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6 Trompetistas da Osesp

6.4 Ted Parker e Paul Mitchell em São Paulo

Na metade do século 20, algumas décadas antes da reestruturação da Osesp promovida por Eleazar de Carvalho, já ocorreram mudanças no cenário musical de São Paulo no que diz respeito à presença de trompetistas estrangeiros. A vinda dos italianos Dino Pedini e Séttimo Paioletti exemplifica essa afirmação, pois esses artistas atuaram intensamente na capital paulista, como performers e professores. O mesmo fenômeno pôde ser observado novamente a partir de 1977, com a presença do trompetista norte-americano Paul Mitchell e, especialmente, de seu compatriota, Ted Parker.

Paul Mitchell veio para São Paulo como 2º trompete para atuar ao lado de Ted Parker e, apesar de sua juventude e experiência orquestral limitada, ele já possuía uma formação acadêmica básica em Boston. Isso permitiu a ele que, em um período curto de tempo, pudesse assumir a cadeira de 1º trompete do Teatro Municipal, onde atuou por muitos anos. Carlos Santana fez aulas com Paul Mitchell, e o descreve como “uma pessoa que sabia o que queria. Eu gostava do som dele (...) ele tocava bem, e não soprava em excesso,41 ele sabia soprar”.

Sérgio Cascapera também teve contato com Paul Mitchell em diversas oportunidades, e descreve a personalidade do trompetista:

Paul era mais expansivo, então as pessoas provavelmente chegaram mais perto dele porque era mais comunicativo (...). O Paul já saía para tomar um chopp, para jantar, para conversar e contar os casos [...] então, quem sabe pela expansividade, o Paul ficou mais perto.

Breno Fleury, que atuou por muitas décadas com Paul Mitchell no Teatro Municipal, talvez ofereça o relato mais próximo dos gostos musicais que orientaram Mitchell ao longo de sua carreira musical:42

Ele era uma espécie de guerreiro medieval, porque era apaixonado pela Renascença, só estudava coisas sobre a Idade Média [...] eu brincava: “Eu acho que você viveu naquela época”. Ele tinha centenas de livros sobre a Idade Média e a Renascença, e era obcecado pela música daquela época.

41 Santana usou originalmente o termo supersoprava, ou overblowing, traduzido aqui por soprar em excesso. 42Algumas das ideias musicais de Paul Mitchell são descritas nos Anexos do presente trabalho.

Ted Parker tinha um perfil diferente de Paul Mitchell. De acordo com os relatos de Sérgio Cascapera, que atuou em cachês com Ted Parker, o trompetista norte-americano “era um pouco recatado, conversava pouco (...) era mais introvertido”. A diferença de idade entre Parker e Mitchell deve ser considerada nesse contraponto, porém, existia também a questão da formação acadêmica e, principalmente, da vivência musical, que eram distintas em ambos. Nas experiências que teve tocando no mesmo naipe que Ted Parker, Sérgio relata que,

O Ted era um trompetista mais acadêmico [...] mais refinado (...). Ele era advogado, extremamente competente [...] tudo que tocava era sempre muito bem tocado, bem resolvido. O Ted era um trompetista muito bom [...] na época, muito bom.

O trompetista Carlos Santana também fez aulas com Ted Parker, com quem estabeleceu laços de amizade e a quem atribui grande influência na sua forma de tocar. Das aulas que teve com Parker – ainda no período que atuava em Campinas – Santana declara que:

Ele era muito bom. Eu gostava da técnica dele. A maneira de soprar dele era bem diferente do que a gente estava acostumada a ouvir [...] a respiração, a maneira de soprar, a maneira de usar o interior da boca. Aquilo tudo foi muito bom.

Além da qualidade artística de Ted Parker, testemunhada pelos seus colegas trompetistas, surgem também, com igual intensidade, os relatos sobre as qualidades que ele possuía como professor e os benefícios que trouxe aos alunos brasileiros. Outros musicistas cooperaram para o aprimoramento musical em São Paulo, como foi o caso de Ray Wagner, 1o

trompista da Osesp. Gilberto Siqueira ressalta que,

ele tocava muito bem, tocava refinadamente. Um rapaz alto, magro [...] ele deu aula para o Mário Rocha, então você vê, é uma semente plantada naquela época, um grande trompista até hoje. Ele começou naquela época.

Ted Parker deu aulas particulares em São Paulo e atuou em um projeto de ensino na cidade de São Bernardo do Campo.43 Tratava-se de uma parceria entre a Osesp e o Instituto de

Artes da Unesp, que visava levar alguns dos instrumentistas da orquestra para ensinar jovens instrumentistas de cinco bandas da região. Sobre o projeto, Ted Parker relata que,

havia uma escola de música lá e eu, e vários outros americanos [...] três outros americanos, íamos lá uma manhã por semana [...] e nós ensinávamos os alunos lá. Então eu também dava aulas [...] um pouco de aulas particulares.44

43 MINCZUK, A. Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo: história e concepção. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2005, p. 356.

44 there was a music school out there and I and several other Americans … three other Americans would go out there, one morning a week (…) and we would teach students out there. Then I would teach … teach a little bit privately. (Traduzi)

Infelizmente, esse projeto teve curta duração.45 Porém, alguns dos alunos particulares

que Ted Parker ensinou foram beneficiados com as informações que ele trouxe nos dois anos que esteve no Brasil. Nesse sentido, o depoimento de Breno Fleury é esclarecedor acerca das qualidades de Ted Parker como professor, pois além das aulas particulares com Parker, ele cursou, por duas semanas, as aulas no Festival de Campos do Jordão, destacando que,

Ted como professor era excepcional. Você pode imaginar um professor que coloca a Segunda Sinfonia de Beethoven [...] e consegue ficar três horas trabalhando a parte do 2º trompete? E outra coisa [...] extremamente inteligente. Ele tinha acabado de chegar ao Brasil e já estava falando um português decente. Com um pocket dictionary Português/Inglês – Inglês/Português.

Outras qualidades de Ted Parker, destacadas por Fleury, incluem a sua forma de imaginar a interpretação: “as notas são mortas [...] elas estão impressas e precisam ser vivificadas, e só um artista as vivifica”. Além disso, Breno explica que, durante as aulas, a busca pela qualidade era intensa: “nós ficávamos 10 minutos às vezes em 5 compassos [...] ele era absolutamente perfeccionista!” Apesar das exigências, Fleury relata que,

Ted era um nobre (...) uma pessoa boníssima. Ele sabia sobre as nossas limitações e nos auxiliava, nunca criticava [...] um coração enorme, uma humildade inacreditável, extremamente minucioso, obsessivo pelos detalhes.

Fleury também teve a chance de ouvir Ted Parker tocando no Festival de Campos do Jordão, e destaca que o trompetista norte-americano tinha “uma postura maravilhosa, um relaxamento, vibrato [...] uma fluidez”. Por fim, Breno Fleury sintetiza que, “eu tomei várias aulas com ele. Foi aí que eu comecei a aprender a tocar forte [...] devo tudo a ele”.

As falas de Fleury que encerram a primeira parte deste capítulo, ilustram a substancial mudança que ocorreu com os trompetistas de São Paulo durante os anos 1977 a 1980. Décadas antes, conforme visto anteriormente, a cidade de São Paulo proporcionava diversas oportunidades de trabalho aos trompetistas, especialmente àqueles ligados à música popular, a grupos de jazz e bandas de baile. Esses instrumentistas atuaram nas rádios recém-inauguradas e, nas emissoras de TV que, a partir de 1950, passam a transmitir programas ao vivo no Brasil. As opções de trabalho nas orquestras eram restritas, destacando-se, em São Paulo, a Orquestra Sinfônica Municipal. As instabilidades político/econômicas da Orquestra Sinfônica Estadual não possibilitaram mais do que três anos de atividade regular aos seus trompetistas, encerradas em 1967. A mesma situação de descontinuidade ocorreu com a Orquestra Filarmônica de São Paulo, extinta em 1972. Os depoimentos dos trompetistas da OSE, a partir de 1973, mostram

45 Em entrevista concedida a Arcádio Minczuk (2005), o violinista Ayrton Pinto descreve que os músicos que davam aula no projeto não poderiam acumular outros vencimentos além do salário da Osesp.

que não havia em São Paulo instituições de ensino que formassem os trompetistas para atuar em orquestras. As escolas e conservatórios ofereciam aulas individuais aos alunos, mas sem a possibilidade de prática orquestral. A única instituição destinada ao treinamento dos jovens músicos possuía limitações com relação ao repertório, impossibilitando, no caso específico dos trompetistas, que obras de peso pudessem ser executadas. Nesse contexto, em que até mesmo os métodos de estudo eram de difícil acesso, os trompetistas tinham que “aprender na prática” o repertório, e isso implicava, por exemplo, em aprender rapidamente a transpor in loco as partituras. Os trompetistas norte-americanos que chegaram ao Brasil tinham, além da formação acadêmica, experiência orquestral, reconhecida de imediato por seus colegas brasileiros. O ingresso dos trompetistas na Osesp, via de regra, foi feito por convites, baseados em referências, conhecimento prévio ou semelhanças observadas na maneira de emissão sonora, articulação das notas e no ajuste da afinação. A presença dos trompetistas norte-americanos, sobretudo, Ted Parker, trouxe uma nova abordagem, não só no que diz respeito às questões técnicas, mas a forma de analisar e interpretar as obras. Apesar de permanecer somente dois anos em São Paulo, as informações por ele trazidas influenciaram os alunos e colegas que tocaram ao seu lado e, por extensão, aos naipes de trompete das orquestras de São Paulo.