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Capítulo 3 O desenvolvimento cognitivo

3.4 Educação de Surdos, Caminhos e Perspectivas

Nesse sentido, nos voltamos novamente a refletir sobre o processo de educação dos surdos: como já relatado anteriormente, os sujeitos surdos não adquirem a língua portuguesa espontaneamente, como os ouvintes. Sua língua natural é a Libras, pois esta é uma língua de sinais que os possibilita uma aquisição natural e espontânea, quando em convívio com seus usuários. Porém, os surdos costumam aprender Libras apenas quando chegam à escola. Tal fato é comprovado por Quadros (2006), que nos relata que 41% dos sujeitos surdos por ela pesquisados aprenderam Libras apenas após os 10 anos, no ambiente escolar. Sendo assim, tais sujeitos tiveram acesso a Libras tardiamente e, devido ao não input auditivo também não adquire espontaneamente a língua oral. Isto faz com que, no mínimo, tais sujeitos tenham um acesso tardio à linguagem.

Além disso, comumente os surdos têm o acesso ao aprendizado de Libras mediado por professores ouvintes que também não são realmente fluentes. Assim, comumente tais sujeitos adquirem um parco conhecimento da língua, o que é agravado pela falta de convívio com usuários fluentes em Libras. Isto faz com que os surdos tenham vocabulário bastante restrito, mesmo nesta língua. Nesse sentido, a restrição de vocabulário reflete no domínio de poucos signos, o que complica o desenvolvimento do pensamento conceitual que, conforme já citado por Vygotsky (2001), exige o “emprego funcional do signo como meio de formação de conceitos” (VYGOTSKY, 2001, p.170). É necessário o uso dos signos como instrumento mediador do pensamento para o desenvolvimento do pensamento conceitual.

Sendo assim, consideramos que a aquisição tardia da linguagem traz implicações para o desenvolvimento cognitivo do sujeito não apenas devido às dificuldades comunicativas implicadas, mas principalmente, devido à função de

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estruturação do pensamento (pensamento verbal) que é possível a partir do entrelaçamento de pensamento e linguagem e que é dependente da mediação sígnica exercida pela língua.

Ainda em referência ao processo de desenvolvimento dos surdos, estes precisam do desenvolvimento da língua (de preferência devem ter acesso à língua de sinais e a língua majoritária do seu país, já que os conhecimentos escolares e culturais são registrados por esta) para que possam operar com estes signos no processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores. A ausência de conhecimentos de uma língua, além de não favorecer a comunicação, não permite o uso deste importante sistema sígnico e faz com que o indivíduo também seja limitado em suas relações sociais, o que mais uma vez se interpõe ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Assim, o acesso a língua é fundamental para o desenvolvimento de todos os indivíduos, inclusive dos surdos. O não conhecimento e a pouca fluência na língua (seja esta qual for) é um fator de obstáculo ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores, já que a língua é um importante signo mediador. Há de se garantir possibilidades de aquisição da língua para tais indivíduos.

Ao considerarmos que os conhecimentos culturais e escolares são registrados por meio da língua portuguesa em sua modalidade escrita e, ao buscarmos igualdade de oportunidades para todos no intuito de alcançarmos uma verdadeira inclusão, faz- se, portanto necessário o aprendizado também da língua portuguesa, em sua modalidade escrita, para os sujeitos surdos, pois apenas o acesso à Libras não os permite participar plenamente do acesso cultural, que é comumente registrado na língua majoritária, em sua modalidade escrita.

Vale destacar que o desenvolvimento das funções mentais superiores não é linear, é um processo em constante transformação qualitativa. Assim, a mediação semiótica permite ao ser humano realizar operações mais complexas sobre os objetos. Para Vygotsky (1996), os signos são instrumentos usados com fins sociais, instrumentos que influem sobre os demais para posteriormente influir sobre si mesmo. Assim, o desenvolvimento cultural se baseia no emprego dos signos, o qual é inicialmente um meio de relação social. As funções superiores do pensamento se manifestam de modo reflexivo no comportamento, como meio de pensamento. Assim, o desenvolvimento dos signos regula o desenvolvimento comportamental. Tal fato é facilmente observável na criança, que no decorrer do seu desenvolvimento costuma aplicar as mesmas formas de comportamento com as quais foi tratada inicialmente. Nesse sentido, podemos afirmar que toda função psicológica superior é uma relação social internalizada.

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Sabemos que é a partir da interação entre os indivíduos e os processos de mediação semiótica que o homem interioriza as formas culturais de funcionamento psicológico. Assim, no desenvolvimento infantil ocorre o entrelaçamento dos processos de desenvolvimento cultural e biológico. É na interação com o outro que ocorre a transformação dos processos interpessoais (externos) em intrapessoal (interno) – o que Vygotsky chama de internalização, “a reconstrução interna de uma

operação externa” (VYGOTSKY, 1991, p. 64). Ainda sobre o processo de

internalização, destacamos:

A internalização de formas culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica tendo como base as operações com signos. (...) A internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana. Até agora, conhece-se apenas um esboço desse processo” (VYGOTSKY, 1991, p. 65).

Tal trecho enfatiza a importância do signo e destaca o emprego deste como propiciador do desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Para Vygotsky (1991), portanto, o desenvolvimento cognitivo humano ocorre por meio das experiências, situações, atitudes, comportamentos, linguagem, hábitos e valores presentes nas relações e interações estabelecidas culturalmente com o outro. Tais relações são mediadas pelos signos. Sendo assim, para o autor, a aprendizagem e o desenvolvimento estão imbricados, desde o nascimento da criança, com sua efetiva inserção na vida social. Nesse sentido, a aprendizagem cria uma Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) entendida por Vygotsky como:

A zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. (...) A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão presentes em estado embrionário (VYGOTSKY, 1991, p. 97).

Então, segundo o autor, a Zona de Desenvolvimento Proximal pode ser entendida como a distância entre aquilo que o indivíduo é capaz de realizar sozinho (desenvolvimento real) e aquilo que o indivíduo consegue realizar com o intermédio do outro mais experiente (desenvolvimento potencial).

Assim, Vygotsky vislumbra a grande importância da escola como um ambiente extremamente propício para a aprendizagem e consequente desenvolvimento do indivíduo. Defende que a escola deve direcionar suas atividades a partir da detecção

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do nível de desenvolvimento real do indivíduo e almejando alcançar o nível proximal de desenvolvimento, o que é favorecido pela elaboração de atividades pedagógicas que promovam a aprendizagem e consequente avanço do nível de desenvolvimento real para o desenvolvimento potencial. Além disso, o ambiente escolar deve favorecer o processo de aprendizagem por meio da estimulação à interação e cooperação entre os indivíduos.

Como nossas relações sociais são principalmente estabelecidas através do uso da linguagem, podemos considerar que um atraso na aquisição da língua pode, no mínimo, dificultar o contato e socialização entre os indivíduos e provocar um atraso na aprendizagem, o que consequentemente refletirá em um atraso no desenvolvimento, já que, segundo Vygotsky, a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento. Gomes (2006), por exemplo, também afirma que a linguagem é um instrumento que nos proporciona ingressar na cultura por meio da interação com o outro:

A linguagem é uma construção cultural da humanidade tanto na filogênese como na ontogênese, e resulta da interação entre o cérebro e o ambiente social, mediada por um outro indivíduo, constituindo-se num instrumento/ferramenta para a decodificação do mundo, um ganho evolutivo que confere uma capacidade adaptativa sem par em qualquer outra espécie. A cultura criou sistema de símbolos significativos que fazem os humanos diferentes dos animais: a linguagem é o instrumento para ingressar na condição e na cultura humana (GOMES, 2006, p.28).

Isto pode justificar as barreiras que encontramos hoje nos processos educativos dos surdos: em geral, em nosso país, atesta-se a surdez tardiamente. Segundo Zampieri (2007), é comum descobrir a situação de surdez apenas quando a criança começa a frequentar a escola e, normalmente, já devido a um atraso na aquisição da linguagem. O atraso no processo de aquisição da língua, repercute em atraso no desenvolvimento cognitivo, já que a mediação simbólica que é exercida pela linguagem é um fator fundamental para a estruturação do pensamento. Neste sentido, para minimizar tais problemas, a criança precisa ser iniciada linguisticamente o mais cedo possível. No caso dos surdos, sugere-se que assim que detectada a surdez (o que preferencialmente deve ocorrer até os seis meses de idade), seus familiares busquem dominar a Libras e procurem creches ou escolas onde haja profissionais praticantes desta língua. Tal atitude possivelmente minimizará a dificuldade de comunicação e interação social do surdo, propiciando que este tenha maiores oportunidades de inserção e participação social, levando-o a aprendizagem e, consequentemente, ao desenvolvimento.

Assim, perante todas as considerações tecidas até o momento, podemos inferir que o grande problema do surdo não é orgânico, mas sim social. É a pouca

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oportunidade de interação social, de relações estimuladoras, que compromete o desenvolvimento do sujeito surdo e, não necessariamente a falta de audição, que costuma ser a causa da pouca interação. Isto pode ser confirmado com os relatos de Oliver Sacks ao se referir a uma ilha, em Massachusetts (Marthas Vineyard), na qual 25% da população é surda. Nesta ilha, segundo Sacks (1998) toda a comunidade, independente de ser surda ou não, domina a Língua de Sinais. Os ouvintes e os surdos são bilíngues (dominam Inglês e Língua de Sinais), sendo que os surdos dominam a língua inglesa apenas em sua modalidade escrita. Segundo o autor, nesta ilha os surdos não são vistos como deficientes ou portadores de alguma particularidade; estudam, trabalham e tem uma vida normal. Sua comunicação com os demais indivíduos ocorre por meio da língua de sinais e estes tem plenas possibilidades de desenvolvimento cognitivo, já que os processos interativos não são afetados pela ausência de input auditivo e a língua de sinais é aprendida de forma natural e espontânea, em período correlato a aquisição da língua oral por ouvintes (que neste local também adquirem a língua de sinais). Segundo o autor, os surdos residentes em Massachusetts possuem boa qualidade de vida, com plena inserção social e cultural, e costumam avançar normalmente nos estudos. As escolas de Massachusetts trabalham com a língua inglesa (em sua modalidade escrita) e com a língua de sinais americana (ASL) em substituição a língua inglesa oral.

Neste sentido podemos afirmar que, segundo a ótica de Vygotsky, o problema do desenvolvimento do surdo não é cognitivo, mas social. A escassez de interações com o outro (devido à dificuldade de comunicação) faz com que a qualidade das trocas com o meio não sejam suficientes para impulsionar o esperado desenvolvimento cognitivo, que fica comprometido.

No que se refere às questões da aprendizagem, vale ressaltar que essa é um processo contínuo ao longo da vida e que esta pode ocorrer a todo o momento, não só no ambiente escolar, mas em qualquer local. Com certeza o ambiente escolar é um campo extremamente fértil para a aprendizagem e, portanto, propiciador de desenvolvimento. Para Vygotsky (1996), a escola exerce um importante papel no que se refere ao desenvolvimento do indivíduo, pois, no ambiente escolar, os indivíduos têm acesso aos conhecimentos e conceitos científicos construídos e organizados socialmente. Nesse sentido, o autor entende “conceitos” como “um sistema de relações e generalizações contidos nas palavras e determinado por um processo histórico cultural” (REGO, 2004, p. 76, ao se referir ao entendimento de Vygotsky sobre conceito).

Vygotsky (1996) distingue os conceitos científicos dos cotidianos. Entende por conceitos cotidianos aqueles que são construídos espontaneamente a partir da

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observação e vivência direta. Já os conceitos científicos são aqueles relacionados à eventos nem sempre observáveis e manipuláveis; tais conhecimentos são sistematizados e adquiridos principalmente na escola.

Ambos os conceitos (cotidianos e científicos) estão relacionados e se influenciam mutuamente, pois fazem parte do mesmo processo de formação de conceitos, embora não ocorra uma transição direta de conceitos espontâneos à científicos. Aliás, para Vygotsky (1996), os conceitos científicos e espontâneos da criança se desenvolvem em direções contrárias: os conceitos espontâneos são ascendentes enquanto que os conhecimentos científicos são descendentes. Daí, o autor afirma que “os conceitos científicos desenvolvem-se para baixo por meio dos conceitos espontâneos; os conceitos espontâneos desenvolvem-se para cima por meio dos conceitos científicos” (Vygotsky, 1996, p. 94). Com esta frase Vygotsky pretende abordar que a criança, ao se deparar com um novo conceito científico, busca significá-lo aproximando-o de um conceito espontâneo já internalizado, buscando enraizar o novo conceito à sua experiência. Isto faz com que seus conhecimentos espontâneos também se desenvolvam.

O processo de aquisição de conceitos é complexo, não linear e fundamental para o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, envolvendo operações intelectuais dirigidas pelo uso de palavras que culminarão nesse desenvolvimento. Para a aprendizagem de um conceito científico é necessário, primeiramente, o acesso a informações externas (em geral difundidas no ambiente escolar) e em seguida uma intensa atividade mental por parte do educando para conseguir compreender e aprender tal conceito, pois esses não são aprendidos mecanicamente. Em geral, Vygotsky (1996) salienta que ainda mais importante do que a possibilidade de aprendizagem de conceitos científicos que a escola proporciona, esta permite ao aluno se conscientizar de seus próprios processos mentais, o que considera fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. “Os conceitos científicos implicam uma atitude metacognitiva, isto é, de consciência e controle deliberado por parte do indivíduo, que domina seu conteúdo no nível de sua definição e de sua relação com outros conceitos” (OLIVEIRA, 1992, p. 32).

Segundo a perspectiva de Vygotsky, conceitos são sistemas de relações ou de generalizações contido nas palavras e constituído por um processo histórico-cultural. Aos conceitos estão agregados valores e, em geral, estes não se referem a um único objeto, mas a uma categoria, uma generalização, que é sempre uma constituição de caráter social.

Para Vygotsky, um conceito é mais do que um conjunto de conexões associativas respaldadas pela memória, um conceito é um ato do pensamento. Neste

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sentido, o pensamento de Vygotsky muito contribui nas reflexões acerca da aprendizagem de conceitos científicos nos processos de escolarização. Segundo Schroedes (2007):

Algumas premissas da teoria histórico-cultural são essenciais para as abordagens teóricas: as mediações culturais transformam as funções mentais superiores em sua estrutura; as funções mentais superiores são fenômenos históricos; a atividade prática se constitui na unidade básica para se estudar os processos psicológicos e a aprendizagem é uma aquisição de habilidades especializadas para o pensamento. Este pensamento, não deve ser entendido apenas como sendo uma característica pessoal do estudante, mas sim como uma característica do estudante interagindo com outros e com seu professor, em atividades de instrução socialmente organizadas. (SCHROEDES, 2007).

A citação de Schroedes (2007) nos faz concatenar para a importância da escola no processo de formação de conceitos, que é sempre um processo mediado pelo contexto em que os sujeitos estão inseridos. É na interação com o outro que propiciamos a oportunidade de desenvolvimento de conceitos científicos e consequentemente, também de transformação das funções mentais superiores. Nesse sentido, os conceitos científicos não são assimilados prontos, mas são resultantes de uma construção oriunda da interação histórica cultural, conforme comentaremos no próximo tópico.