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Regresso ao religioso

No documento Vox Dei:metáfora(s) da espiritualidade (páginas 68-70)

I. Da Espiritualidade e da Arte

I.5.2. Regresso ao religioso

A segunda tendência, de regresso ao religioso, numa realidade agora secularizada, deve ser analisada de forma mais aprofundada (pela relevância no âmbito deste estudo). Nos anos 90 do século passado, devido ao desapontamento provocado pelo excesso de materialismo e devido aos problemas sociais, políticos e económicos decorrentes verificados nas democracias ocidentais, o prenúncio do milénio chega como uma espécie de balanço. O fenómeno da globalização aumenta a disponibilidade do ser humano para outros valores e outras culturas alternativas; os progressos médicos e tecnológicos chegam a um impasse, ao colocar questões éticas e morais (radicais e alternativas) sobre o indivíduo e o meio-ambiente (limites intransponíveis que o homem se confronta a nível da biotecnologia, da genética, da ecologia, e impasses provocados pela violência terrorista, crises económicas, etc.). A aparente insolubilidade destes problemas através da razão conduz o ser humano ao ‘regresso a Deus’. Aliás, torna-se óbvio que a ciência moderna não consegue sequer dar respostas definitivas e satisfatórias a questões fundamentais, tais como o sagrado, o religioso, o espiritual, o absoluto e mesmo Deus. A conclusão a que se chega é que a única forma possível, não racional mas objectiva, para se falar sobre esses conceitos, será através da questão poética, como o constata João Manuel Duque: “(…) o possível não objectivável e não abarcável, só poderá ser articulado poeticamente (…). E é urgente salientar o papel da imaginação mística, para superar os reducionismos de todos os sistemas racionalistas.”231. A propósito deste novo espírito pós-moderno, diz ainda Duque: diagnosticado por Oswald Spengler, a ‘crise do espírito’ de Paul Valéry e o ‘desencantamento do mundo’ por Max Weber e Ortega y Gasset, cf. Mark ALIZART, “Traces du Sacrilège, Grandeur et Déclin du Matérialisme au XXème Siècle”, in Mark ALIZART, (dir. de), op. cit., p. 407.

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Cf. Gianni VATTIMO, op. cit., p. 22. A dimensão niilística e anti-metafísica da pós-modernidade conduz ao enfraquecimento da concepção de Deus, e tem como consequência o gradual enfraquecimento da concepção de homem e de mundo, cf. Paola DALLA TORRE, Claudio SINISCALCHI, op. cit., pp. 22-23. Ou ainda, a noção de niilismo pós- moderno que, segundo o filósofo Gianni Vattimo, significa o fim da arte como fenómeno separado da experiência e a subsequente estetização da realidade (a arte como extensão dos mass-media dominantes), cf. Gianni VATTIMO, O Fim

da Modernidade. Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 49.

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João Manuel DUQUE, Dizer Deus na Pós-modernidade, (…), p. 130. De modo semelhante já Heidegger havia defendido a ‘poesia como instituição da verdade’, cf. Gianni VATTIMO, O Fim da Modernidade. Niilismo e

Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna, (…), p. 55. E também Vattimo com a ‘poetização do real’, que analisarei mais à

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“Ouve-se falar, cada vez mais frequentemente, de um regresso do «religioso» ou do «sagrado». E é já costume caracterizar a nossa época, precisamente, por esse regresso, o que a tornaria uma época de atitude pós-moderna, isto é, superadora de uma correspondente atitude moderna, que se diz por natureza adversa ao religioso e ao sagrado.”232

. E acrescenta: “A morte da religião, em vez de se consumar, parece ter-se transfigurado em ressurreição.”233.

O regresso do religioso e do sagrado surge de múltiplas formas: a realidade depara-se com uma religiosidade global e difusa, surgindo como uma espécie de ‘tapa- buracos’ para compensar a angústia do ‘vazio’ gerado pela crise espiritual e existencialista da 2ª metade do século XX. A religião apresenta-se como salvação individual (e já não colectiva), conferindo segurança psíquica e, nalguns casos, até física. É uma religiosidade fragmentada assente num pluralismo politeísta e neo-pagão, num reavivar das mitologias, de credos e práticas não ortodoxas, num sincretismo espiritual (absorção de elementos de outras realidades e tradições), e até num fanatismo integrador (algumas religiões que pretendem dominar e eliminar outras). O certo é que esta nova religiosidade fala apenas da experiência existencial individual de cada pessoa, sendo anti-racionalista e não querendo (ou recusando-se) falar ao intelecto; é uma visão holística da realidade, uma visão unitária que engloba tudo, inclusive o que não é religioso: “(…) já não é possível distinguir entre sagrado e profano, uma vez que tudo é sagrado e, por isso, susceptível de ser experimentado religiosamente.”234

, refere João Manuel Duque.

Gianni Vattimo foi um dos autores que melhor pressentiu e soube explorar este renovado interesse pelo religioso na actualidade235. Este filósofo italiano apresenta categoricamente o regresso da religião como uma alternativa credível ao niilismo nietzscheano-heideggeriano, e refere que a filosofia redescobre na actualidade a hipótese religiosa quando se apercebe da dissolução definitiva das metanarrativas da modernidade

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João Manuel DUQUE, Dizer Deus na Pós-modernidade, (…), p. 163. 233

Idem, p. 164. 234

Ibidem, p. 177. 235

Vattimo enuncia três características principais do pensamento pós-moderno: é um pensamento de fruição, de usufruto daquilo que é imediato ao homem (o ser é evento); é um pensamento de contaminação (diálogo com outras culturas e ecumenismo); e é um ‘pensamento fraco’ (o fim das estruturas fortes da modernidade), cf. Francisco Rodrigues OLIVEIRA, Uma Reflexão Sobre o ‘Pensiero Debole’ de Gianni Vattimo, in http://br.monografias.com/trabalhos3/metafisica-religiao-experiencia-posmoderna/metafisica-religiao-experiencia- posmoderna3.shtml de 15-09-2010, p. 21.

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(curiosamente também elas metafísicas)236. Diz Vattimo: “O racionalismo ateísta assumira, de facto, duas formas na modernidade: a crença na verdade exclusiva da ciência experimental da natureza e a fé no desenvolvimento da história como pressuposto da plena emancipação do homem em relação a qualquer autoridade transcendente. (…) Mas hoje tanto a crença na verdade «objectiva» das ciências experimentais, como a fé no progresso da razão com vista a um pleno esclarecimento, surgem, precisamente, como crenças superadas.”237

. Vattimo pensa que, perante esta desilusão em relação à ciência e à razão, é necessário ao homem actual fazer um ‘caminho de regresso’ à sua identidade cultural ocidental. Mas surge um problema: nesse caminho depara-se com as suas raízes judaico- cristãs (quase como um substrato arquetípico), pelo que se justifica um repensar o cristianismo. Agora, em plena pós-história, esse repensar torna-se enfraquecido porque já não se enquadra no âmbito de um pensamento superior metafísico. O ‘pensiero debole’, expressão cunhada por Vattimo que significa ‘pensamento fraco’, é uma espécie de filosofia da secularização que dará resposta à realidade.

No documento Vox Dei:metáfora(s) da espiritualidade (páginas 68-70)