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iGreJA cAtÓlicA, eDUcAÇÃo e DiversiDADe: Dos eventos

3.3 A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): Diversidade e educação

3.3.2 Educação, Igreja e Sociedade (1992)

A escolha do tema Educação, Igreja e Sociedade, pela Assembleia Geral da CNBB, em 1992, está vinculada à missão de educar da Igreja; a educação é considerada como condição básica para o desenvolvimento e o exercício da cidadania dos indivíduos.

A questão da educação percorre todo o documento em sua interface com a religião católica. É realizado um panorama da situação escolar brasileira, no qual são apontadas suas grandes lacunas: a falta da quali- dade de ensino; elevados índices de evasões e repetições; altas taxas de analfabetismo; falta de motivação do aluno; ausência de investimento em formação continuada dos professores; pouca participação da família na escola; fome crônica.

Na análise sobre as causas do fracasso escolar, é indicada a inade- quação das escolas em atender aos diversos segmentos sociais que nelas

estão presentes, pois utilizam metodologias, avaliações padronizadas que terminam por estigmatizar e discriminar educandos mais pobres e de minorias étnicas (CNBB, 1992, p. 3).

A educação é compreendida como parte integrante da cultura, no caso da situação cultural brasileira, fruto do passado de dominação étni- co-cultural, ao qual indígenas e negros estiveram submetidos. Reconhe- ce, entretanto, o documento em que os indígenas reivindicam seus direi- tos de existência, ao passo que os negros exigem liberdade de expressão e reconhecimento de sua dignidade (CNBB, 1992, p. 7).

O texto salienta que o ser humano é um sujeito cultural em constan- te processo de realização, sujeito às mais diversas formas de expressões culturais que surgem por meio de grupos específicos, no caso dos gru- pos étnicos (indígenas e negros), segmentos sociais/culturais, etários, estes são impedidos de realizar suas potencialidades.

O documento realça a presença histórica da Igreja educadora, pre- sente desde o início da história da educação no Brasil e que mantém ao longo do tempo influência no processo da educação brasileira. No en- tanto, em determinado momento, realiza uma autocrítica ao se referir à pouca atenção que conferiu à situação da população negra recém-liberta no período pós-escravista.

(...) demora em captar as aspirações educativas das classes sociais marginalizadas pelo nosso processo histórico. Em um país que saia do regime oficial de escravidão, exata- mente quando a Igreja empreendia seu maior esforço na área da educação formal, essa não se abriu suficientemente para as necessidades desse imenso contingente da popula- ção brasileira até hoje, não sem culpa nossa, excluído do acesso à educação e consequentemente à participação na vida social e política do país. (CNBB, 1992, p. 8)

Com esse olhar sobre os diversos segmentos sociais e étnico-raciais, o documento enfatiza a realização de uma educação libertadora já men- cionada no Documento de Medellín, a proposta de uma nova educação que contemple a sociedade latino-americana desejada. Dessa maneira, faz-se necessário que a educação seja promotora de novas consciências críticas. Para que essa perspectiva educativa não se esvazie, é preciso

Coragem para assumir um processo educativo global que parta de um novo lugar social – isto é, das multidões mar- ginalizadas – e que se oriente e vá até os novos sujeitos históricos da sociedade que emerge. É, sobretudo para a formação desses novos sujeitos que ela deve estar voltada. Qualquer trabalho educativo cristão, em qualquer meio social, deve ser revisado a partir do lugar dos interesses sociais dos grupos historicamente colocados à margem da vida social, econômica, política, cultural e religiosa. Isto questiona a instituição e o educador cristãos conscientes. Exige deles uma opção. (CNBB, 1992, p. 21)

Os documentos elencados revelam um panorama compreendido num espaço de tempo de 39 anos (1968-2007), em que a Igreja se po- siciona frente as questões de âmbito social como a educação e a diver- sidade cultural, importantes dimensões que reorientam seu processo de evangelização na América Latina. Do Concílio Vaticano II, passando pelas Conferências episcopais, sendo que, no interregno entre o Docu- mento de Medellín e o Documento de Santo Domingo, ocorreram dois documentos da CNBB que trazem os temas da educação e cultura a se- rem desenvolvidos na prática cotidiana dos cristãos católicos.

Os documentos produzidos pelo Concílio Vaticano II vão em dire- ção à mudança interna da Igreja e orientam de modo geral a presença católica no mundo, tomando, como instrumento de evangelização, a educação, ao passo que os documentos episcopais lançam seus olhares para a atuação da Igreja na América Latina. Nas Conferências, o per- curso é delineado pela constatação das condições de exclusão do povo latino-americano em suas profundas desigualdades sociais, promovidas pelo sistema capitalista (Medellín e Puebla), até o reconhecimento e va- lorização do pluralismo étnico-cultural (Santo Domingo e Aparecida). A importância desses documentos ocorre à medida que são compreendi- dos como a materialidade das concepções que a Igreja Católica vai con- formando, ressignificando e reconstruindo no percurso de sua história.

Ao longo dos documentos, duas dimensões dialogam de forma per- manente: a educação e a diversidade cultural. Destaca-se que a Igreja as- sume a concepção de uma educação libertadora, que visa à formação de cidadãos críticos capazes de transformarem a realidade social. A educação

libertadora no Brasil assumiu o caráter da educação popular, que teve seu auge na década de 1960 com o educador Paulo Freire. Não por aca- so, de acordo com o período histórico, no Documento de Medellín, a Teologia da Libertação recebe espaço e reconhecimento, sendo uma de suas marcas de atuação as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), espa- ço em que ocorre o trabalho de evangelização. A Igreja Católica procura acompanhar a dinâmica da nova ordem constitutiva da sociedade con- temporânea, sendo o processo de globalização uma realidade que traz em seu bojo identidades culturais que reivindicam reconhecimento de sua diferença. Nesse sentido, a prática de um tipo específico de educa- ção, que leve em conta o saber popular, a valorização das diversidades, das expressões culturais dos povos, torna-se condição do fazer educativo libertador. A partir de seu aggiornamento, esse tem sido o esteio da Igreja em seu processo de evangelização dos povos.

É importante constatar que a situação do negro vem sendo tangen- ciada ao longo dos documentos publicados pela Igreja, tanto que as re- flexões da Conferência de Aparecida trazem elementos que contribuem para a institucionalização da Lei nº 10.639/03, ensino da cultura e histó- ria africana e afro-brasileira nas escolas privadas confessionais.

O processo de construção da lei reporta a presença de diversos atores sociais, entre militantes, movimentos negros, organismos de defesa dos direitos da população afro-brasileira, como também da Igreja, uma vez que a questão racial passa a ser compreendida por essa instituição como mais uma ação de luta. Verifica-se que a militância negra, em seu interior, buscou fundamentar sua ação por meio da atuação desses sujeitos en- gajados na própria Igreja como produtores de conhecimento no mundo acadêmico. É o caso da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que possui reconhecido histórico na luta por uma sociedade antirracista e atuou, inclusive, como relatora do Parecer CNE/CP nº 03/04 que fun- damenta a Lei nº 10.639/03. Em sua atuação no assessoramento aos mili- tantes negros na Igreja, algumas ações se destacam: participação no Grupo de Mulheres para reflexão teológica; participação de encontros no Grupo União e Consciência Negra (GRUCON), do Rio Grande do Sul em 1986; pesquisa para o GRUCON; participação da reunião de trabalho do União e Consciência Negra; assessoria aos Agentes de Pastoral Negros (APNs)

durante 15 anos em nível nacional e no Rio Grande do Sul; integração ao Centro Atabaque de Cultura e Teologia Negra, fundado em 1990. Essas ações revelam uma das formas de apoio que a Igreja direciona no enfrentamento do racismo brasileiro.

Nesse sentido, a Lei nº 10.639/03 encontra nos documentos da Igre- ja Católica reflexões que respondem a uma das hipóteses deste trabalho, que interroga sobre o trato da diversidade étnico-racial em seu interior. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educação é considerada como um ativo preponderante e ins- trumento de transformação social.

(...) é papel da escola, de forma democrática e comprome- tida com a promoção do ser humano na sua integralidade, estimular a formação de valores, hábitos e comportamen- tos que respeitem as diferenças e as características próprias de grupos e minorias. Assim, a educação é essencial no processo de formação de qualquer sociedade e abre cami- nhos para a ampliação da cidadania de um povo. (DIRE- TRIZES CURRICULARES, 2004, p. 7)

A Lei nº 10.639/03 é considerada, pelo Plano Nacional de Imple- mentação das Diretrizes Curriculares, uma lei afirmativa, pois reconhece a escola como lugar da formação de cidadãos, cabendo-lhe promover a valorização das matrizes culturais que constituem o pluralismo que for- mam o Brasil (BRASIL, 2009, p. 5).

Com isso, a formação oferecida pelas escolas, conforme o Parecer CNE/CP nº 03/04, deve ir em direção de arregimentar esforços para a compreensão da dinâmica sociocultural da sociedade brasileira, de modo a construir representações positivas de segmentos populacionais/ sociais discriminados, associados à construção de um ambiente escolar que possibilite a manifestação da diversidade em sua expressão criativa, capaz de superar os preconceitos e discriminações étnico-raciais.

Portanto, indaga-se: como esses documentos refletiram na militân- cia negra dentro da Igreja Católica brasileira? De que maneira o contexto sociopolítico influenciou a mudança na atuação dos negros na Igreja?