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O trabalho do agente como produtor de sofrimento

CAPÍTULO 3. Mapeamento de TMC e consumo de álcool e drogas entre agentes

3.4. O trabalho do agente como produtor de sofrimento

Os resultados aqui apresentados apontam para um perfil de trabalhadores que quanto mais tempo passam trabalhando, mais adoecem, seja realizando outra ocupação e essa ocupação ser na própria área de segurança, seja dobrando mais frequentemente de turno ou estando há mais tempo na função de agente penitenciário - assemelhando-se ao indicado em outras pesquisas que objetivaram investigar a relação entre trabalho e saúde mental de agentes de segurança penitenciária (Santos et al, 2010; Lourenço, 2010). De acordo com tais estudos, a exigência imposta aos trabalhadores, característica da atividade, sem a contrapartida de condições de trabalho favoráveis, gera sofrimento psíquico, evidenciando a relação entre os agravos em saúde e as condições e organização do trabalho.

Importante destacar que nossos resultados apontam para uma articulação (comorbidade) entre o consumo abusivo/dependente de substâncias psicoativas e o desenvolvimento de Transtornos Mentais Comuns/TMC, como pudemos observar a partir dos casos simultâneos. De acordo com Pinho e Araújo (2012), alguns fatores estão associados à incidência de TMC e uso problemático de drogas, como eventos de vida, saúde e trabalho estressantes, dificuldades financeiras, assim como imersão em contexto de violência. Fatores esses que ratificam os nossos resultados quanto a associação entre condições precárias e processos opressivos e

alienantes de trabalho e sofrimento mental – em especial sintomas depressivos-ansiosos (nervosismo, tensão, agitação, tristeza), sintomas somáticos (dor de cabeça, insônia, desconforto estomacal, má digestão, falta de apetite, entre outros) e pensamentos depressivos (sentimento de inutilidade, ideação suicida, perda de interesse na vida), assim o consumo abusivo/dependente em drogas (como uma possível estratégia de suporte diante das dificuldades vivenciadas).

Para Jardim, Ramos e Glina (2014), os transtornos mentais e do comportamento relacionados ao trabalho podem ser definidos como aqueles determinados pelos lugares, pelo tempo e pelas ações do trabalho. Durante a realização da presente pesquisa foi possível constatar tais relações. Em todas as unidades prisionais visitadas, em grande parte do tempo, os agentes penitenciários estão sob intenso estado de alerta, têm jornadas de trabalho longas (evidenciadas pelas constantes dobras de turnos), com poucas pausas destinadas ao descanso, com refeições de curta duração e em lugares desconfortáveis (e insalubres), turnos noturnos alternados ou iniciando muito cedo pela manhã, ritmos intensos ou monótonos e pressão de supervisores ou chefias que impedem que o trabalhador obtenha controle do tempo de seu trabalho. Esses fatores podem gerar quadros depressivos, fadiga crônica, estados de estresse pós-traumáticos, transtornos do sono e o consumo dependente de substâncias psicoativas (Jardim, Ramos & Glina, 2014).

Com exceção da Penitenciária Federal (já que é de segurança máxima e obrigatoriamente possui a estrutura adequada para seu funcionamento), em todas as outras unidades foi evidente um cenário de desorganização, abandono, violação e sofrimento dos trabalhadores do sistema prisional, assim como apontado em outros estudos (Lourenço, 2010; Souza & Rumin, 2013; Vasconcelos, 2000). Durante as visitas, tornou-se repetitivo o discurso de que os agentes se encontram desamparados no que se refere às condições para realização do trabalho, visto que os profissionais se reúnem para comprar munição, fardamento, câmeras,

Figura 35. Banheiro dos agentes (Completo Penal Agrícola Dr. Mário Negócio)

medicamentos para os presos e a estrutura física das prisões é precária - em péssimo estado de conservação, com moveis quebrados, instalações com fiações visíveis, esgoto à céu aberto e materiais inadequados para revistas (ver figura 9 e 10). Reclamações em relação a comida – muitas vezes motivo de intoxicação alimentar - é outro fator comentado durante a aplicação dos instrumentos. Foi ainda possível constatar que as salas destinadas ao descanso dos agentes (local destinado a acessar o computador, dormir um pouco durante a noite, e etc.) parecem menores que as celas dos detentos, não possuem ventilação e apresentam forte evidência de mofo e sujeira. De acordo com a fala dos agentes “é muito difícil alguém ter essa função de não adoecer”.

Figura 36. Penitenciário Estadual de Alcaçuz

Portanto, o trabalho do agente penitenciário passa a ser desgastante e humilhante (pois tais trabalhadores se sentem esquecidos pelo Estado e desvalorizados pela sociedade), interferindo no processo saúde-doença mental e afetando diretamente o desempenho ativo dessa classe de trabalhadores. Segundo Gaulejac (2001), as violências humilhantes obrigam o sujeito ao enfrentamento de uma imagem negativa de si que o situa em uma contradição entre o que deveria ser para ter reconhecimento social e a identidade que lhe é atribuída. Para pensar o trabalho no sistema prisional, pode-se partir do que o autor postula como sofrimento social, que é produzido quando o sujeito é obrigado a ocupar um lugar social que o anula, desqualifica, coisifica ou desconsidera (como é o caso da profissão de agente penitenciário). É produzido, portanto, pelas contradições sociais que transpassam a identidade (repressão, exploração, exclusão), gerando um conflito diante da impossibilidade de o sujeito sair dessa posição. De um lado, a exclusão, o desamparo social, condições de vida e trabalho difíceis, penosas. Do outro, uma vulnerabilidade identitária, uma ferida, uma invalidação.

Somado a esse cenário, mudanças nos hábitos e comportamentos em decorrência do exercício da profissão marcaram os discursos dos agentes penitenciários, tais como: mudanças

quanto à forma de falar, de se comportar, dificuldades em desenvolver novas relações de amizade e de se relacionar com o cônjuge. Dessa forma, o agente penitenciário é submetido cotidianamente a efeitos dessocializadores, pois são obrigados a uma adotar um outro modo de vida devido às características do trabalho, que podem gerar sentimentos de inferioridade, empobrecimento psíquico e despersonalização (Lourenço, 2010).

Enquanto em outras pesquisas que versam sobre sofrimento mental relacionado ao trabalho no cárcere (Santos, Araújo & Oliveira, 2009; Fernandes et al, 2002) as mulheres são apontadas como mais propensas ao estresse do que os homens, uma vez que são consideradas mais vulneráveis diante das tensões no trabalho, com menos recursos físicos de reagir a essa violência e com maior dificuldade de se impor como autoridade. Os resultados do Rio Grande do Norte aqui evidenciados demonstram que não existe diferença entre homem ou mulher. Porém, indica nuances sobre a forma como esse sofrimento se manifesta. Enquanto nas mulheres existe maior presença de desespero, inutilidade e tristeza, nos homens os efeitos mostram-se em maior quantidade na somatização do sofrimento e no cansaço físico diante das tensões e atividades.

Tal diferenciação pode ser pensada a partir das discussões de gênero, a qual postula que a partir de efeitos culturais distintos, homens e mulheres desenvolvem padrões de comportamentos diferentes. Enquanto as mulheres são vistas socialmente como seres primordialmente relacionais (Miller, 1986; Gilligan, 1982) - e seu processo de construção subjetiva é permeado pela ênfase no relacionamento interpessoal, no afeto e na formação de vínculos - os homens são percebidos como mais racionais, assertivos e pragmáticos (Vianna, 2013). Dessa forma, podemos pensar o trabalho das mulheres no cárcere atravessado pela exigência da eficiência marcada pela agressividade, competitividade e objetividade nas relações de trabalho (causando sofrimentos de ordem afetiva) – e nos homens esse sofrimento é demonstrado pela somatização e desgaste físico.

O aumento de tais tensões é ainda agravado, de acordo com os agentes, diante da quantidade pequena de guardas nos presídios em relação ao número de presos e a possibilidade real de que presos amotinados as derrubassem e fugissem. Além disso, é um cenário que destrói laços de solidariedade horizontal e reforça laços verticais, hierárquicos (implicam em relações de comando e obediência). Faz parte também do funcionamento das engrenagens carcerárias o estabelecimento de uma situação de carência generalizada - nas prisões visitadas faltam cobertores, sabão e pasta de dente, colchões, remédios, e nem sempre porque o poder público não providencia esses itens, mas porque eles não chegam ao destino face à corrupção institucionalizada (Rauter, 2012). Os agentes penitenciários “governam” premiando a delação estabelecendo diferenciações entre presos que colaboram e que não colaboram, tendo os primeiros muitas vantagens sobre os demais (a presença de presos de confiança transitando pelas unidades era frequente).

Como consequência, uma complexa engenharia subjetiva de dominação se encarrega de fazer com que o vizinho de cela seja mais frequentemente um rival ou um inimigo do que um aliado. A prisões se tornam cada vez mais instituições de simples armazenamento de uma massa de homens emparedado (e o agente se enxerga como promotor e vítima desse armazenamento). Todas essas questões têm o agravante de serem permeadas pelo fenômeno da violência, pano de fundo de toda atividade ligada à segurança nas prisões. No estudo realizado por Figueiró (2015) no Rio Grande do Norte, o autor aponta que desde as primeiras experiências da função de agente penitenciário, o tratamento violento para com os presos é fato recorrente, uma vez que antes da existência da função de agente penitenciário no Estado eram os militares que faziam essa função24. Desse modo, ao aprender o ofício de carcereiro, os agentes acabam por aprender “um determinado modo de habitar” o espaço da prisão (Figueiró, 2015, p.138). O autor

24 A violência faz parte dos processos de trabalho das polícias militares no Brasil seja em sua prática cotidiana, ou em sua formação (Fraga, 2006; Albuquerque & Machado, 2001).

aponta que a formação de agentes penitenciários é caracterizada por um processo de militarização e fabricação de sujeitos violentos, violadores (e violados). “Mais do que uma decisão individual, a violência pode ser tomada como característica do próprio processo de subjetivação25” (Figueiró, 2015, p.138) pelo qual esses trabalhadores passam ao ingressar em outro universo de trabalho e vida.

De acordo com Figueiró (2015), há a construção de um modo de vida entre os agentes penitenciários marcado pela tensão e insegurança, obrigando-os a estarem vigilantes dentro, mas, principalmente, fora da prisão. Os detentos (e sua rede de contatos), enquanto sujeitos perigosos, constituem ameaça virtual fora dos muros da prisão, nas ruas, esquinas, semáforos. Assim, o trabalho como agente tem efeitos e produz modos de vida amedrontados, produzindo graves limitações com relação ao lazer e vida social, especialmente em espaços públicos, além de importantes transformações na subjetividade desses trabalhadores. Segundo o autor,

A produção de agentes penitenciários, capacitados a lidar com detentos, de maneira firme e severa, ensina a esses trabalhadores não apenas procedimentos, mas uma maneira de habitar o mundo. Trata-se aqui de uma transformação de suas subjetividades, uma disciplinarização do corpo, na direção de uma “dureza”, de uma subjetividade militarizada. Relembrando o diálogo com o AP que relata seus primeiros dias de trabalho, quando foi orientado a deixar seu coração do “lado de fora” da cadeia, a sensação é de que o conselho foi seguido à risca: “Eu era mais compreensivo, mais amável, e hoje em dia a mulher diz que eu não tenho mais coração” (Figueiró, 2015, p. 137).

25 A subjetividade é aqui entendida como emergência histórica de processos, não determinados pelo social, mas em conexão com processos sociais, culturais, econômicos, tecnológicos, midiáticos, ecológicos, urbanos, que participam de sua constituição e de seu funcionamento. A produção de subjetividade, assim como da objetividade, provém de um campo de forças ou fluxos heterogêneos, sempre em movimento, que se agenciam produzindo sujeitos e objetos em um contínuo processo de produção. (Ferreira Neto, 2004, p. 114)

Dessa forma, intimidações sofridas pelos trabalhadores durante o exercício de suas funções são relacionadas ao aumento de fadiga e estresse, depressão, tendências suicidas, ansiedade, queixas psicossomáticas, agressividade e outros sintomas, incluindo os transtornos do estresse pós-traumático (Assunção & Silva, 2013). Gaulejac (2001) indica que pessoas submetidas a violências humilhantes (processos de estigmatização, coisificação, dependência e perda de dignidade) podem apresentar um sentimento de vergonha que se instala quando a identidade do indivíduo é alterada. Para ele, o que produz a humilhação é a negação da condição de humano, de semelhante, de cidadão ou de sujeito.

Diante disso, o uso de drogas (principalmente álcool, tabaco e maconha) é apontado pelos agentes de todas as unidades prisionais pesquisadas como necessário para proporcionar alívio, ainda que momentâneo, para as vivências desagradáveis do trabalho. Jaskowiak e Fontana (2015) apontam que as condições mortíferas do cárcere desencadeiam efeitos físicos e mentais que podem ser geridos via substâncias psicoativas. Nesse ponto, a utilização de drogas opera como mecanismo de administração de corpos e mentes, possibilitando controles ilimitados. Além disso, o uso de substâncias para manter o estado de alerta (como cocaína e anfetaminas) nos quais dormir é tarefa árdua, também se configura como estratégia de sobrevivência.

No entanto, a Organização Internacional do Trabalho (2013) alerta que o consumo de substâncias psicoativas relacionado a contextos laborais pode propiciar maior envolvimento do trabalhador em acidente de trabalho, ausência do local de trabalho sem autorização, apresentação de padrões regulares de absentismo à segunda-feira, tendência a chegar ao trabalho mais tarde e a sair mais cedo do que os outros trabalhadores, propensão à intoxicação, negligência e diminuição da capacidade de realizar julgamentos, maior envolvimento em conflitos e queixas, em situações de violência e furtos, tempos de reação mais lento,

movimentos desajeitados e coordenação deficiente, visão turva, agressividade ou depressão, perda de concentração e raciocínio lógico afetado.

Em contrapartida, o consumo de substâncias como as derivadas do tabaco foi apontado como necessário pelos agentes das unidades prisionais, uma vez que, de acordo com os próprios agentes, a nicotina possui efeito estimulante e, após algumas tragadas profundas, tem efeito tranquilizante, aliviando o estresse. Lima (2010) relata que os sujeitos que utilizam drogas no ambiente de trabalho procuram um tipo de sensação de euforia que permaneça sutil e interiorizada, visando proporcionar o prazer no decorrer da jornada de trabalho. O efeito da substância, ao alterar o estado de consciência, faz com que o profissional se mantenha entusiasmado, ainda que diante de um contexto laboral desgastante. A autora interpreta que as substâncias podem representar um recurso para que o trabalhador suporte as exigências impostas, sobretudo em algumas profissões como motoristas e cobradores de ônibus urbanos, trabalhadores da construção civil, policiais militares e coletores de lixo. Os dados e discussões aqui apresentadas apontam para o que fato de que os agentes de segurança penitenciária fazem parte dessas categorias profissionais adoecidas. Nesse sentido, o uso, o abuso e a dependência de substâncias psicoativas é mais um sintoma, uma manifestação de um sofrimento, do que um problema em si mesmo (Souza, Schenker, Constantino & Correia, 2013).