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Efeitos do trabalho no cárcere: Transtorno Mental Comum e consumo de álcool e drogas

CAPÍTULO 1. Condições de Trabalho e Saúde Mental no Sistema Prisional

1.2. Efeitos do trabalho no cárcere: Transtorno Mental Comum e consumo de álcool e drogas

Os efeitos do trabalho nas prisões são apontados por algumas pesquisas como importante problemática que perpassa a vida dos agentes penitenciários. Em estudo realizado

16 “Um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (Goffman, 2005, p.11).

por Chies et al. (2005), no Rio Grande do Sul, diversas mudanças nos comportamentos de agentes penitenciários, em decorrência do exercício da profissão, são evidenciadas. Os agentes entrevistados na referida pesquisa relatam mudanças quanto à exigência de disciplina de terceiros, de si próprio, quanto à forma de falar, de se vestir, passam a desconfiar mais das pessoas, demonstram dificuldades em desenvolver novas relações de amizade e no relacionamento com a família. Ou seja, o agente penitenciário é submetido cotidianamente a efeitos dessocializadores, pois são obrigados a uma outra socialização devido às características do trabalho. Assim, esse processo de prisionalização produz efeitos tais como os sentimentos de inferioridade, empobrecimento psíquico, regressão, infantilização e perda de identidade (Campos & Sousa, 2011).

Como agravante, o estudo de Santos et al (2010) constatou que o fenômeno da superlotação do sistema prisional se configura como fator de risco de ataques violentos entre os próprios encarcerados e entre os encarcerados e os agentes, além de representar risco biológico de contaminação por tuberculose e hepatite (Vasconcelos, 2000, Fernandes et al, 2002). Houve relatos pelos trabalhadores de dores em todo o corpo, artrite, tendinite, tensão, estresse, insônia, alergias e doenças de pele, hipertensão, gastrite, anemia, pneumonia, dentre outras. Sintomas estes associados às situações de sobrecarga física e emocional.

Tanto a literatura internacional (Kalinsky, 2008; Ghaddar, Mateo & Sanchez, 2008), quanto a nacional (Lourenço, 2010, Rumin, 2011, Lopes, 2007, Vasconcelos, 2000) indicam que a fadiga rotineira, a precária alimentação, a violência inerente às tarefas do dia-a-dia, a tensão permanente, a incapacidade de lidar com esquemas rígidos e impessoalizados compõem um arsenal de sofrimento que podem estar relacionado ao surgimento dos Transtornos Mentais Comuns (TMC) e consumo abusivo/dependente de substâncias psicoativas. Estes estudos apontam que 30% dos trabalhadores em presídios apresentam consumo elevado de bebidas alcoólicas, e um em cada dez, sofre de transtornos psicológicos (Luiz, 2003).

Os transtornos mentais comuns, também chamados de transtornos mentais não psicóticos, dizem respeito a um conjunto de sintomas decorrentes de atividades consideradas estressoras que são desempenhadas no dia-a-dia. De acordo com Goldberg e Huxley (1992), envolvem sintomas como insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas. Estudos de base populacional realizados em países industrializados mostram que a prevalência de TMC pode variar de 7% a 30% (Goldberg & Huxley, 1992).

A epidemiologia psiquiátrica tem verificado associação dos TMC e consumo de drogas com variáveis relativas às condições de vida e à estrutura ocupacional. No primeiro caso, com escolaridade, posse de bens duráveis e com as condições de moradia. No segundo, com a renda, ocupação e exclusão do mercado formal de trabalho. Além disso, outros aspectos da estrutura ocupacional como as altas demandas psicológicas acompanhadas de baixo controle sobre o trabalho, ausência de suporte social, temor de serem acometidos pela violência, impregnação da identidade por aspectos pejorativos, pela desvalorização da profissão, associam-se ao uso de substâncias como uma forma de socialização, de alivio de tensões e de compartilhamento de angústias (Lopes, 2002).

No entanto, uma vez que o consumo de substâncias passa ser a caracterizado como abusivo/dependente, ou seja, quando esse consumo começa a interferir na rotina de vida e trabalho, o profissional, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho/OIT (2011), tem 3,6 vezes mais chance de causar acidentes no trabalho, 2,5 vezes mais chance de faltar sem justificativa oito ou mais dias de trabalho, de utilizar 3 vezes mais dos benefícios médicos, ter sua capacidade produtiva reduzida a 67%, ser punido disciplinarmente sete vezes mais e, ser cinco vezes mais “queixoso” que trabalhadores não usuários. Consequentemente, as relações interpessoais são afetadas comprometendo o clima organizacional e a qualidade de vida (OIT, 2011).

Codo (2002) afirma que o sofrimento psíquico e o transtorno mental ocorrem quando o trabalho afeta esferas da vida que são geradoras e transformadoras de significados. Nessa perspectiva, as instituições prisionais reúnem situações adversas que expõem os trabalhadores à cenários marcados por estresse extremo e contínuo, insegurança, por relações hierárquicas rígidas, contato cotidiano com a violência, trabalho em espaços confinados e divisão em turnos – agravado pela prática da dobra de turno (Souza & Rumin, 2013), cenário que pode desencadear sofrimento psíquico e uso abusivo de álcool e drogas.

O sofrimento mental dos agentes tem relação com os processos contraditórios que tornam a natureza da penitenciária duplamente difícil. Se cumpre as regras severamente, é visto como perseguidor pela massa carcerária, que procurará não lhe facilitar o desempenho das tarefas; a direção considerá-lo-á inadaptado ao seu papel, e classificará seu comportamento de inconveniente. Se for permissivo na exigência de estrita obediência ao quadro de normas regulamentares, será visto como relapso ou como infrator da ordem de que é o representante oficial (Sousa & Rumin, 2013). Isso demonstra o baixo controle do agente penitenciário sobre o próprio trabalho.

Na psicossociologia do trabalho, Mendel (1998, 1999, citado por Lhuilier, 2014), a partir do conceito de ato-poder e de movimento de apropriação do ato, afirma que a experiência subjetiva do trabalho depende do grau de poder de que o sujeito dispõe. O movimento de apropriação do ato recobre o desenvolvimento da atividade (o que o trabalhador realiza), a fim de torná-la mais consciente e voluntária. Isso supõe um distanciar-se da rotina e do que é feito maquinalmente ou é imposto sem ser compreendido. A apropriação se refere, então, a uma atividade pela qual o sujeito se sente responsável, e que ele assume de acordo com seus valores. Ela não diz respeito somente a uma escolha pessoal, mas também a ações coletivas capazes de modificar as normas de trabalho. Ela resulta, portanto, de um trabalho individual e coletivo de renormalização. Quando não tem controle sobre o trabalho, o agente se encontra em sofrimento,

imobilizado, em contínua dúvida e dilema sobre sua realização. O sentimento de incompetência é constante quando não atinge os patamares de excelência que lhe são exigidos ou que ele exige de si próprio, ou então quando faz um trabalho mal feito ou com qualidade inferior à desejada/exigida. Esse sofrimento decorre de uma lógica de gestão contraditória que exige, ao mesmo tempo, participação e iniciativa do trabalhador e conformidade e adesão à cultura da organização (Bendassolli, 2011).

Horst, Soboll e Cicmanec (2013) apontam que diante desse contexto, a subjetividade dos trabalhadores passa a ser mobilizada por meio de mecanismos poderosos e sutis, que têm como objetivo aumentar sua produtividade, independentemente do custo que isso represente aos trabalhadores envolvidos em seus processos. De acordo com Faria (2004), esse tipo de controle evidencia que as organizações reconhecem a existência e a importância da subjetividade para a produção. Tal ação explicita que os instrumentos de gestão e os dispositivos de informação e de comunicação dessas organizações estão revestidos por uma visão de mundo que corrobora os ideais da ideologia gerencialista, descrita por Gaulejac (2007, p.45), “que preenche o vazio ético do capitalismo, uma vez que o poder contemplado pelo mesmo se desenvolve mediante um movimento duplo de abstração e de desterritorialização do capital”. Sob essa orientação, a prática da gestão se perverte em função do favorecimento de uma visão de mundo na qual o humano é convertido em um recurso a serviço da organização. Horst, Soboll e Cicmanec (2013) advertem que os instrumentos de gestão não são uma simples “abordagem racional da realidade”, e também não são neutros, uma vez que “são construídos sobre pressupostos raramente explicitados, lógicas implícitas que se impõem por meio de regras, de procedimentos e de indicadores que se aplicam sem que haja possibilidade de discutir sua pertinência” (Gaulejac, 2007, p. 100). A partir desses instrumentos racionalizados de gestão, que não deixam margem para questionamentos ou discussão, as organizações promovem a construção de valores, induzem hábitos e modelam comportamentos

que facilitam o controle dos trabalhadores de acordo com os interesses da própria instituição (Gaulejac, 2007).

Outro fator que marca o trabalho dos agentes e possibilita o surgimento de sofrimento é a ausência de sentido para o trabalho. Em pesquisa realizada no Rio Grande do Norte por Figueiró (2015), os agentes entrevistados afirmam que “as revistas de celas e dos visitantes em busca de drogas e artefatos proibidos tem se mostrado impotente diante da tarefa de manter o presídio livre desses itens” (p. 125). Essa ausência de sentido chama a atenção, sobretudo pelo fato de que “o trabalho tem uma função social essencial: é uma atividade que liga aos outros e que implica se ajustar a eles para produzir algo útil” (Lhuilier, 2013, p. 486), o que não acontece, na maioria das vezes, com o trabalho do agente penitenciário. O cotidiano prisional obriga os agentes a dura tarefa de abrir as celas no início do dia, para, ao final, trancá-los novamente em celas escuras e insalubres Assim, os trabalhadores de estabelecimentos prisionais vivem o drama diário de realizar um trabalho sem sentido e sem controle, “enxugando gelo”, como aponta a pesquisa de Figueiró (2015).

A falta de sentido para o trabalho é ainda mais evidenciada quando os trabalhadores das prisões não conseguem ver o próprio trabalho destituídos da noção de controle e opressão, ou seja, o trabalho desenvolvido está sempre relacionado a exploração do outro, além da incapacidade de transformação da realidade, fatores que aumentam a carga psíquica do trabalho – ou seja, sofrimentos que resultam da confrontação do desejo do trabalhador, que possui uma história pessoal, motivações e necessidades psicológicas que confere a cada indivíduo características únicas, à injunção do empregador contida na organização do trabalho. Quando não há mais arranjo possível da organização do trabalho pelo trabalhador, quando a relação do trabalhador com a organização do trabalho (conflito com a tarefa) é bloqueada, o sofrimento começa (Brandão-Júnior, 2000).

De acordo com o autor, muitas vezes a percepção de riscos gera medo. Entretanto, a necessidade de ter que executar as tarefas contrapõe-se à emergência de manifestações deste medo. Nas situações em que o trabalho é exigido em ritmo intenso e rápido, há um considerável incremento de ansiedade, pois, à medida que o cansaço cresce, o próprio trabalhador vai percebendo a dificuldade de dividir sua atenção entre a execução da tarefa e os cuidados para evitar acidente. O esforço para controlar o medo gera enorme tensão.

O medo é causado pela necessidade de administrar e conviver com as mais variadas situações de risco. Dejours (1988) alerta que o medo relativo ao risco pode ficar sensivelmente amplificado pelo desconhecimento dos limites desse risco. Além de ser um coeficiente de multiplicação do medo, a ignorância também aumenta o custo mental ou psíquico do trabalho. O inesperado durante a atividade do trabalho causa uma certa impotência pelo fato do trabalhador não saber o que se passa em outras áreas. Isso traz um grande desgaste psíquico, pois exige maior controle para que sua atitude não piore a situação. No caso dos agentes penitenciários, diante do fato do inesperado ser uma constante, pesquisas apontam que um dos efeitos do trabalho nas prisões é somatização (Figueiró, 2015; Lourenço, 2010)

Brandão-Júnior (2000) aponta que as diferentes situações de oposição da vida comum constituem autêntico estado de conflito, provocando tensões progressivas. Quando essa capacidade defensiva de elaboração do processo mental se esgota, as cargas psíquicas transbordam, desaguando no corpo. É onde começa o desvio da saúde, pela leitura desarmoniosa e desequilibrada precedida pelas instâncias do aparelho mental, na mediação dos acontecimentos do mundo externo que afligem o indivíduo, simultaneamente com os objetos do seu mundo interno.

Entretanto, o que está em jogo no trabalho é mais do que a estrita operacionalidade ou a rentabilidade, é mais do que os limites da racionalidade instrumental ou econômica. As atividades humanas são, ao mesmo tempo, produção de si e do mundo, ou seja, práticas sociais

de construção e de transformação de um mundo comum. Figueiró (2015) aponta que o dia a dia dos agentes vai revelando maneiras de trabalhar, modos de habitar aquele espaço que denunciam possíveis saídas encontradas por esses trabalhadores na tentativa de recriar seu trabalho. Entre o que está prescrito como função dos agentes (manter a segurança do presídio, evitar a entrada de drogas e demais artefatos proibidos, colaborar para a ressocialização) e o que de fato é possível no dia a dia no interior do presídio, há uma grande distância, e o caminho encontrado pelos agentes revela o modo como estes recriam seu trabalho e suas funções, abrindo mão de determinadas funções mais policialescas (busca de itens proibidos, etc.) e se atendo apenas ao “básico do básico”, evitando conflitos com a população carcerária, tendo assim uma rotina mais tranquila (Figueiró, 2015, p. 141).

Como estratégias para enfrentamento das dificuldades advindas do trabalho no cárcere, muitos agentes relatam as atividades físicas e de lazer, embora não seja uma estratégia muito comum, tendo em vista a dificuldade de frequentar lugares públicos. Além disso, a possibilidade de desenvolver outra atividade laboral não relacionada à área de segurança pública é um fator importante para esses trabalhadores. Outra estratégia citada diz respeito à capacidade de separar os momentos em que estão no presídio, daqueles em que desfrutam do tempo livre (Figueiró, 2015).

Um alerta que os estudos fazem diz respeito ao fato de que o desgaste físico e mental passa, muitas vezes, a ser banalizados e encarados como se fosse parte da forma natural de trabalhar e viver, prejudicando “silenciosamente” a saúde do trabalhador. Os profissionais sentem-se inibidos em expressar suas dores e sofrimentos. Quando se trata da saúde mental, a dificuldade é maior, posto que os sintomas não se apresentam fisicamente visíveis para que justifique o afastamento do trabalho. Em função dos julgamentos culturais alimentados em torno das enfermidades mentais, o trabalhador evita ficar sujeito a estigmas como “frágil”, “fracassado”, “problemático”. Por outro lado, se tratando de dano físico existe um

reconhecimento da organização que, segundo Frutos (2007), pode ser considerado um fator de valorização, em função do exemplo de coragem no exercício da profissão.

Borsoi (2007) alerta que tais questões refletem o fato de que durante muito tempo, o trabalho humano não foi pensado como parte do conjunto de aspectos significativos da vida das pessoas, de modo a ser considerado também um fator importante na constituição de sofrimento psíquico. A herança genética, os aspectos orgânicos e a história familiar e afetiva dos indivíduos geralmente foram vistas como as principais referências explicativas para problemas relacionados ao trabalho.

Corroborando com tais questões, ainda hoje muitos profissionais de saúde não costumam se preocupar em saber como os pacientes trabalham para viver, criando um suposto distanciamento entre trabalho e saúde mental – “como se o primeiro não pudesse dizer nada sobre o segundo, como se determinados aspectos objetivos e subjetivos do trabalho não pudessem atuar provocando adoecimento” (Borsoi, 2007, p.15).

A dificuldade começa quando se tenta encontrar consensos sobre o que entender por saúde mental/doença mental e, em decorrência, por sofrimento psíquico. Borges e Argolo (2003, p. 272) afirmam que "saúde e doença mentais não são situações que permitam definir uma como ausência da outra." Mas, em geral, a clínica e a epidemiologia consideram critérios básicos para a classificação das doenças mentais "a presença de alterações, desintegração no funcionamento psíquico e a duração dessas alterações." No entanto, esse modelo de compreensão exclui situações em que há sofrimento psicológico sem que este possa ser definido como uma doença ou transtorno mental no sentido clássico. Nesse contexto, é preciso destacar até mesmo o fato de que nem sempre o indivíduo identifica seu sofrimento como sendo de ordem psíquica. E mesmo que o perceba assim, muitas vezes não lhe confere a dimensão necessária para buscar ajuda. Por fim, quando o faz, raramente associa seu sofrimento a

situações de trabalho, mesmo porque, geralmente, os problemas ditos pessoais ganham o direito de se expressar somente depois da jornada de trabalho.

As dificuldades em estabelecer a relação entre determinadas formas de trabalho e sofrimento psíquico levaram ao surgimento de diferentes modos de investigar e pensar o problema. Tendo em vista a existência de trabalhos mais específicos sobre essa temática (Codo, Soratto & Vasques-Menezes, 2004; Jacques, 2003; Bendassolli, 2011), restringir-nos-emos a oferecer apenas uma síntese dessa discussão, de modo a permitir avançar o debate proposto nesta tese.