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2. A ARTE, A ESTÉTICA E A EDUCAÇÃO: MÚLTIPLAS INFLUÊNCIAS

2.4 Sobre a Arte Verdadeira: Considerações de Lukács

Li um texto na internet sobre uma reunião que aconteceu no Maranhão em que um grupo de professores pesquisadores discutiam os problemas que a Educação Física enfrentava na escola. O título do debate era: “Que educação física temos? Que educação física queremos?”43. A simplicidade aparente da pergunta provocou um impacto devido a sua complexidade. Imediatamente estendi a reflexão para o ensino da Arte: o que efetivamente estamos fazendo em prol de uma educação estética emancipadora? O que temos?

Os indícios acerca “do que temos” está discutido na análise dos dados; o que queremos está explicitado desde o título da pesquisa: uma educação estética para a emancipação dos sujeitos. Para chegarmos ao que queremos consideramos fundamental conhecer, refletir e discutir sobre a importância da arte verdadeira nas considerações de Lukács. Já apontamos a importância das situações estéticas que estão atreladas a formação cultural dos sujeitos, do papel da objetividade em equilíbrio com a subjetividade e da condição da obra de arte na sua união com a realidade do homem. Todos esses conceitos são imprescindíveis na construção de uma educação estética emancipadora, seja do ponto de vista do artista ou do espectador. E no que confere a obra de arte, para ser verdadeira e conservar seu potencial educativo precisa de alguns cuidados essenciais.

43 Disponível em: http://cev.org.br/comunidade/maranhao/debate/que-educacao-fisica-temos-que-educacao-fisica-

Em suas análises sobre arte e literatura, Lukács descreve o capitalismo como a condição atual de negação da arte verdadeira, mas salienta que esta situação não é considerada como acabada. Hipervalorizando as artimanhas e desajustes do capitalismo, estaríamos aceitando que os artistas seriam incapazes de criar a arte verdadeira e não é deste modo. Ele lembra que no movimento dialético, as tensões provocam resistência, e a arte pode ser uma forma de afrontar o aniquilamento do humano no mundo contemporâneo.

Sobre as inovações técnicas, os espaços interativos da arte contemporânea, Lukács entende a dinâmica do mundo e as transformações que sucedem, mas, não aceita que tais inovações contribuam para a fragmentação do sujeito: “(...) toda obra de arte autêntica obedece e amplia, ao mesmo tempo, as leis de seu próprio gênero. E a ampliação ocorre sempre no sentido de satisfazer as “exigências do momento”. (LUKÁCS, 2010, p.16).

Este império exercido sobre a consciência humana pela divisão capitalista do trabalho, esta fixação do isolamento aparente dos momentos superficiais da vida capitalista, esta separação ideal de teoria e práxis, produzem – nos homens que capitulam sem resistência diante da vida capitalista – também uma cisão entre o intelecto e o mundo dos sentimentos. (Idem, p. 66)

A separação da sensível e do inteligível no estudo da Arte colabora para uma relação parcial com a obra. Na escola e na universidade ocorrem algumas práticas pedagógicas que flutuam em seu extremo: o aluno fica livre para “criar” a partir de sua subjetividade hipervalorizada, onde tudo é válido por ser a expressão particular do sujeito; ou o estudo acerca da biografia do artista, do movimento histórico do qual a obra faz parte. A busca do equilíbrio entre as abordagens pode ser um caminho para a educação estética verdadeira, parafraseando Lukács, que significa estar comprometida com a emancipação dos sujeitos através da apropriação dos saberes que a arte representa para a humanidade. A inseparabilidade arte e vida é condição para a arte verdadeira: “A concepção do mundo do escritor abre-lhe caminho para uma consideração sem preconceito da realidade, ou se interpõe entre o escritor e a realidade uma barreira que impede sua plena entrega as riquezas da vida social. (LUKÁCS, 2010, p. 76)

A obra de arte realista, verdadeira, capta unidade contraditória do criador e do escritor e para Lukács a profundidade da intuição estética se revela na aproximação com a realidade, exigindo que o homem se afaste da fetichização e da mistificação. A obra

de arte dentro do conceito do realismo está fundida com o mundo dos homens, e mesmo tendo personagens fictícios, do mesmo modo, está comprometida com as relações humanas.

Entre algumas coisas que me incomodam, uma é ouvir que a aula de arte tem que ser divertida, como se fosse uma premissa básica. Não que não possa ser divertida e prazerosa uma aula de arte, mas a obrigatoriedade de sua condição de diversão, violenta o compromisso da Arte com a educação. Soma-se a esse entendimento as diversas concepções pedagógicas que buscam transformar a educação em um cenário de práticas subjetivas, utilitaristas gerando a negação dos saberes que poderiam auxiliar os sujeitos em sua mudança de realidade. Nesta forma de conceber a Arte e a educação tudo é relativo, possível e permitido ao se praticar arte, pois qualquer tentativa de orientação fere a porção artista inerente aos sujeitos. Estes entendimentos equivocados na verdade, se ignoram a arte como uma necessidade de autoconhecimento e consciência do mundo. Sobre essa concepção da arte pela arte junto com o acelerado ritmo da vida moderna, Lukács escreve que as orientações filosóficas subjetivistas assumem de forma perigosa o pensamento em torno da criação artística. Supervalorizando a subjetividade e dissolvendo a objetividade retira o homem do processo criativo, vagando nas impressões.

Mas o que é este famoso “ritmo da vida”? É precisamente a inumanidade do capitalismo, que tende a reduzir as relações humanas recíprocas dos homens a uma exploração recíproca, a um enganar e se deixar enganar e que, neste nível abstratamente superficial e anti-humano, desenvolve nos interessados uma sabedoria empírica, um conhecimento vulgarmente utilitarista dos homens, cuja essência e precisamente o completo esquecimento de toda humanidade. (Idem, p.90)

Este ritmo da vida criticado por Lukács é uma ameaça à concepção da arte como consciência do mundo, e por consequência reforça o projeto desumano do capitalismo, que entre suas faces, assume o discurso de um tempo acelerado. Uma velocidade que objetiva destituir do homem sua capacidade crítica. Essa “urgência” não isenta a Arte na educação, e a liberdade (que exige consciência crítica) é substituída em parte pela espontaneidade

Quanto mais solidamente os pensamentos e sentimentos dos homens se mantiverem prisioneiros do pobre e abstrato cárcere da espontaneidade, tanto maior será a margem de segurança das classes dominantes. Compreende-se que

isto diga respeito particularmente ao movimento operário; mas vale igualmente para todos os campos da vida cultural. (Idem, p. 109)

A espontaneidade está nessa falsa liberdade de criar que significa, neste caso, o abandono do aluno as suas impressões subjetivistas. Sem consciência crítica, este aluno desamparado, passa a repetir ações automatizadas e de alguma forma afasta a arte da vida real, e, a educação estética para a emancipação se distancia. Lukács quando se refere ao perigo do espontaneísmo, argumenta que o fazer mecânico afasta o homem dos problemas da vida, pois estar consciente é ponto central para as mudanças.

É recorrente o discurso sobre a autonomia da arte. Consideramos importante a compreensão dessa autonomia desde que ela esteja comprometida com a vida do homem. É assustador ouvir de alguns educadores que arte não se discute; abandonando a chance de problematizar a implicação da arte no mundo dos homens.

A autonomia é, para a arte, a atmosfera indispensável para sua existência. Mas há autonomia e autonomia. Há aquela que é um momento da vida, que é a exaltação da sua riqueza e da sua unidade contraditória; e há aquela que não passa de um enrijecimento, de um estéril fechamento em si mesma, de um alheamento em face da totalidade dinâmica. (Ibidem, p.127)

No viés destas considerações, pensamos que a educação estética que visa o salto qualitativo na educação considera que pela arte e através dela a consciência humana continue a se desenvolver e que a reflexão em torno das condições sociais em que estamos vivendo nos ajudam a mudar a realidade que nos violenta. Os alunos e os professores têm o direito ao acesso a arte verdadeira: “forma artística concreta corresponde a um conteúdo determinado e seu caráter depende, por um lado, da amplitude e da profundidade com as quais é refletida a realidade objetiva de um determinado período e, por outro, dos sentimentos, dos pensamentos e das experiências que ela pretende expressar” (LUKÁCS, 2010, p. 141)

A arte verdadeira para o autor é a do Realismo. Lukács é taxativo quanto a importância da criação artística ser pontuada pelos fundamentos do realismo, e contrapõe a arte moderna exatamente em sua incapacidade e descompromisso em refletir a realidade de forma comprometida. A arte para Lukács só é capaz de ser poética quando fala a partir e para as experiências humanas. A obra de arte verdadeira apresenta personagens e lugares em uma compreensão humana histórica universal. O personagem

de um romance ou de um quadro, ou ainda de uma peça de teatro pode perfeitamente fazer parte de nosso mundo, pois traz em sua composição a experiência humana que gerou sua criação. Portanto a arte fala e podemos falar com a arte.

E, certamente, não é por acaso que – no mesmo momento em que as tendências pictórico-descritivas do naturalismo rebaixam os homens, na literatura, ao nível de naturezas-mortas – também a pintura perca a capacidade de representar de modo intenso a expressão sensível. Os retratos de Cézanne, se comparados a plenitude psicológica presente nos de Tiziano e Rembrandt, são também naturezas-mortas, exatamente como os são os personagens de Goncourt e de Zola quando comparados a Balzac ou de Tolstoi. (LUKÁCS, 2010, p.176)

Criticando a representação de personagens e objetos que se distanciam da obra de arte verdadeira, o autor vê no Realismo o caminho para se fugir da falsa arte, que nada acrescenta, que violenta nossa sensibilidade e nossa capacidade de superação. Sempre olhando as consequências do capitalismo que avança e limita o homem em sua capacidade criadora e sensível, o autor chama a atenção quanto aos perigos que a arte enfrenta para manter seu compromisso com o homem social histórico.

O fato de que o capitalismo se consolidou não significa, decerto, que tudo esteja agora pronto e acabado e que a luta e o desenvolvimento tenham cessado, inclusive na via de cada indivíduo. Isso significa apenas que o sistema capitalista se reproduz sempre como tal, num nível cada vez mais elevado de inumanidade “consolidada”. O sistema se reproduz ininterruptamente, mas este processo de reprodução é, na realidade, uma serie de lutas ferozes e cruentas, inclusive no âmbito de cada indivíduo, que é transformado em acessório desumanizado do sistema capitalista, mas não é tal desde o seu nascimento. (Idem, p.183)

Nas considerações de Lukács o inacabamento do homem é ponto de resistência ao capitalismo agressivo que avança na destruição da criatividade dos sujeitos. A arte realista alimenta essa potencialidade do homem através de sua consciência.

A concepção do mundo é a mais elevada forma de consciência; por isso, o escritor que a ignora suprime o aspecto mais importante do personagem que pretende criar. A concepção do mundo é uma profunda experiência pessoal do indivíduo singular, uma expressão altamente característica de sua íntima essência, e reflete ao mesmo tempo os problemas gerais da época. (Idem, p. 189)

Aqui, Lukács está se referindo a obra literária, no entanto, suas considerações não isentam a criação artística como um todo.

A orientação geral da arte burguesa moderna afasta o artista, mesmo quando ele é bem dotado, dos problemas essenciais de nossa época, dos grandes abalos sociais. Na literatura, reforça-se a capacidade para expressar tudo o que é insignificante, os mais fugidios aspectos da mera individualidade, ao mesmo tempo que os grandes problemas sociais são rebaixados ao nível da banalidade. (Idem, p. 210)

É compreendendo a defesa de Lukács acerca da arte verdadeira e seu desdobramento para a consciência do homem que seremos mais atentos com as práticas pedagógicas. Mais do que agradável de se ver, ouvir e sentir, a obra de arte é contato consciente do mundo que representa, pois “Literatura e arte são fenômenos sociais extremamente importantes; e, como tais, foram investigados, em sua mútua relação recíproca com a existência social e moral do homem, pelos escritores do passado. (LUKÀCS, 2010, p.242).

É recorrente nas aulas de Arte a ânsia por novidades; e muitas vezes essas novidades estão esvaziadas de sentido formativo. Entre essas tais inovações temos as técnicas artísticas adaptadas para a sala de aula: pintura feita a dedos; uso de canudinhos para assoprar no papel a tinta, uso de esponjas, entre tantas outras. A partir delas e resumidas a elas, o efêmero, a subjetividade e a questão de gosto parece ser a diretriz onde a criatividade se resume a livre expressão. Ocorre uma inversão de valores, uma (des)educação. Um outro exemplo é o uso da tecnologia na arte. De seu lugar de ferramenta importante para a aquisição dos saberes da arte, assume uma autonomia que colabora para a desqualificação dos sujeitos em sua trajetória de emancipação. Algumas ferramentas tecnológicas deixam de ser um potencial para a criação artística e assumem, pela novidade que representam, o (pseudo) papel de obra de arte.

A valorização excessiva da subjetividade, que começa já na escola, leva alguns artistas a aceitarem em sua criação “O costume moderno de supervalorizar e de exagerar a importância da subjetividade criadora” que para Lukács não revela a criação da arte verdadeira e nem valoriza o trabalho do artista, “ao contrário, corresponde a debilidade, a pobreza da individualidade dos escritores” (Idem, p. 253)

O academicismo trata da literatura clássica desconhecendo o seu caráter popular e progressista, a conexão entre os problemas estéticos que lhe são próprios e as mais profundas questões da vida social, do passado, do presente e do futuro da nação. Transforma os clássicos, portanto, em pálidos fantasmas, isolando os elementos exteriores de seu estilo (como a pureza formal), bem

como os componentes abstratos de seu conteúdo (“arte pura”, “capacidade de elevação” acima da sociedade, “conservadorismo”), e, deste modo, fazendo deles espantalhos para desencorajar qualquer progresso na arte. (Idem, p. 253- 254).

É conhecendo e convivendo com a arte verdadeira que os sujeitos avançam em sua percepção para o autoconhecimento e consciência, e na poiesis alcançam o equilíbrio entre a subjetividade e objetividade resultando a criação consciente do individual para o coletivo.

Mas a própria atividade criadora é somente um ponto de partida, um amplo fundamento de experiências e de conhecimentos artísticos. E, apesar disto, todos estes escritos (ainda que diversos em si, ainda que em violenta polêmica uns com os outros) orientam-se sempre no sentido da objetividade. Diversos é o seu conteúdo, diversa a tendência ideológica, diverso o método; todavia em todos eles, pergunta-se sempre: no meu trabalho de artista, o que é objetivamente válido? De que modo pode aquilo que desejo intensamente atingir como escritor inserir-se no mundo objetivo das leis que regem as formas artísticas? Como posso conciliar minha subjetividade, minha individualidade de escritor, com as exigências objetivas da arte e com as correntes sociais objetivas que vivem subterraneamente no povo e que aspiram ser expressas? (LUKÁCS, 2010, p. 247 -248).

Tal comprometimento do artista é também um respeito e uma consciência da arte na vida das pessoas; e educação pensada por estas premissas colabora com o amadurecimento dos sujeitos. Da mesma forma que na citação o autor frisa a importância da autocrítica do escritor, como professores também é fundamental refletirmos continuamente sobre a nossa formação e nossa ação pedagógica. A arte como forma particular de reflexo da realidade contempla o movimento da vida e suas transformações, e por isso a arte verdadeira é presença marcante em cada tempo por sua universalidade.

Uma arte que seja por definição sem repercussão, ou seja, incompreensível para os outros, uma “arte” que tenha caráter de um puro monólogo, só seria possível num hospício, da mesma forma que uma filosofia que levasse o solipsismo as suas últimas consequências. A necessidade de repercussão, tanto do ponto de vista da forma quanto do conteúdo, é característica inseparável, o traço essencial de toda obra de arte autêntica em todos os tempos. A relação ente a obra e o seu público – ou seja, uma determinada sociedade, ou uma parte historicamente determinada desta sociedade – não é algo que se acrescente posteriormente, de maneira acidental, a obra subjetivamente criada e objetivamente existente. (Idem, p. 271)

Para Lukács a relação obra e expectador tem um caráter dinâmico e complexo que remete ao diálogo, a uma troca entre os envolvidos, e por isso destaca a importância da agitação dos sujeitos para o entendimento da obra, que tem entre as consequências o deslocamento dos envolvidos. Esse movimento necessário compõe a obra de arte verdadeira e só poderá exercer tal efeito no sujeito criador e no receptor se estiver comprometida com nossa humanidade.

Ampliando a reflexão sobre o que está imbricado na arte verdadeira, penso nos tambores africanos. A força pulsante da percussão acelera o coração de quem toca e de quem houve. Para alguns a energia desprendida do tambor é insuportável; causa um desassossego sem fim. Para outros, este mesmo estrondo atinge o corpo de forma incontrolável. Longe de citar esta comparação para resumir a complexidade da verdade na obra de arte, o que quero dizer com esta divagação comparativa é que, assim como a verdade do tambor não pede licença para existir, a autenticidade da obra não passa despercebida para os sujeitos mesmo que esse encontro tenha desdobramentos distintos para os envolvidos

Assumindo a importância da arte verdadeira como fundamental para a educação estética emancipatória e retomando a reflexão inicial deste subtítulo (a educação estética que queremos) apontamos que a sua construção passa pela força formativa da arte verdadeira, do realismo defendido por Lukács. Com isso, questionamos as atividades lúdicas do ensino da Arte centradas na percepção do sujeito priorizando subjetividades. É somente através do acesso aos saberes historicamente construídos que os sujeitos encontram razões para lutar pela transformação da sociedade na recuperação da sua humanidade. Esse é o papel da escola e a Arte não pode se ausentar deste compromisso