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Programático: a necessidade de articulação política

CAPÍTULO 4. Condições, processos e organização do trabalho do agente penitenciário no

4.1. Análise da relação saúde mental-trabalho à luz do conceito de vulnerabilidade

4.1.5. Programático: a necessidade de articulação política

O componente programático refere-se aos recursos sociais e políticas públicas ligadas ao problema. Tal vulnerabilidade refere-se ao grau de alerta e preocupação com o problema, quanto ao modo que se organiza para enfrentá-lo (planejamento, recursos, capacidade, gestão e avaliação). Como fatores que poderiam ajudar a prevenir o adoecimento do agente penitenciário, tanto agentes quanto familiares e gestores indicam a necessidade de maior investimento por parte do governo na segurança das Unidades, contratação de mais agentes penitenciários, operacionalização do plano de cargos, carreiras e salários dos agentes, assim como a criação de um serviço de suporte em saúde mental especialmente para os trabalhadores da segurança pública.

Quando perguntados sobre o que estava sendo feito para que tais mudanças pudessem ocorrer, os agentes não sabiam responder, disseram se sentir excluídos dos processos de mobilização política. Chama atenção que mesmo diante do sofrimento mental relatado por agentes, familiares e gestores, nada ter sido abordado quanto à necessidade da elaboração de

políticas de assistência à saúde direcionados a essa classe trabalhadora (não somente focada no atendimento individual), a possibilidade de articulação entre os âmbitos saúde, assistência social e de segurança (a fim de garantir atenção aos profissionais da segurança pública) e outras formas de transformação das relações, organizações e processos de trabalho.

Nesse sentido, torna-se possível compreender a vulnerabilidade ampliando o olhar, saindo do individual (e biológico) para o plano das suscetibilidades socialmente configuradas. Dentro desta perspectiva temos, por exemplo, o conceito de clínica ampliada (Campos, 2003; Cunha, 2005) que propõe uma prática clínica mais complexa e longitudinal. Da mesma forma, pensar em termos de vulnerabilidade pressupõe uma abertura para ações intersetoriais e formação de redes de atenção que integrem a área da saúde com outras áreas relacionadas à saúde e produção de vida do sujeito.

Ao organizarmos as discussões aqui propostas a partir do conceito de vulnerabilidade, não queremos desmembrar a relação entre saúde mental e trabalho do agente penitenciários (até porque as vulnerabilidades não podem descoladas) e sim apostar em uma mudança na direção da construção do cuidado - saindo de práticas centradas na doença (ou somente no trabalho) e na assistência curativa para propostas que valorizem a criação de sentidos para o sofrimento mental e que produzam ampliação das relações sociais do sujeito em sofrimento. Assim, abordaremos aqui o que tem sido realizado no Brasil e Rio Grande do Norte em termos de políticas públicas que possam ofertar atenção e cuidado ao trabalhador da segurança pública.

Nessa direção, com o objetivo de pensar ações em saúde no âmbito prisional, o governo federal aprovou em 2003 o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) (instituída pela portaria interministerial n.°1.777/03), tendo como diretrizes prestar assistência às necessidades de saúde e contribuir para o controle dos agravos à saúde da população penitenciária; implementar ações em consonância com os princípios e diretrizes do SUS; estabelecer parcerias a partir de ações intersetoriais; contribuir para a democratização do

conhecimento do processo saúde/doença, da organização dos serviços e da produção social da saúde; provocar o reconhecimento da saúde como um direito da cidadania; e estimular o exercício do controle social (Brasil, 2003).

De acordo com a PNSSP, o público carcerário brasileiro deve ter acesso a serviços de prevenção, promoção, e tratamento dos agravos à saúde, variando de acordo com o tamanho da unidade prisional. Em unidades com até 100 pessoas presos, uma equipe de saúde trabalha 04 horas semanais, enquanto unidades prisionais com mais de 100 pessoas presos, a equipe de saúde deve ter carga horária mínima 20 horas semanais.

Apesar de ter tido conhecimento da existência de equipes de saúde atuando dentro de presídios como o Complexo Penal Agrícola Dr. Mário Negócio e a Penitenciária Estadual do Seridó (além da Unidade Psiquiátrica de Custódia e Tratamento e Penitenciária Federal de Mossoró), nos dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde34 do Departamento de Informações do SUS (DATASUS) ainda não consta nenhuma equipe de saúde penitenciária vinculada ao Rio Grande do Norte. Dessa forma, não foi possível ter acesso exatamente a quantidade de equipes de saúde trabalhando dentro dos presídios no Estado. No que se refere ao Brasil, foi possível constatar que até novembro de 2016 já existem 180 equipes atuando no sistema prisional brasileiro (em sua maioria nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia).

Em janeiro de 2014, com o objetivo de ampliar as ações de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) para a população privada de liberdade, o governo federal instituiu a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), através da portaria interministerial Nº 1 (Brasil, 2014b). O que se destaca nesse incentivo à construção de práticas de cuidado em saúde no sistema prisional é que pela primeira

vez é possível perceber que os trabalhadores do cárcere passam a fazer parte do público alvo de estratégias a serem desenvolvidas, como mostra a Art. 8º: “os trabalhadores em serviços penais, os familiares e demais pessoas que se relacionam com as pessoas privadas de liberdade serão envolvidos em ações de promoção da saúde e de prevenção de agravos no âmbito da PNAISP” (p.4).

Apesar de regulamentada por diretrizes e normas específicas, a oferta de cuidado em saúde no sistema prisional ainda não se apresenta como realidade na maior parte do Brasil e continua a ser pensada de forma a não considerar os fatore que produzem o sofrimento. Para que tais ações possam ser concretizadas, é necessário a viabilização de práticas de cuidado em saúde diretamente comprometidas com a análise dos processos de produção de saúde do trabalhador, uma outra via orientada para a afirmação e expansão da vida, a partir da não redução do sofrimento à dimensão exclusivamente individual.

Nesse sentido, muitos são os desafios no campo da saúde do trabalhador, os quais abordam desde desafios na formação de profissionais em Saúde do Trabalhador (pois ainda serem esparsos os esforços de formação deste tipo de profissional); falta de parâmetros epidemiológicos, populacionais e de perfis produtivos na distribuição de recursos; queda da participação dos trabalhadores no controle social devido a constrangimentos diversos; além de dificuldades de articulação entre trabalhadores de uma mesma categoria. Machado e Santana (2011) ainda apontam que é possível perceber que há lacuna na produção de informações sobre o impacto do trabalho na saúde, visto que, considerando a grande quantidade de agravos, ações e programas de investimentos visando à melhoria de condições de trabalho e à saúde dos trabalhadores são vistos de forma separada (buscar transformações nas condições de trabalho não incidisse sobre a saúde e vice-versa).

Neste contexto, foi aprovado e instituída, no ano de 2011, a Política Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho/PNSST, cujas ações devem constar do Plano Nacional de Segurança

e Saúde no Trabalho e desenvolver-se de acordo com as seguintes diretrizes: a) inclusão de todos trabalhadores brasileiros no sistema nacional de promoção e proteção da saúde;

b) harmonização da legislação e articulação das ações de promoção, proteção, prevenção,

assistência, reabilitação e reparação da saúde do trabalhador; c) adoção de medidas especiais para atividades laborais de alto risco; d) estruturação de rede integrada de informações em saúde do trabalhador; e) promoção da implantação de sistemas e programas de gestão da Segurança e Saúde nos locais de trabalho; f) reestruturação da formação em saúde do trabalhador e em segurança no trabalho e o estímulo à capacitação e à educação continuada de trabalhadores; g) promoção de agenda integrada de estudos e pesquisas em Segurança e Saúde no trabalho (Brasil, 2011).

Diante deste quadro, chama atenção a iniciativa do Ministério da Saúde de instituir a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, através da Portaria MS nº 1.823/2012 (Brasil, 2012), que tem como objetivos: fortalecer a Vigilância em Saúde do Trabalhador; promover a saúde e ambientes e processos de trabalhos saudáveis; garantir a integralidade na atenção à saúde do trabalhador (que pressupõe a inserção de ações de saúde do trabalhador em toda a Rede de Atenção à Saúde do SUS, a partir de articulação e construção conjunta de protocolos, linhas de cuidado e matriciamento da saúde do trabalhador); ampliar o entendimento de que a saúde do trabalhador deve ser concebida como uma ação transversal, devendo a relação saúde-trabalho ser identificada em todos os pontos e instâncias da rede de atenção; incorporar a categoria trabalho como determinante do processo saúde-doença dos indivíduos e da coletividade, incluindo-a nas análises de situação de saúde e nas ações de promoção em saúde; assegurar que a identificação da situação do trabalho dos usuários seja considerada nas ações e serviços de saúde do SUS e que a atividade de trabalho realizada pelas pessoas, com as suas possíveis consequências para a saúde, seja considerada no momento de cada intervenção em saúde (Brasil, 2012).

Apesar das definições das políticas de saúde do trabalhador, existem inúmeras dificuldades inerentes ao reconhecimento da relação entre saúde mental e trabalho por parte dos profissionais dos serviços de saúde, dos sindicatos e dos próprios trabalhadores (em detrimento da lógica biologicista do nosso modelo de saúde). Bittencourt, Belome e Merlo (2014) aponta que os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador/CEREST que tentam de alguma forma lidar com questões de saúde mental realizam atendimento direto e prestam apoio as equipes de saúde. Contudo, não existe um padrão de ação, o que pode ocasionar incertezas quanto a melhor forma de agir.

A política mais recente que atrela questões de saúde do trabalhador com especificidades do sistema prisional foi aprovada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) 24 de junho de 2016. A Resolução 01/2016 cria e estabelece as diretrizes nacionais para a criação, implantação e manutenção de programas e políticas públicas de atenção à saúde e qualidade de vida dos servidores penitenciários, cujo objetivo é identificar e implementar ações de proteção à saúde do servidor com ênfase na promoção da saúde e prevenção de agravos, tratamento e reabilitação física e psicossocial, em decorrência do trabalho, de modo a reduzir os riscos de morte e de adoecimento precoce, com vistas à melhoria da sua qualidade de vida (Brasil, 2016).

De acordo com a Resolução, fará parte da Política de Atenção à Saúde e Qualidade de Vida do Servidor Penitenciário, os seguintes programas: PCMSO (Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional), PPRPS (Programa de Prevenção de Riscos Psicológicos e Sociais), PAP (Programa de Avaliação Psicológica), PPRA (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais), Programa de Prevenção e Acompanhamento à Dependência de Álcool e Outras Drogas, Programa de Prevenção do Assédio Moral, Programa de Condições Sanitárias e de Conforto nos Locais de Trabalho, Programa de Atenção à Ergonomia, reverente à mobiliários

e postura do servidor durante o trabalho e o Programa de proteção contra a exposição excessiva às intempéries, como chuva, sol e frio.

Como metas, o referido programa buscará estabelecer, conforme propõe a OIT (Organização Internacional do Trabalho), que prevenção e redução de riscos para a saúde dos trabalhadores deve ter como princípio a indivisibilidade dos conceitos da segurança e higiene no trabalho, devendo ser tratados como dois aspectos de um mesmo problema, isto é, da proteção dos trabalhadores; Propor diretrizes e ações estratégicas relacionadas à saúde do trabalhador em serviços penais, com ênfase na prevenção ao suicídio; Monitorar e acompanhar os indicadores de saúde dos trabalhadores de forma a subsidiar as ações, planos e projetos de vigilância, prevenção e promoção da saúde; Adotar mecanismos para cadastro e análise de dados sobre lesões e doenças profissionais e promover levantamento epidemiológico sobre os locais de trabalho do servidor penitenciário; Cobrar laudos técnicos sobre o grau de insalubridade de cada unidade prisional das respectivas unidades federativa; Propor programa de prevenção de acidentes de trabalho, levando-se em conta diagnóstico preliminar de acidentes nas unidades prisionais.

Para a operacionalização da política, as administrações penitenciárias poderão estabelecer parcerias com os Cerest (Centros de Referência em Saúde do Trabalhador) do SUS (Sistema Único da Saúde) para as ações dos programas de atenção à saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário, promovendo a identificação dos agravos psicossociais e o acesso aos serviços de saúde do SUS ou suplementar.

Assim, é possível perceber que em termos de políticas de atenção da saúde dos trabalhadores do sistema prisional, poucas ações são pensadas e muito menos implementadas, demonstrando mais um fato de fragilidade para os excluídos e mortificados (apenado e carcereiro). Todavia, outro ponto das entrevistas que se destaca foi o fato de que foram poucos os agentes disseram ter envolvimento com o sindicato dos agentes penitenciários do Rio Grande

do Norte (que existe desde 2009), com o objetivo de mobilização coletiva em prol de seus direitos. Um dos agentes chegou a relatar seu descontentamento com o sindicato dos agentes penitenciário:

Já arranjei problema com pessoas aqui por causa de sindicato. Chamam a gente de vagabundo, mas a gente tem que unir. Já cansei de lutar pelos direitos da gente. Nós somos ameaçados até pela gestão quando queremos nos organizar para fazer greve. Essa é a categoria mais desunida que eu conheço, não se chega a um consenso, não existe mobilização, isso faz a gente se sentir cada vez mais sozinhos.

Nardi e Ramminger (2012), afirmam a importância da articulação dos trabalhadores com o movimento sindical, uma vez que a partir dos sindicatos é possível o fortalecimento de ações em defesa de transformações nos processos e condições de trabalho, assim como implementação de estratégias destinadas a saúde do trabalhador. Para os autores, essa luta implica detectar as condições de trabalho geradoras de agravos à saúde, aprofundar o conhecimento técnico desses agravos (considerando o conhecimento dos trabalhadores) e delinear estratégias de ação. Assim, “uma das principais fontes de dados sobre a relação saúde e trabalho é aquela fornecida pela subjetividade, pelo conhecimento prático que os trabalhadores têm sobre essa relação” (Nardi & Ramminger, 2012, p. 40).

Dessa forma, com o intuito de promover transformações no trabalho e vida do agente penitenciário, não basta a criação de condições favoráveis a viabilização do trabalho, e sim é preciso considerar a saúde do agente como parte de um modo de produção que engessa, desvaloriza, subjuga e aprisiona o trabalhador, além de mergulha-lo em um sistema jurídico- penal violador, aprisionador, desigual e excludente.

Uma forma de pensar em possibilidades para esse cenário devastador que entramos em contato durante esse estudo é apostar em ações que se proponham intersetoriais, que considerem

as forças que atuam nas lógicas prisionais e trabalhistas, mas consiga desatar as mãos dos agentes, restaurar o máximo possível as relações dos agentes e seus familiares, diminuir o sentimento de abandono e a necessidade de ser ideal.

Referindo-se a necessidade de se trabalhar ações de cuidado em direção ao usuário de drogas dentro dos presídios, a partir da perspectiva de redução de danos, Bravo (2009) reafirma a necessidade de pensar estratégias que permitam a viabilização do diálogo, organização de ações de sensibilização junto à justiça, diretores de presídios e outros atores institucionais, cursos de capacitação em redução de danos e cuidado em saúde mental para profissionais da saúde e do sistema prisional. Mesmo que o autor tenha direcionado seus apontamentos ao cuidado com os apenados, aqui podemos claramente adaptar essa visão para a produção de cuidado destinada ao agente penitenciário.

Olhando o cotidiano do mundo do trabalho como uma micropolítica, Franco e Merhy (2007) negam um mundo onde o trabalhador não pode fazer nada, pois é totalmente capturado pelas estruturas que o definem e determinam. Os autores defendem a necessidade de explorarmos os atravessamentos que têm as relações de trabalho, “na medida em que é possível observar, do lugar de cada um, como atos inúteis podem produzir atos conflituosos e como atos inusitados colocam em foco o que os próprios trabalhadores fazem, com a liberdade que têm para atuar no mundo do trabalho” (p.54).

Ao enfatizar a necessidade de os trabalhadores cuidarem de si, os autores remetem-se a Foucault (2004), para afirmar que o cuidado de si é uma atitude – para consigo, para com os outros, para com o mundo.

Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar, do exterior, dos outros, do mundo, etc. para ‘si mesmo’. Também designa sempre algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos. (Foucault, 2004, pág. 14-15).

Pensar sobre a própria realidade, incomodar-se, articular-se, olhar para si, para as próprias escolhas é cuidado e posicionamento político. Torna-se então necessário nesse momento refletir sobre as possibilidades de operacionalização de propostas de negação e transformação do universo prisional.