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II.28 Evolução da sensibilidade e da especificidade da PPZ a diferentes cut-off

3.2 Efeitos sobre o sistema hematopoiético

O aspecto talvez mais estudado e sem dúvida o melhor conhecido da acção do chumbo no organismo reside na sua interferência sobre a síntese do heme ao nível dos percursores dos eritrócitos na medula óssea.

O heme é um grupo prostético da hemoglobina, sendo composto por um ião de ferro (Fe2+) associado a 4 anéis pirrólicos. O átomo de ferro permite ainda mais duas ligações: uma destina-se à globina, para a formação da molécula de hemoglobina, enquanto a outra fica disponível para a ligação com o oxigénio, resultando na formação da oxihemoglobina.

A síntese do heme (KAPLAN, 1983; DUC, KAMINSKY e KLEIN, 1994; NUTTAL, 1994; LAUWERYS, 1999) ocorre a partir da glicina e do succinil Co-A proveniente do ciclo de Krebs (Figura I.6). A reacção destas substâncias, catalisada pela enzima ALA-sintetase (ALA-S), localizada na matriz das mitocôndrias, dá origem ao ácido δ-aminolevulínico

(ALA).

Figura I.6: Representação esquemática da síntese do heme.

(a sombreado, as inibições enzimáticas do chumbo)

SUCCINIL CoA + GLICINA

Ac.δδδδ-AMINOLEVUL ÍNICO (ALA) HEME HEME PROTOPORFIRINA IX COPROPORFIRINOGÉNIO III FERRO PORFOBILINOGÉNIO UROPORFIRINOGÉNIO III COPROPORFIRINOGÉNIO III Mitocôndria Citosol ALA-sintetase ALA-desidratase PBG-desaminase UPG-descarboxilase FERRO-quelatase CPG-oxidase Uroporfirina III Coproporfirina III PBG-isomerase

Duas moléculas de ALA, sob a acção da ALA-desidratase (ALA-D) (“extremamente

sensível à inibição pelo chumbo”), formam o porfobilinogénio (PBG).

Quatro moléculas de PBG convertem-se em Uroporfirinogénio (UPG) por acção da PBG-desaminase, enzima de elevada actividade nos eritrócitos. A partir deste UPG podem sintetizar-se dois isómeros  I e III. A formação do isómero III depende, ainda, da presença de outra enzima, a PBG-isomerase, cuja quantidade local determina a dimensão de síntese do UPG-III.

A conversão do UPG III em Coproporfirinogénio III (CPG-III) efectua-se por sucessivas descarboxilações catalisadas pela uroporfirinogénio-descarboxilase (UPG- descarboxilase). A mesma enzima converte igualmente o isómero I mas numa taxa muito mais lenta.

Este CPG III converte-se em Protoporfirina IX (Proto-IX, PPE) sob acção da coproporfirinogénio-oxidase (CPG-oxidase ou Copro-O), segundo um processo que ocorre dentro da mitocôndria e requer a presença de oxigénio molecular.

Finalmente, o ferro (na forma ferrosa) é inserido na protoporfirina IX para formar o

Heme. A reacção ocorre espontaneamente a uma taxa lenta, mas é catalisada pela

enzima mitocondrial ferro-quelatase (Ferro-Q).

A sequência de reacções é unidireccional e irreversível. Dado que o ALA produzido no organismo é, praticamente todo, utilizado para a síntese do heme, é provável que desempenhe o papel de controlador desta síntese. Admite-se, assim, que a quantidade de heme produzido exerce um efeito de feedback sobre a actividade da ALA-S: a produção de heme inibe a actividade da ALA-S e uma necessidade acrescida de heme estimula-a. Da maior ou menor actividade desta enzima resultará, portanto, a maior ou menor intensidade de síntese do heme.

Pela sua afinidade com os grupos sulfidrilo (SH-), o chumbo interfere em vários pontos da cadeia de síntese do heme, inibindo a acção de enzimas catalisadoras deste processo. Nos eritrócitos, a elevada afinidade do chumbo para ligação a proteínas é de modo mais intenso e precoce verificada com a ALA-D, resultando na inibição da sua actividade (SARYAN e LENZ, 1994; BERGDAHL, 1998). Por ordem decrescente de intensidade registam-se, ainda, inibições ao nível da ferro-quelatase, da coporfirinogénio-oxidase e da porfobilinogénio-desaminase (DUC, KAMINSKY e KLEIN, 1994).

Na sequência destas acções inibitórias acumulam-se os respectivos substratos, verificando-se uma elevação dos níveis sanguíneos e da excreção urinária de ácido δ- amino-levulínico (ALA) e de coproporfirina III (Copro III), bem como dos níveis eritrocitários de protoporfirina IX (PPE).

A diminuição da síntese do heme conduz, entretanto, por um mecanismo de retroalimentação (feed-back negativo), ao aumento da actividade da sintetase do ALA (ALA-S) com a consequente elevação dos níveis de produção de ALA , o que contribui, dada a inibição da sua transformação, para o aumento dos níveis sanguíneos e urinários deste substrato (KAPLAN, 1983).

A interferência do chumbo ao nível da ferro-quelatase impede a incorporação do ferro nos anéis porfirínicos da protoporfirina IX.

Para TAKETANI e TOKUNAGA (1981) e DAILEY e FLEMING (1983), o chumbo interage directamente com aquela enzima inibindo a sua actividade (JACOBS et al., 1998). Segundo outros estudos, contudo, o chumbo não inibe directamente a ferro-quelatase mas sim a redução do ferro férrico em ferro ferroso, forma necessária à incorporação na protoporfirina uma vez que o ião férrico não é utilizável pela enzima (LABBÉ, 1977; JACOBS et al., 1998; LAUWERYS, 1999).

Adicionalmente, segundo TAKETANI (1993) e BARNAM-HUCKINS (1997), o chumbo diminui a captação de ferro mediada pela transferrina, bem como suprime a síntese de transferrina no tecido eritróide (JACOBS et al., 1998).

A impossibilidade de o ferro se incorporar na protoporfirina (o que acontece quer por efeito do chumbo quer quando existe défice de ferro) permite a sua substituição pelo zinco nos mesmos locais de ligação, sendo este novo complexo entre a protoporfirina IX e o zinco (protoporfirina-zinco — PPZ) que se irá ligar à globina em substituição do heme (LAMOLA e YAMANE, 1974; BLUMBERG et al., 1977; WALDRON, 1980; FISCHBEIN et al., 1982; IPCS, 1995; GOYER, 1996; LABBÉ, VREMAN e STEVENSON, 1999).

Os efeitos do chumbo na síntese do heme fazem sentir-se mesmo em situações de baixa exposição, podendo ocorrer quando a plumbémia é inferior a 40 µg/dL, embora a este nível não sejam considerados como adversos (SCOEL, 2000).

MASCI et al., em estudo envolvendo trabalhadores sujeitos a doses de exposição externa entre 1 e 23 µg/m3 ao longo de 7 anos, verificaram que mesmo a níveis de plumbémia que consideraram baixos (entre 5 e 48 µg/dL) se registava uma associação com os valores da PPZ, os quais baixavam progressivamente à medida que as taxas da plumbémia (Pb-S) se reduziam (de uma variação entre 7 e 45 µg/dL em 1988 para uma variação entre 2 e 47 µg/dL em 1994, com variação da mediana de 22 para 11 µg/dL e da média geométrica de 21,9 para 9,5 µg/dL) (MASCI et al., 1998).

Segundo a OSHA, a partir de níveis de Pb-S de 40 µg/dL há uma relação exponencial com a inibição da ALA-D e com o aumento da PPZ. A partir de 40 µg/dL de Pb-S, mais de 20% dos indivíduos apresentará uma inibição da ALA-D de 70% e a níveis de 50

Parece, além disso, que existe uma diferente susceptibilidade individual relativamente aos efeitos do chumbo sobre a cadeia enzimática da síntese do heme.

A enzima ALA-D possui dois alelos co-dominantes, 1 e 2. SITHISARANKUL et al., em estudo sobre 65 trabalhadores expostos (44 com genótipo ALA-D1-1 e 21 com genótipo ALA-D1-2), verificaram que o ALA plasmático dos indivíduos “1-1” era significativamente maior que o dos indivíduos “1-2” (p= 0,01), sugerindo que os portadores do primeiro genótipo poderão ser, assim, mais susceptíveis à acção do chumbo(SITHISARANKUL et al., 1997).

Também ALEXANDER et al. verificaram que os indivíduos ALA-D1-1 apresentavam maiores níveis de PPZ que os ALA-D1-2, diferença mais pronunciada a partir de plumbémias de 40 µg/dL, sugerindo que a forma ALA-D1-2 se liga de forma mais forte ao chumbo, tornando-o menos biodisponível e, portanto, com menor liberdade para agir sobre a ferro-quelatase (ALEXANDER et al., 1998b).

Em indivíduos com Pb-S superior a 20 µg/dL, SAKAI et al. verificaram que os portadores de genótipo ALA-D1-1 apresentavam níveis de PPZ significativamente mais elevados que os de genótipo ALA-D1-2 e que, acima de 40 µg/dL, tinham também mais altos níveis de ALA-U e de ALA no sangue. Concluíram, deste modo, que o genótipo ALA-D1-1 representa uma maior susceptibilidade à perturbação do metabolismo do heme pelo chumbo (SAKAI, MORITA e ARAKI, 1999).

Estes estudos corroboram, assim, as conclusões de SCHWARTZ et al., que sugeriram que o genótipo ALA-D1-2 representaria um sistema protector contra os efeitos do chumbo e que a constituição genotípica da ALA-D poderia conduzir a situações de difícil entendimento ao constatarem que, a um mesmo nível de exposição, os indivíduos ALA- D1-2 podiam apresentar mais elevados níveis de Pb-S (sangue total) mas menos intensos efeitos que os indivíduos ALA-D1-1 (SCHWARTZ et al., 1995).

A diminuição da síntese do heme implica a alteração da síntese da hemoglobina. Sendo o heme, entretanto, uma proteína constituinte do citocromo A3, responsável pela produção de adenosina trifosfato (ATP), uma vez que o ATP está na origem da produção de energia nas células a inibição da síntese do heme conduzirá, também, a um decréscimo da eficiência do metabolismo celular (PUTNAM, 1986).

Por outro lado, embora por mecanismo não completamente elucidado, a diminuição da síntese da hemoglobina, em resultado da acção do chumbo, parece estar igualmente associada a uma diminuição da síntese da globina. WHITE e HARVEY (1972) registaram uma assincronia na produção das cadeias α e β e, posteriormente, o mesmo WHITE (1975) postulou que um verificado aumento da síntese das cadeias α, notado em trabalhadores expostos a chumbo, se deveria a fenómenos de compensação (WALDRON, 1980; IPCS, 1995).

O risco de anemia pela exposição a chumbo não se esgota, porém, na sua interferência ao nível da síntese da hemoglobina, havendo também uma acção directa (hemolítica) sobre os eritrócitos circulantes, reduzindo a sua vida-média (GRANDJEAN et al., 1989; LANDRIGAN, 1989, 1991 e 1994;).

HERNBERG (1967), citado por WALDRON, detectou que, principalmente nas exposições elevadas e prolongadas, existe uma diminuição da vida média dos eritrócitos. Não se conhece com exactidão o mecanismo determinante do fenómeno mas, este e outros estudos (VINCENT e BLACKBURN, 1959, HASSAN et al., 1967; SECCHI et al., 1973) permitiram constatar que o chumbo inibe a actividade da ATPase (adenosina- trifosfatase) na membrana eritrocitária, com a consequente perda do potássio intracelular e diminuição do volume celular. Este facto, bem como as alterações da fragilidade mecânica da membrana que também se registam, estaria na origem da deformação das células e sua sequente hemólise (QAZI, e MADAHAR, 1971; WALDRON, 1980; GOYER, 1996; APOSTOLI, 1998; LAUWERYS, 1999).

Por seu turno, HORIGUCHI et al., em estudo sobre trabalhadores expostos, verificaram que a deformabilidade (capacidade de adaptação a uma pressão externa) dos eritrócitos diminui significativamente com o aumento da dose interna de chumbo, imputando o facto a alterações na estrutura da membrana (diminuição da permeabilidade por aumento do colesterol e dos fosfolípidos da camada externa) induzidas pela ligação do chumbo (HORIGUCHI et al., 1991).

Também a actividade da pirimidina-5-dinucleotidase (P5N) eritrocitária, enzima responsável pela metabolização dos nucleótidos pirimidínicos, evitando a sua acumulação, é marcadamente inibida pelo chumbo. A consequente aglomeração e depósito de ácidos nucleicos, que determina o aparecimento de ponteados basófilos nos eritrócitos, altera o metabolismo energético na membrana eritrocitária, afectando a sua estabilidade e, por consequência, a vida média do eritrócito (SAKAI, ARAKI e USHIO, 1988 e 1990; MARQUÉS MARQUÉS, 1993; FAIRBANKS e KLEE, 1994; GOYER, 1996). Dado que a P5N é de localização citoplasmática e a ferro-quelatase mitocondrial, a inibição destas enzimas representará dois diferentes passos da impregnação pelo chumbo. Assim, a inibição da actividade da P5N será expressão de um efeito imediato do chumbo, enquanto a inibição da ferro-quelatase, aferida pelo aumento da PPZ, será expressão do efeito cumulativo (BRUNET et al., 1988).