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1. TESSITURAS SOBRE EDUCAÇÃO ESTÉTICA NO ENSINO DA ARTE

1.5 Educação estética e cultura popular: conflitos teóricos e práticos

Sabemos que a cultura popular tem lugar na escola e nas aulas de Arte e esse lugar tem nome e dia marcado, são as datas comemorativas: dia do Folclore, de São João ou Festas Juninas e o Carnaval. No dia do Folclore as crianças podem experimentar algumas brincadeiras “antigas” e no período de São João e Carnaval podem se “fantasiar”. Esse enfoque que a escola dá a cultura é no mínimo constrangedor quando se limita a ele. Por trabalhar com as manifestações artísticas de diferentes culturas, as aulas de Arte são um bom espaço para propor a vivência da cultura popular: “o fenômeno artístico está presente em diferentes manifestações que compõem os acervos da cultura popular, erudita, modernos meios de comunicação e novas tecnologias”. (PCN arte, 1997, p.37).

Marilena Chauí (1989) alerta que é preciso compreender a cultura popular e sua relação com a cultura erudita a partir do estudo das modificações que ambas sofreram. Entre “conformismo e resistência21” a cultura a partir do século XVIII passa a ser entendida como ligada a práticas sociais de subjetividades e imaginação natural. A autora recorre ao entendimento de Marx: a cultura é o campo onde ocorre a relação material dos sujeitos sociais a partir das condições dadas; e Gramsci que a define como a luta de classes, onde a ideologia se volta a exploração da plebe.

Na história da arte, aponta a autora, o movimento denominado Romantismo encontra na cultura popular uma forma de contrapor o Classicismo. Os românticos entendiam a cultura popular como pura, simples, sensível, um verdadeiro tesouro da vida. Viam que a aproximação com a arte erudita poderia ser um ganho para ambos, onde o povo teria acesso a ações politizadas e a elite se tornaria mais sensibilizada. Esta aproximação ocorre no Brasil nos anos 60 e 80 liderada pelas vanguardas artísticas.

Sobre a relação e as diferenças entre a cultura popular e a cultura de massa, Chauí escreve que no Brasil a cultura popular como uma totalidade orgânica autônoma, em atos de resistência (as práticas culturais), as vezes se dispersa no interior da cultura dominante. Já a cultura de massa é voltada para as exigências do mercado controlado e dirigido pela elite.

Muito além das datas comemorativas e seus estereótipos, conhecer a cultura popular é compreender as lutas ideológicas que compõem este campo de atividade humana. Sobre a múltipla influência da cultura popular e da cultura erudita, para Chauí é fundamental compreender as tensões dessa relação e o que está envolvido para que sejam diferenciadas em sua valorização. Para tanto, reconhecer as especificidades desta relação humana situada historicamente exige compreender as crenças, valores, a importância da oralidade dos grupos culturais distintos. Mais do que mostrar as diferenças culturais, a escola promovendo a discussão sobre a origem dessas diferenças, situa os alunos para a reflexão crítica.

Leonardo Boff no texto a Universidade e o Saber Popular22 discute esta relação ressaltando a importância da dialogia que Paulo Freire defendia para uma escola viva;

21 Título do Livro de Marilene Chauí “Conformismo e resistência. Aspectos da cultura popular”

22 Disponível em: https://leonardoboff.wordpress.com/2014/03/01/a-gestacao-do-povo-brasileiro-a-universidade-

onde os movimentos sociais. Chegam a universidade em busca dos saberes especializados que lhes são direito. A parceria entre a cultura popular e o saber sistematizado sedimentado na escola e na universidade, para Leonardo Boff, pode ser entendido como um devir fecundo. É no diálogo entre pensamento universitário e saber popular que melhorias a cultura local podem ser concretizadas. É também nesta relação que ambos os segmentos se constituem e se reconhecem, pois a universidade pública no diálogo com a cultura popular reafirma seu caráter público, voltada para a sociedade.

A arte popular como expressão direta do povo revela a sua força estética nas manifestações artísticas ligadas a práticas cotidianas e ritualísticas. A problematização da cultura na escola carece ter um espaço dialógico. Essa troca entre os saberes populares e os saberes acadêmicos precisam compor a formação e o trabalho dos professores de Arte. Nas aulas de Arte, o estudo da cultura popular começa quando o professor e a professora têm entre as suas competências, práticas pedagógicas que incluem vivências de brincadeiras, dança, música, pintura, teatro oriundo da cultura popular e insere imagens que a representam.

A arte popular é expressão profunda das aspirações e interesses do povo, numa dada fase histórica, e, como tal, mantém certa relação com a política, mas esta relação, por um lado não é algo exterior, que se imponha de fora, e por outro não é direta e imediata. (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1978, p. 304).

A arte popular resume Sánchez Vázquez (1978) é a arte universal que possui a beleza, mas não se limita a ela refletindo os desejos do povo que a gera, sendo a fiel representação das aspirações de um coletivo; a arte popular é também estética no sentido de sua originalidade criativa. O autor delimita de forma clara a condição da arte popular no capitalismo, reconhecendo sua adulteração, sua apropriação pela arte de massa resultando seu caráter tendencioso, onde o coletivo perde espaço.

A cultura se constitui por ações do cotidiano que deixam marcas de resistência e podem contribuir para uma educação comprometida com a formação dos sujeitos, fazendo frente ao processo globalizante de desumanização. A obra de arte, independentemente do suporte que a apresenta (pintura, escultura, arquitetura, cinema entre outros), traz em sua composição o pensamento do artista acerca da sociedade em que ele está inserido, suas faces e seus conflitos, e as manifestações da cultura popular refletem a sociedade e seu contexto através dos valores de determinados grupos.

As características temporais da cultura popular é que a faz ser particular e por isso, a Arte na educação ao priorizar o estudo dos elementos que consideram a origem das manifestações artísticas, dos rituais, resgata os valores dos grupos. Na cultura popular brasileira temos como referência os indígenas, a influência dos europeus e dos africanos em um cenário de troca de experiências marcado pelo sofrimento e exploração do colonizado. A cultura europeia foi imposta a jovem terra colonizada, mas não foi absorvida de forma neutra, e o resultado é a construção de uma cultura e de uma arte rica na sua diversidade de elementos.

A discussão em torno da cultura demanda o reconhecimento dessa luta e da multiplicidade de informações contidas em hábitos cotidianos de grupos que compõem a sociedade. Já não é possível, em terra brasiliana, falarmos em uma cultura singular, mas sim nas culturas constituintes do povo brasileiro, das muitas cores, crenças, ritmos, sabores, valores “o produto cultural é um símbolo, e o ato cultural é uma atividade de simbolização, isto é, uma atividade criadora e receptiva de símbolos, podemos sim descrever a cultura como uma estrutura simbólica” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1978, p. 54). O assentimento das diferenças culturais significa o abandono da valorização de uma cultura etnocêntrica.

A educação estética a partir da cultura popular se firma neste ponto para a valorização do homem social e criativo. Se a arte de cada povo simboliza a sua identidade, então cabe perguntar qual arte e qual identidade conhecemos do outro, e de nós mesmos. No viés desta reflexão a arte popular precisa ser reconhecida, respeitada e aceita no espaço escolar e na universidade para que possa então contribuir para a formação dos professores das professoras e dos alunos e alunas em um processo dialético para a emancipação23. “A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta” (HALL, 2013, p. 291).

A cultura popular é uma forma de sobrevivência, onde dominantes e dominados (com)vivem, cada qual dentro de seus objetivos e possibilidades. Assim sendo a cultura popular é “prática local e temporalmente determinada, como atividade dispersa no interior da cultura dominante, como mescla de conformismo e resistência” (CHAUÍ, 1989 p.43). Na sociedade capitalista, as querelas sociais resultam na

23Em Mészáros a educação como processo de produção e reprodução da vida social é caminho para a

desigualdade, onde o autoritarismo é arma usada por aqueles que representam a classe dominante.

Sociedades na qual as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais definidos direitos e deveres. A cidade olha a favela como uma realidade patológica, uma doença, uma praga, um quisto, uma calamidade pública (CHAUÍ, 1989, p.59)

O povo organiza a cultura popular como forma de manter sua identidade. Eles sobrevivem coabitando o espaço com a sociedade dominante e realizam modificações neste espaço. Criam elementos simbólicos que tornam nativos os sujeitos que ali convivem. Embora as manifestações artísticas apresentem características distintas recebem influências de poder, de ideologia e de padrões estéticos da sociedade junto com a oralidade, a culinária e a religião.

Aproximar as aulas de Arte da cultura popular em diálogo pode enriquecer a educação estética contribuindo para a educação que queremos, pois, a arte “Não é uma atividade lúdica em que o homem desprende o excedente de energia; não é a produção de objetos agradáveis; não é um prazer; é um meio de reunir os homens, angariando-os pela unidade de sentimento” (SODRÉ, 1996, p. 127). A riqueza dos elementos artísticos presente na cultura e na arte popular justificam a necessidade de vivenciá-los nas aulas de arte.

Todas as pesssoas a partilham em certo grau, e desenvolvem sua propria vida do sentimento dentro do quadro de estilo preponderante em seu país e sua época. Portanto, existe um sentimento próprio de cada cultura, que subjaz a sua construções e signifcações explícitas. (DUARTE JÚNIOR., P. 59, 1988)

O aluno que chega à escola tem uma história, uma marca cultural que faz dele único. Não podemos pedir a ele que se dispa de sua tradição cultural: “menino e menina, sua cultura aqui não entra, deixem do lado de fora”. Antes, uma educação estética valoriza a individualidade e canaliza essa força para os processos de desenvolvimento e reconhecimento do eu e do coletivo. A educação estética das pessoas está atrelada aos saberes construidos historicamente e pelas vivências cotidianas, no mundo real e concreto. Compreender e valorizar o humano presente nas criaçõess artísticas populares se faz necessário e esse estudo ultrapassa as datas comemorativas denunciadas no início deste subtítulo.

A escola e a Universidade precisam valorizar a cultura popular e reaprender com ela a importância da imaginação, da valorização da sabedoria de outros povos. Junto com o respeito aos valores da cultura popular, é preciso que o professor e a professora de Arte compreendam o lugar dos saberes da cultura popular, dos processos de luta e de resistência que ocorre nesta relação social. No enfoque da cultura popular, a escola e a universidade tem muito a aprender com os movimentos populares e seu teor político.

Nesta perspectiva o estudo da cultura popular é excelente parceira no desafio emancipatório da educação estética. Fora dele porém, negando à cultura popular sua condição de luta e resistência, se torna inócuo e reprodutor do caráter populesco o que se aplica hoje em algumas escolas.