dimensão ulterior espiritual do acto pictórico? Convém realçar a predisposição mental e emocional de Rothko para tudo o que denotasse ser trágico e negativo, ou seja, uma visão eminentemente dramática da realidade; toda a sua experiência de vida cobre, inevitavelmente, os períodos que compreendem o início do século XX, o eclodir da 1ª Guerra Mundial, a Grande Depressão económica dos anos 30, a 2ª Guerra Mundial e a subsequente Guerra Fria. Nos anos 20 deixa-se estimular visualmente pela denominada Escola de Nova Iorque (tem estudos artísticos com Max Weber na Arts

Students League) e, desde muito cedo, interessa-se também pelas artes dramáticas (teatro,

literatura, ópera, música). Descobre na década de 30 o pensamento de Nietzsche, nomeadamente com a noção de eterno retorno e a dualidade apolínea/dionisíaca manifestada na obra O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo 463. O importante nesta obra, para Rothko, era a sugestão que através da sublimação da arte os gregos da Antiguidade Clássica, que viviam intensamente e sentiam uma forma de desespero perante as forças irracionais da natureza, da história e da destruição, conseguiam sobreviver enquanto indivíduos464. Rothko acreditava (tal como já o haviam feito os pioneiros do abstraccionismo pictórico Kandinsky, Malevich, Mondrian e Klee) na capacidade redentora da arte perante as circunstâncias apocalípticas e niilistas da realidade contemporânea e perante os limites da tradição racionalista ocidental. A este respeito escreve Bonnie Clearwater: “Human suffering as well as ecstatic experiences could not be

463

Cf. John GOLDING, op. cit., p. 160. Rothko pretendia criar um tipo de pintura que elevasse o espectador aos níveis de comoção da música. Como se sabe, Nietzsche, na sua obra máxima, afirma a música como o verdadeiro dialecto da emoção; o filósofo alemão refere que a música tem um estatuto privilegiado porque não é ilusória, antes pelo contrário, é concreta e dionisíaca na medida que provoca ansiedade, angústia e até sofrimento. Aliás, Nietzsche não se cansa de reafirmar que a noção de tragédia nasceu nos coros trágicos através da força da música, cf. Barbara NOVAK, Brian O’DOHERTY, “Rothko’s Dark Paintings: Tragedy and Void”, in Jeffrey WEISS, (dir. de), op. cit., p. 266. Como também diz Ribeiro dos Santos: “(…) a proposta nietzscheana, formulada em O Nascimento da Tragédia, deve ser apreciada no contexto de um movimento filosófico-cultural amplo que, em termos gerais, se pode descrever como um movimento de retorno da razão ao mito, de reencontro da filosofia com a mitologia e o mundo dos símbolos, pela mediação da arte e, em especial, da música, o substituto, para o homem moderno, dos mitos simbólicos do homem grego antigo.”, Leonel Ribeiro dos SANTOS, op. cit., p. 128.

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explained through rationalisation. The Existentialists, like Rothko, looked inward, to their own subjectivity, for answers.”465

.

Numa fase inicial, Rothko interessa-se pelo surrealismo, apesar de ter muitas reservas quanto a esse movimento artístico; compreende que a sensibilidade surrealista lhe proporciona um acesso directo aos níveis invisíveis e inconscientes da realidade. Entre 1938 e 1947 o autor abandona em definitivo a figuração explícita e dá início à utilização de um pequeno repertório de signos esquemáticos e de alusões simbólicas (alguns referentes derivam directamente da compreensão de figuras mitológicas arcaicas, principalmente femininas). Os trabalhos deste período - fase biomórfica - correspondem a uma necessidade do pintor expressar violência e sofrimento466. As tragédias de Ésquilo, das quais se socorre, permitem-lhe exprimir a concepção do destino cego como um tremendo poder (informe e irracional) que guia o indivíduo no seu percurso de vida, ou melhor, no reconhecimento e aceitação da brutalidade e da insegurança contemporâneas. Simultaneamente Rothko inicia uma verdadeira obsessão pela expressão de cenas de sacrifício e de sepultamentos. Os mitos para o artista eram uma espécie de linguagem universal inconsciente, que lhe permitiam aceder a substractos arcaicos e instintivos da condição humana467. A virtude dos mitos para Rothko é que, sendo iniciáticos e catárticos,

No documento Vox Dei:metáfora(s) da espiritualidade (páginas 134-185)