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CAPÍTULO 1. Condições de Trabalho e Saúde Mental no Sistema Prisional

1.3. Saúde, Trabalho e Subjetividade

Nas últimas décadas, uma parcela importante da literatura da psicologia do trabalho tem se dedicado a investigação acerca do sofrimento mental relacionado ao trabalho a partir de distintas preferências teóricas e metodológicas (Bendassolli, 2011). Nesse sentido, Jacques (2003) identifica três grandes perspectivas: a do stress (fundamentada nos fatores de risco e na capacidade adaptativa dos indivíduos); a da psicodinâmica do trabalho (focando em como a organização do trabalho produz sofrimento mental e como os sujeitos preservam sua saúde a partir do uso bem-sucedido de mecanismos de defesa); e a abordagem epidemiológica (abordando a relação entre tipos de trabalho e a ocorrência de certos adoecimentos). Tais análises também podem ser encontradas nos trabalhos de Codo, Soratto e Menezes (2004) e Borges e Argolo (2003).

Nesse sentido, Bendassolli e Soboll (2011) apresentam uma avaliação das diversas perspectivas psicológicas que abordam o mundo do trabalho na atualidade, indicando “que a unidade está longe de ser alcançada” (p.59). Os autores citam como principais formas de apropriações psicológicas relacionadas ao trabalho: a cognitiva, a social e a clínica. Mesmo

tendo o trabalho como objeto comum, existem divergências (Bendassolli & Soboll, 2011). Os autores explicam que enquanto a psicologia do trabalho de inspiração cognitiva se interessa em apreender como os indivíduos processam as informações que recebem do ambiente de trabalho e da atividade em que estão envolvidos, a psicologia social do trabalho objetiva articular o trabalho a processos sociais mais amplos, como representações sociais e estruturas de poder. Em relação as abordagens clínicas, procuram subsidiar ações de indivíduos e coletivos frente as diversas situações de vulnerabilidade no trabalho, sejam elas expressadas na forma de sofrimento ou demandas.

Enquanto as psicologias sociais se fundamentam em fontes como marxismo, abordagens sócio-históricas e interacionismos, as psicologias cognitivas do trabalho dependem das premissas do neopositivismo, defendendo a apreensão objetiva dos fenômenos investigados. Diferindo das perspectivas clínicas que têm trajetórias ainda mais diversas, incluindo referências à psicanálise, à psicossociologia, à psicologia social clínica, filosofia e antropologia (Bendassolli & Soboll, 2011).

Tais perspectivas clínicas vêm sendo desenvolvidas, principalmente a partir dos anos 1980/1990, na França, com o intuito de produzir ferramentas teórico-metodológicas para a análise do trabalho. Nessa direção, podem ser citados: a Ergonomia Francesa, a Ergologia, a Psicodinâmica do Trabalho, a Psicossociologia e a Clínica da Atividade. Tais abordagens não se restringem à psicologia, pois envolvem diferentes áreas, instrumentalizando engenheiros, administradores, enfermeiros, médicos, entre outros.

Bendassolli (2011) alerta que não se trata de uma clínica de divã, focando em questões individuais, assim como não se trata de uma abordagem que dilui o sujeito em estruturas (em geral, sociais) que o antecedem. A delimitação da palavra clínica relaciona-se a articulação do mundo psíquico com o mundo social, cuja pauta de pesquisa e intervenção é a realidade vivenciada pelos sujeitos.

Em não sendo uma clínica exclusivamente do sujeito intrapsíquico, incorpora, em seus questionamentos, a produção social do sofrimento no trabalho, bem como a produção de circunstâncias pelas quais o trabalho é reconstruído pela ação coletiva e individual. Quer dizer, não é uma clínica do sofrimento, atenta, exclusivamente, aos aspectos deletérios e nocivos do trabalho; trata-se de uma clínica que, apesar de partir ou pressupor o sofrimento, vai além dele e enfatiza os aspectos criativos e construtivos do sujeito em sua experiência no trabalho. (Bendassolli & Soboll, 2011, p. 60).

Imersa em conflitos, desvios, desestabilização e produção, a concepção de clínica, apontado por Teixeira e Barros (2009), como experiência de desvio, do clinamen17 - aquela que

faz abrir novos caminhos no percurso de vida na criação de novos territórios existenciais, processos de trabalho - apresenta-se como uma ferramenta conceitual estratégica quando “tomamos os mundos do trabalho como variabilidade e como multiplicidade” (p.40). Nesse sentido, uma clínica pautada nos processos de subjetivação - entendidos como resultado de um entrecruzamento de determinações coletivas econômicas, tecnológicas, perceptivas, de mídia, de sensibilidade; processos de subjetivação sempre coletivos, na medida em que agenciam estratos heterogêneos (Escossia & Kastrup, 2005) - não busca somente a solução de problemas, e sim a criação de novas questões, em uma experimentação analítica das formas instituídas, modos de subjetivação que produzem formas de pensar, de trabalhar, de viver (Rolnik & Guattari, 1989).

Formas de pensamento e vida que não pertencem exclusivamente a um grupo de trabalhadores, que não constituem sua identidade, mas são construídas histórica e socialmente,

17 “Esse conceito da filosofia grega designa o desvio que permite aos átomos, ao caírem no vazio em virtude de seu peso e de sua velocidade, se chocarem articulando-se na composição das coisas. Essa cosmogonia epicurista atribui a esses pequenos movimentos de desvio a potência de geração do mundo. É na afirmação desse desvio, do

abertas à criação de novos processos subjetivos que possam pôr em funcionamento subjetividades mais potentes. Se os modos de produção de subjetividade correspondem a modos de construção de realidade comprometidos com modos de criação de si e do mundo, podem funcionar como potencializadores da construção de novos modos de existência. Dessa forma, uma análise do trabalho, tomada a partir dessas concepções de coletivo e de subjetividade, aposta na produção de novas subjetividades nos processos de trabalho abertas a esse plano coletivo (Teixeira & Barros, 2009).

Na escrita desta tese apostamos nessa clínica que deve se dar sempre em uma relação com acontecimentos que vão além da vivência individual, abrindo espaço para a história, para a política, para o coletivo, para as engrenagens. Uma clínica comprometida com um plano de produção sempre coletivo, indissociável do domínio da produção de subjetividade. “Nessa perspectiva, a clínica se dá em um espaço a ser construído, diz respeito a uma outra clínica, clínica da diferença, da experimentação, de práticas que são sempre social e historicamente construídas” (Teixeira & Barros, 2009, p. 41).

Tal perspectiva encontra importante respaldo teórico nas discussões de Canguilhem (1995) sobre saúde e doença. As teses do autor sobre a distinção entre patologia e anormalidade e seu conceito de saúde não restrito a ausência de doença fundamentam as proposições dos estudos e pesquisas em subjetividade e trabalho. Conforme Nardi, Tittoni e Bernardes (1997, p. 245), as diferentes abordagens que “constroem o campo da subjetividade e trabalho, buscam as experiências dos sujeitos e as tramas que constroem o lugar do trabalhador, definindo modos de subjetivação relacionados ao trabalho”. Nesse sentido, é preciso perceber que, mesmo em casos de doenças com manifestação basicamente orgânica, deve-se considerar, além dos aspectos relacionados ao trabalho, também a história do trabalhador no que toca às suas condições de vida, à sua própria saúde e à de sua família, além da forma com que o trabalho impacta nessas relações.

Não podemos, assim, deixar de lado a noção de exploração relacionada ao trabalho, ao passo que “a mais-valia não será mais apenas uma extorsão do trabalho” (Negri, 2003, p.184), mas será obtida por meio do bloqueio das singularidades em seu movimento criativo, uma tentativa de reduzi-las, não as deixando diferir. Atualmente, segundo Negri, “exploração é deflação; exploração é bloqueio e mediação da potência biopolítica18 aberta para o porvir” (Negri, 2003, 184-185), ou seja, a tentativa de impedir qualquer desmedida, qualquer decisão criativa. Assim, o que se tenta impedir é que a resistência, ação fora da medida, se torne potência instituinte, ação para além da medida. Em se tratando de sistema prisional, tudo o que questione seu modo de atuação e exploração vigente é visto como impossível e ilusório, o agente penitenciário precisa de adaptar à realidade do trabalho para sobreviver, não existe espaço de questionamento e transformação.

No entanto, torna-se importante destacar que essas várias perspectivas para pensar a articulação entre trabalho e saúde não devem consistir um entrave para o debate e para as definições práticas que o problema exige. O fundamental é a compreensão de que o trabalho é um momento significativo entre outros momentos significativos na vida dos indivíduos, independentemente do caminho teórico que possamos adotar. Se nossa humanidade só é possível a partir da singularidade do mundo dos afetos e do mundo do trabalho, então é necessário o reconhecimento prático do trabalho como dotado também de significado especial na vida das pessoas que dele vivem.

18 Biopolítica é o termo utilizado por Foucault para designar a forma na qual o poder tende a se modificar no final do século XIX e início do século XX. As práticas disciplinares utilizadas antes visavam governar o indivíduo. A biopolítica tem como alvo o conjunto dos indivíduos, a população, é a prática de biopoderes locais. No biopoder, a população é tanto alvo como instrumento em uma relação de poder. “Os instrumentos que o governo se dará para obter esses fins [atendimento as necessidades e desejos da população] que são, de algum modo, imanentes ao campo da população, serão essencialmente a população sobre o qual ele age" (Foucault, 2004, p. 60)

Dessa forma, reafirmamos a necessidade de maior investimento em ações que visem romper com as lógicas de exploração dos processos de trabalho (e consequentemente na vida dos trabalhadores), assim como ter atenção em saúde mental direcionada aos trabalhadores do sistema prisional, pensando em ações de saúde coletiva focadas em ações de empoderamento dos trabalhadores e promoção da saúde. Além disso, ao trazermos à tona os inúmeros agravos de saúde que acometem os trabalhadores de estabelecimentos prisionais (além dos já conhecidos problemas que afetam os detentos), ao longo desse capítulo, reforçamos as críticas direcionadas às prisões que, além de se mostrarem impotentes no intuito de lidar com a criminalidade, acabam por produzir mais dor, violência e sofrimento.