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Eleazar de Carvalho e os trompetistas da Osesp

6 Trompetistas da Osesp

6.11 Eleazar de Carvalho e os trompetistas da Osesp

A presença de Ted Parker e, sem dúvida, dos demais músicos estrangeiros que integraram a Osesp de 1977 a 1980, está integralmente ligada à figura de Eleazar de Carvalho, e a seu interesse em melhorar o nível artístico da orquestra. Ted Parker relata que “conhecia a sua reputação de Nova York e descobri no Brasil, que era bem merecida [...] Eleazar foi realmente um regente muito bom”.88 Uma das características mais admiradas pelo trompetista

norte-americano era a habilidade e o domínio que Eleazar de Carvalho tinha sobre as subdivisões rítmicas, pois “ele subdividia a pulsação no peito. Ele podia fazer, honestamente, qualquer polirritmia [...] ele poderia fazer 7 contra 4 [...] incrível!”89

E foi justamente na Sagração da Primavera – uma das obras ritmicamente intricadas, executada na temporada de 1978 – que Ted Parker observou o envolvimento musical e emocional do maestro Eleazar de Carvalho. Ted Parker descreve que existiu um evento que ficou famoso na região de Boston envolvendo Eleazar de Carvalho e a Sagração da Primavera. O maestro brasileiro – juntamente com Leonard Bernstein – foi regente assistente de Koussevitzky e, após a morte do maestro russo, tanto Eleazar quanto Bernstein regeram a Sinfônica de Boston durante algum tempo. Coube ao maestro brasileiro reger a obra de Stravinsky e, no âmbito da tradição estabelecida por Toscanini, se um regente desejasse mostrar suas qualidades, ele deveria reger as obras de memória. Ted Parker relata que Eleazar de Carvalho, regendo a performance da Sagração da Primavera à frente da Sinfônica de Boston, “esqueceu, ele se perdeu [...] esqueceu onde ele estava [...] foi o caos por um período de tempo”.90 Ted Parker então contextualizou esse evento às performances da Sagração da

Primavera, regidas também de memória por Eleazar de Carvalho diante da Osesp:

na Parte II, há um trecho e um instante em que eu juraria: “Este é o lugar onde ele esqueceu em Boston”. Porque ele ficava com um aspecto selvagem em seus olhos [...] algo estava transportando-o para [...] de um lugar qualquer onde tinha estado [...] alguma coisa estava acontecendo em sua mente, e eu pensei: “Esse tem que ser o lugar, tem que ser o lugar onde

88 I knew his reputation from New York and I found in Brazil that it was well deserved … Eleazar was really a fine conductor. (Traduzi)

89 he subdivided the beat on his chest. He could do, honestly, any counter rhythm … he could do 7 against 4 … amazing! (Traduzi)

ele se perdeu!”91

Breno Fleury também relata uma situação semelhante – de “transformação” do maestro Eleazar de Carvalho – em um concerto que ocorreu em Mogi Guaçu, por volta de 1975:

Dino (Pedini) e eu fomos lá tocar a Quinta Sinfonia de Beethoven e a abertura Guilherme Tell [...] em um cinema. Mas ele (Eleazar) subia naquele pódio, com um público razoável, e transformava aquele local num grandioso teatro [...] vinha uma aura de [...] Carnegie Hall [...] de sei lá o quê [...] todo mundo tocava e melhorava [...] batendo no peito [...] empolgava.

Esse envolvimento artístico foi sentido por Parker – em seu maior embate musical com Eleazar de Carvalho – quando da performance do solo de trompete dos Choros no10, obra

emblemática de Villa-Lobos.

Figura 9 - Solo do Choros no 10.

Nessa ocasião, o trompetista norte-americano descreve que, na sua visão, o solo de trompete tinha um caráter jazzy92 e, dessa maneira, ele buscou adicionar algum tipo de

embelezamento nas notas longas. Parker justifica sua decisão argumentando que

uma das minhas filosofias para tocar é que uma nota está sempre indo para algum lugar no fraseado [...] você sempre vai para as notas principais [...] aquelas que você apoia um pouco mais ou aquelas que dão direção à música. Assim, sob esse aspecto, não é uma coisa boa apenas parar em uma nota e não fazer nada com ela.93

91 in Part II, there is a part and time on which I’d have sworn: This is the place where he forgot in Boston”. Because he’d get a wild look in his eyes … something was transporting him to … from wherever he had being to … something else was going on in his mind, and I just thought: “This is got to be the place, got to be the place where he got lost!” (Traduzi)

92 O termo pode ser traduzido como “no estilo de jazz”, mas também, em virtude das síncopes, como animado, divertido e espirituoso.

93 one of my philosophies in playing is the note is always going someplace in the phrasing … you are always going for the key notes … the ones that you lean on a little bit more or where the music is proceeding toward. So one aspect of that: it’s not a good thing to just sit on a note and do nothing with it. (Traduzi)

Com essa abordagem em mente, Ted Parker decidiu adicionar alguns shakes94 nas notas

longas da frase, porém, sem uma consulta prévia ao maestro Eleazar de Carvalho. Para o trompetista, fazia sentido tocar dessa maneira, pois “é apenas uma nota longa que está implorando para ser embelezada, implorando por isso”.95 A argumentação robusta de Parker,

trouxe a confiança necessária para que ele experimentasse a sua interpretação na obra de Villa- Lobos, conforme relembra:

Então eu toquei dessa forma [...] Eleazar parou. Ele olhou para mim e disse: “O que você está fazendo?” Eu disse: “Bem, maestro, eu pensei, já que é um solo de jazz, poderíamos ter algum ornamento do jazz” [...] bem, ele estava irado, ele mostrou sua ira! [...] “Essa não é a forma que tocamos!” [...] “mas maestro” [....] “Não, shhh, pare com isso!” Ele realmente me calou [...] me rebaixou. Juro por Deus, meus amigos me disseram que depois disso ... eles achavam que eu já era ... com certeza. Ele ficou muito, muito furioso com isso. 96

A reação de Eleazar de Carvalho diante do inegável “choque de estilos” fez Ted Parker concluir que o maestro brasileiro tinha uma visão tradicional sobre essa obra, e que “provavelmente nunca ouviu (o solo tocado) dessa maneira”. Isso significava, ainda de acordo com o trompetista que, “você não deveria tentar tocá-lo de nenhuma forma diferente do que ele tinha ouvido isso antes”.97 Essa atitude de Eleazar de Carvalho, além de certa frustração, serviu

para Parker se lembrar de simplesmente “manter a minha boca fechada depois do acontecido”.98

A reação furiosa de Eleazar de Carvalho pode ser mais bem entendida com a argumentação de Breno Fleury, que confirma que as interpretações dele eram mais intensas nas obras do Romantismo e, especialmente, em Villa-Lobos. Fleury descreve que nos Choros no10

– obra regida inúmeras vezes por Eleazar de Carvalho – a empolgação do maestro era especialmente arrebatadora, pois “ele fazia certos gestos fabulosos que realmente pareciam que vinham do coração [...] ele fazia assim (um movimento de abrir os braços) e você sentia jorrar água de dentro do coração [...] é o que Villa-Lobos queria”.

O estilo interpretativo de Eleazar de Carvalho nas obras de Villa-Lobos era, verdadeiramente, tão intenso quanto o interesse didático e pedagógico que o maestro da Osesp

94 É uma forma de trinado – um movimento rápido entre duas notas adjacentes – que pode realizado por

mudança de tensão labial, mas normalmente é obtido por uma variação de pressão, ou agito na mão direita, daí o termo shake.

95 it’s just a long note that is begging to be embellished on, just begging for it. (Traduzi)

96 So I did that … Eleazar stopped. He looks to me and said, “What are you doing?” I said: “Well, maestro, I thought since it’s a Jazz solo, we could have some Jazz embellishment” … well, he gave me the wrath, he read me the wrath! … “That is not the way we do it!” …. “but maestro” …. “No, shhh, stop it!”. He really shut me up … shut me down. Honest to God, my friends told me after this … they thought I was gone … for sure. He was very, very mad about it. (Traduzi)

97 probably never heard it that way. That meant … you shouldn’t attempt to do it any differently than he had heard it earlier. (Traduzi)

demonstrava durante os ensaios. Carlos Santana, ressaltando essa habilidade do maestro brasileiro, descreve que era muito bom ensaiar com o Eleazar de Carvalho, pois “durante o tempo em que ficávamos sentados ali, era um aprendizado constante”. Breno Fleury também exalta as qualidades do maestro da Osesp durante os ensaios:

Eleazar ensaiador [...] espetacular! Ele tinha uma lógica de ensaio, uma clareza de gesto, sabia ensaiar a orquestra [...] obter os efeitos [...] era extraordinário. A partitura toda marcada em azul e vermelho [...] eu ia lá para ver [...] sensacional. Como ensaiador [...] excepcional. Era um prazer ensaiar com ele.

Santana ressalta também que o regente da Osesp tinha apreço à hierarquia e, dessa maneira, “não falava muito conosco. Ele sabia que o 1º trompete iria trabalhar e as coisas funcionariam”. Esse aspecto é reforçado por Sérgio Cascapera que descreve a forma de tratamento do maestro com o naipe:

o maestro Eleazar foi militar, então sempre se dirigia ao 1º trompete: “Professor Siqueira, eu gostaria que vocês tocassem um pouco mais curto, ou um pouco mais cantado” [...] “O que o Sr. acha?” (...) Ele tinha muito respeito por isso. Com o nosso naipe, eu não lembro de ele ter sido intransigente ou se remetido a nós grosseiramente, sempre muito educado.

A ironia era outro recurso utilizado por Eleazar de Carvalho. Segundo Fleury, “com a ironia, ele conseguia ascender os músicos [...] se o ensaio estava cansativo, ele ascendia os músicos com ironia ou com a cultura musical dele, mas nunca humilhava [...] jamais humilhava”. Além do respeito, mesmo com o uso eventual de ironias, Sérgio Cascapera relata que Eleazar valorizava o empenho que o naipe de trompetes demonstrava, pois “ele ouvia todas as tardes de seu escritório que estávamos estudando. Ele sempre foi uma pessoa que nos incentivou a esse tipo de atitude”. Cascapera sugere também que o conhecimento que Eleazar de Carvalho tinha sobre o repertório do trompete na orquestra foi obtido ainda no período em que estudou nos Estados Unidos:

O maestro Eleazar era um homem muito inteligente e, toda a semana, quando ele estava em Boston, ele jantava com uma primeira parte da orquestra. Ele tinha muitas anotações em sua partitura, algumas que o próprio Roger Voisin tinha sugerido a ele [...] “Aqui, funciona melhor desta maneira, ali vai funcionar melhor assim”. Ele, como instrumentista de metal, sabia o que pedia e nunca nos pediu nada fora de questão.

Esse conhecimento musical facilitou o relacionamento entre o maestro e o naipe de trompetes, resultando em um tratamento educado e respeitoso para Sérgio Cascapera e para Gilberto Siqueira. De acordo com Cascapera, “não tivemos grandes problemas, passamos bons anos, eu e o Gilberto, sem ele jamais dar uma bronca ou chamar nossa atenção”.

o início da reestruturação da Osesp, em 1973, até o falecimento do maestro, em 1996.99 Para

Siqueira, o regente da Osesp “plantou uma semente de consciência profissional e musical” na orquestra, apesar das dificuldades que encontrou ao longo dos anos. A atitude do maestro, de acordo com o trompetista, era de que “não existe 99% de confiança”. Essa postura dava aos instrumentistas segurança, mesmo nos grandes desafios, pois “ele interagia com a gente, ele pedia e a gente entregava”, e isso, completa Siqueira, “era uma coisa muito prazerosa”. O trompetista ainda ressalta que o maestro Eleazar “era uma luz para a gente, sabia reconhecer os valores e sempre ajudou até onde ele podia”. Segundo Siqueira, esse apoio do regente transformava a atuação dos músicos no momento dos concertos, pois quando “uma pessoa dessas abaixa a mão, você nunca está pensando sobre notas erradas! Você vai até a última gota de seu sangue para entregar o que você puder”. O maestro da Osesp, de acordo com Siqueira, conseguiu também criar um vínculo especial, um compromisso com seus músicos:

o motivo principal é que você tinha essa relação com o Eleazar [...] ele subia e inspirava em você uma expectativa positiva que ele tinha [...] algo como: “Estamos juntos!” E jamais: “Olha lá o que você vai fazer, hein!” Não existia isso [...] nunca existiu isso.

Especificamente sobre a execução das sinfonias do ciclo Mahler, Siqueira relata que “as obras com o Eleazar, (eram) todas maravilhosas, mas não era sempre que ele regia”. Essa crítica feita por Gilberto Siqueira diz respeito à atuação de outros regentes novos e, em alguns casos, inexperientes que trabalharam na Osesp, trazidos pelo maestro Eleazar de Carvalho. No ambiente musical de desafios que existia na orquestra, Siqueira explica que o regente “nunca teria o desprendimento de convidar100 o Solti para vir reger a Osesp”, pois “imagina o que ele

iria mostrar para um grande regente daquela época. É um longo caminho!” A pavimentação desse “longo caminho”, parafraseando as falas de Gilberto Siqueira, também pode ser atribuída ao maestro Eleazar de Carvalho. Isso aconteceu muitos anos após o ciclo Mahler – já no final dos anos 1990 – quando eram discutidas as condições necessárias para uma nova reestruturação da Osesp. Siqueira ressalta como isso aconteceu:

O Marcos Mendonça decidiu que a orquestra tinha que sair e chegou no Covas para fazer uma grande orquestra [...] e abordaram ele (Eleazar) primeiro. O que ele falou? “Ah, é fácil fazer. O Sr. triplica o salário e faz concursos na Europa e Estados Unidos” [...] foi o que o Neschling fez!

Siqueira evidencia o pensamento de Eleazar de Carvalho sobre alguns dos caminhos necessários para aprimorar a Osesp, e que, após um período de intensas negociações

99 Nesse período, Siqueira deixou de atuar sob a batuta de Eleazar de Carvalho somente entre 1977 e 1978. 100 Georg Solti (1912-1997) foi regente da Orquestra Sinfônica de Chicago entre 1969 e 1991.

político/administrativas, conectaram-se às mudanças ocorridas em 1996, quando da nova reestruturação da orquestra.101 A precária situação salarial vivida à época obrigava os músicos,

segundo Teperman, a “fazer ‘bicos’ ou manter empregos em outras orquestras”.102

No texto que segue, este trabalho buscará elucidar algumas situações conflituosas, ocorridas nas temporadas de 1977 a 1980, como resultado de percalços financeiros e de gestão, e que, direta ou indiretamente, afetaram os trompetistas da Osesp.