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6 Trompetistas da Osesp

6.12 Osesp, sua estrutura e seus músicos

De maneira genérica, pode-se afirmar que dificuldades financeiras, administrativas ou políticas em uma instituição trazem impactos ao trabalho de seus respectivos empregados. No âmbito das orquestras, e mesmo em instituições estruturadas, problemas relacionados à organização das temporadas e gestão de recursos humanos não são incomuns. Sob esse prisma, é admissível conceber que a Osesp, reestruturada em 1973, teria instabilidades nas temporadas de 1977 a 1980. Será útil, portanto, trazer luz às inconstâncias administrativas observadas no período que Eleazar de Carvalho dirigiu a orquestra, e que, de alguma forma, influenciaram os instrumentistas.

6.12.1 Conflitos

O maestro Eleazar de Carvalho tinha recomendações, expostas em seu característico estilo áspero – ecoando também seu “apreço pela disciplina que se associa à corporação militar”103 –, sobre a conduta na resolução de conflitos entre colegas de trabalho, descritas pelo

trompetista Gilberto Siqueira:

você não chuta alguém que aponta para o mesmo lado que você. Você não faz isso, (...) você dá um jeito de resolver. Se não for possível resolver, você toma outra solução, mas você não chuta ele dentro do trabalho. Você vai em direção daquilo. Você resolve tudo o que for preciso para isso continuar acontecendo.

A afirmação do maestro é direcionada às relações interpessoais, porém, poder-se ia extrapolá-la às relações da orquestra para com seus músicos. Nesse caso, Eleazar de Carvalho seria o responsável pela estrutura da Osesp e, por consequência, do cuidado com todos que “apontam para o mesmo lado”. E foi, paradoxalmente, sobre o trompetista Gilberto Siqueira –

101 O trabalho de Teperman, nesse sentido, é referencial, pois aborda o período final da vida de Eleazar de Carvalho e o processo de transição que trouxe John Neschling à frente da Osesp.

102 TEPERMAN (2016), Op. cit., p. 143. 103 Op. cit., p. 138.

um dos primeiros músicos contratados pela Osesp – que os preceitos defendidos por Eleazar de Carvalho aparentemente foram ignorados. Siqueira relata

houve uma eleição naquela época, e eu fui eleito como membro da comissão da orquestra. Bom, gente de dentro da comissão da orquestra fez a cabeça do Eleazar – o resumo era esse – que eu estava contra ele. Então em 76 ele não renovou o meu contrato.

Gilberto Siqueira explica ainda que “os contratos da orquestra inteira eram renovados anualmente ou a cada dois anos, e ele não renovou o meu contrato e o de outras pessoas”. A saída de Siqueira ocorreu no segundo semestre de 1976, e ele só retornaria à Osesp em 1979. Durante esse período, definido pelo trompetista como “muito amargo”, ele trabalhou no interior do Espírito Santo: “fui para a fazenda do meu ex-sogro, e trabalhava com madeira, café, gado e material de construção”. O retorno à Osesp só viria após um encontro, em que foi resolvida a suposta escaramuça entre o trompetista e o maestro. Nesse instante, segundo Siqueira, “ele se deu conta do erro que tinha cometido. E nesse dia, ele me pegou pela mão, me levou até o escritório [...] e falou que eu tinha que voltar”. Em tal episódio não houve, por parte da orquestra, conforme recomendado pelo maestro Eleazar de Carvalho, uma “outra solução” ou um procedimento que pudesse resolver “tudo o que for preciso”. A não renovação do contrato do trompetista – um eufemismo para demissão – demonstra a fragilidade das relações de trabalho existentes na instituição. De acordo com Teperman, que também ressalta a natureza instável das contratações, os contratos eram “temporários, no geral de dois anos”.104

Se para Siqueira – um músico efetivamente contratado pela Osesp – o tratamento institucional diante dos problemas já mostrava falhas, a situação para os músicos extras era ainda mais complexa. Um exemplo disso foi o episódio ocorrido com Breno Fleury que, em agosto de 1978, atuou como músico extra no programa regido pelo compositor Cláudio Santoro. Fleury explica que, como não havia recursos financeiros para chamar os músicos extras no início da semana de ensaios, eles só compareciam na quinta-feira, e isso irritou o maestro:

O Santoro ficou bravo, e olhou para mim: “O Sr. só veio ensaiar hoje?” Eu acho que ninguém avisava (a ele). Aí eu disse: “Maestro, eu sou convidado” [...] “É, mas isso é inconcebível [...] como que a Direção permite algo assim?” Mas era assim [...] era um improviso dentro do improviso.

O relato de Breno Fleury demonstra tanto a dificuldade financeira para ter a orquestra completa desde o primeiro ensaio quanto a falta de comunicação com os respectivos maestros convidados. A incumbência inoportuna de “avisar ao maestro” sobre a falta de recursos para a contratação de músicos extras jamais deveria ser dada ao próprio convidado. Situações

administrativas como essa, o “improviso dentro do improviso”, de acordo com Fleury, causaram desgastes no relacionamento entre a orquestra e seus músicos, além de abalarem a disposição e o estado de espírito dos instrumentistas. Esse fenômeno foi especificamente observado no dia a dia de Ted Parker, que comentou

uma coisa era ruim, no entanto, a moral era ruim na orquestra (...). Eu não sei o porquê disso. Minha moral estava bem, mas eu tive que lidar com muita negatividade entre os instrumentistas estrangeiros. Não tenho a certeza se houve culpa do Eleazar ou o que, mas [...] sim, isso aconteceu com certeza.105

Paul Mitchell foi, aparentemente, um dos músicos da Osesp que sentiu falta de disposição ou teve sua moral abalada, conforme o relato de Parker. Breno Fleury explica, no entanto, que outros fatores – também relacionados aos problemas administrativos e financeiros – contribuíram para a saída de Mitchell da Osesp:

Pelo que o Paul me contou [...] ele não estava recebendo, ou estava tendo atraso no salário, o que era normalíssimo acontecer aos músicos. Um dia, o Paul estava guardando algo no armário, e o Eleazar conversou com ele, e parece que o Paul disse não poder mais ficar [...] ele ficou muito chateado pelo atraso do pagamento ou (com) problemas no contrato [...] não discutiu nada [...] e aí o Paul falou: “Eu vou embora” [...] foi algo assim.

O descontentamento de Paul Mitchell em face das instabilidades financeiras já havia sido registrado anteriormente com outros músicos que, como Mitchell, vieram do exterior para integrar os quadros da Osesp, conforme descreve Teperman:

o fluxo instável de recursos, que fazia com que os pagamentos atrasassem sem perspectiva de quando sairiam, ejetou alguns dos principais instrumentistas que responderam ao chamado de Eleazar na primeira hora – entre os quais o próprio Ayrton Pinto, que retornaria aos Estados Unidos.106

Os constantes problemas financeiros e as falhas de comunicação permearam alguns episódios relatados pelos trompetistas da Osesp. Porém, foi durante os ensaios da Segunda Sinfonia de Mahler que uma das situações mais complexas eclodiu – envolvendo, mais uma vez, a comunicação e a gestão de recursos –, ameaçando inclusive a realização do concerto. Segundo o relato de Gilberto Siqueira, a situação ocorreu, em primeiro lugar, porque o efetivo da Osesp em 1980 era de somente 25 músicos, e Siqueira era o único trompetista contratado. Concomitantemente à execução do ciclo Mahler, acontecia, em 1980, o Festival Internacional de Violoncelos Aldo Parisot. Devido aos laços de amizade entre Eleazar de Carvalho e Parisot, houve um acerto financeiro para que, quando encerrasse o referido festival, os violoncelistas

105 One thing was bad, though, the morale was bad in the orchestra. I don’t know why that was. My moral was fine, but I had to deal with a lot of negativity among the foreign players. I am not sure whether there was Eleazar’s fault or what, but … yeah, that was for sure. (Traduzi)

estrangeiros também atuassem na Segunda Sinfonia de Mahler. Siqueira explica que “a orquestra era cheia de extras” e, dessa forma, essa seria uma boa solução. Iniciados os ensaios, algum músico extra da Osesp descobriu sobre o “acerto financeiro”, um cachê pago pelo Festival Internacional de Violoncelos, que era substancialmente maior que o valor pago aos próprios músicos extras da Osesp. Gilberto Siqueira descreve então que,

quando alguém, por acaso, descobriu [...] sabe, os estrangeiros da Osesp com os estrangeiros do cello (...) aí comenta um, comenta o outro, e aquilo veio à tona. Todos os extras, temporários – que eram 75 por cento da orquestra – resolveram fazer greve.

Em face desse problema, Siqueira imaginou que o concerto seria cancelado, mas “o Eleazar não era um homem de dar o braço a torcer. Ele não cancelou nem o primeiro ensaio”. Ainda de acordo com o trompetista, o ensaio realizado por Eleazar de Carvalho foi “uma das experiências mais fortes da minha vida”, pois ele fez a leitura inteira da sinfonia com somente 25 músicos no palco e, “com interpretação [...] eu nunca vou esquecer isso na minha vida”. A solução do impasse veio através da Secretaria de Cultura que, segundo Siqueira, “despejou o dinheiro nos outros (músicos) da orquestra” e depois “voltou o acerto que estava antes”.

O embate financeiro travado pelos músicos extras da Osesp, conforme relatado por Siqueira, foi um divisor de águas. As aspirações de Eleazar de Carvalho em ampliar o repertório da orquestra demandavam um contingente de músicos devidamente contratado. Essa situação ocorreu somente em dezembro de 1980, durante o governo de Paulo Maluf, período que “os músicos da Osesp seriam finalmente contratados em regime CLT,107 por meio de um convênio

com a Fundação Padre Anchieta”.108 No ano seguinte, a Osesp abriria um concurso para 42

vagas,109 período que Sérgio Cascapera, Reginaldo Farias e Carlos Santana são oficialmente

contratados pela orquestra.

Um outro episódio, que também ameaçou a realização de uma das sinfonias do ciclo Mahler, envolveu a escolha do regente de Hans-Joachim Koellreutter. Siqueira comenta que

O Koellreutter ensaiou a semana inteira, quando acabou o ensaio de sábado, que seria o pré- geral –só teria o ensaio geral na segunda-feira e o concerto à noite – ele ficou decidindo onde iriam os sinos [...] os cowbells: “Não, mais longe [...] mais perto!” Quando chegou no final, com coisas sem resolver, (ele falou): “Sem condições”.

Sérgio Cascapera acrescenta que Koellreutter estava “contrariado com vários aspectos da orquestra, inclusive a disciplina”, e Siqueira acrescenta que a decisão do maestro alemão não

107 A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) unificou toda a legislação trabalhista no Brasil, e foi criada através do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 e sancionada pelo então presidente Getúlio Vargas. 108 TEPERMAN (2016), Op. cit., p. 140.

foi contrariada, pois “ele era muito respeitado”. Com a possibilidade real de cancelamento do concerto, o maestro Eleazar de Carvalho – que estava fora do Brasil – foi contatado e retornou para reger a obra, como Gilberto Siqueira explica:

segunda-feira de manhã ele estava aqui, e falou: “Lápis e papel” [...] e fez cortes das coisas que já sabia que não daria tempo para preparar [...] fez cortes na sinfonia. Ele deu uma passada do começo ao fim e fez o concerto.

Um dos presentes na apresentação da obra de Mahler foi Breno Fleury, que reagiu com surpresa ao ouvir aquela versão: “isso não é a sinfonia!” Fleury acrescenta, como justificativa à sua opinião, que o maestro brasileiro “cortou, emendou um monte de coisas. Diminuiu muito a sinfonia [...] cortou os ritornelli, porque também foi à queima-roupa [...] não houve tempo para ele estudar a música”. A explicação do que verdadeiramente aconteceu na semana da Sexta de Mahler foi dada por Siqueira, esclarecendo que “Koellreutter se perdia [...] e aí a gente olhava e [...] cadê?” A relação próxima entre o musicólogo alemão e Eleazar de Carvalho fazia com que Koellreutter fosse esporadicamente convidado para reger a Osesp. Siqueira explica que o maestro brasileiro “o chamava, como outros compositores para reger as próprias obras [...] ele sempre privilegiou isso [...] música brasileira, principalmente contemporânea”.

Os relatos dos trompetistas da Osesp mostraram a fragilidade das novas estruturas de administração da Osesp, chefiadas, desde 1973, pelo maestro Eleazar de Carvalho. Os conflitos, relações de trabalho delicadas, falhas de comunicação, além de problemas financeiros e de organização das temporadas, foram constantemente observadas ao longo da história da Osesp. Sob o ponto de vista dos trompetistas, outros fatores, ligados às condições de trabalho, também afetaram a sua performance, e serão discutidos a seguir.

6.12.2 Condições de trabalho

Gilberto Siqueira, o primeiro trompetista contratado pela Osesp, traz um relato que ilustra a situação salarial dos músicos da orquestra em 1974, logo após a reestruturação:

A Yamaha fez um showroom, se lançando aqui no Brasil, na Avenida Rebouças [...] eletrônicos, órgãos, e todos os instrumentos de sopro. Tinha trompete em Re (...) e eu ia lá quase todo o dia! O trompete em Re estava na vitrine, e eu falei: “Deixa eu tocar?” [...] eu ficava a tarde inteira tocando naquele trompete em Re afinadíssimo.

A boa impressão do trompetista com o instrumento em Re e as frequentes decepções com os trompetes em Do não foram suficientes para que Siqueira tivesse a disposição para comprá-lo. Com um salário de 1.300 cruzeiros mensais, ele indaga, “ganhando isso por mês você vivia como?” Fazendo casamentos em uma única igreja, o trompetista recebia o triplo de