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6 Trompetistas da Osesp

6.6 Repertório e preparação

Em 1977, a temporada de concertos da Osesp foi dedicada às obras de Beethoven. Ted Parker, que ocupou a cadeira 1º trompete durante o ano, relata que:

Muito de Beethoven, como você sabe, é grande música, com certeza. Então, quando você toca a Sinfonia no 3 Eroica [...] isso é uma grande semana. Quando você toca a Quinta [...] você sabe, é uma grande obra. Então, é claro, fazer a Sétima e a Nona [...] todas aquelas eram grandes semanas.46

Essa observação de Ted Parker faz jus à contenda – ao menos entre os trompetistas – relacionada ao interesse em executar as sinfonias pares e ímpares de Beethoven. Ted Parker toma partido nessa disputa afirmando que as sinfonias pares também são interessantes, “embora não tão satisfatórias como as outras”.47 Essa mesma constatação é reiterada pelo trompetista

norte-americano sobre outras obras executadas durante 1977 como, por exemplo, A Vitória de Wellington ou a Consagração da Casa. De acordo com Parker, a impressão que teve ao tocar todo esse repertório foi que Beethoven “era um gênio [...] mas ele não era um gênio todos os dias”.48 Nesse contexto, a repetição de obras de um mesmo compositor em 1978 trouxe

desasossego para Ted Parker. Breno Fleury confirma isso ao declarar que, “uma das queixas dele (Ted) que eu soube [...] é que estava muito entediado, porque o repertório era sempre o

46 much of Beethoven, as you know, is great music, for sure. So, when you play Symphony no. 3 “Eroica” … that’s a great week. When you play the Fifth (…) you know, it is a great work. Then, of course, doing the Seventh and the Ninth … all of those were great weeks. (Traduzi)

47 although not quite as fulfilling as the others. (Traduzi) 48 was a genius … but he wasn’t a genius every day. (Traduzi)

mesmo [...] muito Schubert”. Ted Parker observou que Eleazar de Carvalho tinha um interesse em registrar todos os concertos da Osesp. A formação de um arquivo musical e, consequentemente, a repetição de obras de um mesmo compositor permitiu que Parker pudesse “aturar fazer Beethoven toda semana”.49 Essas críticas de Ted Parker, especialmente à

temporada com obras de Beethoven, contrastam com os elogios feitos, por exemplo, às obras brasileiras executadas pela Osesp. De acordo com Parker, existia também o interesse de criar um arquivo de concertos das obras brasileiras executadas pela Osesp,

e foi muito interessante, porque na verdade eu encontrei em compositores brasileiros [...] uma grande variedade de estilos musicais. Quer dizer, todo o caminho desde o Romântismo, Modernismo, Dodecafonismo ao Neoclassicismo, você sabe, muita variedade. Alguns deles eram muito bons, e isso foi interessante.50

Além de obras de compositores brasileiros, a temporada de 1978 trouxe um repertório desafiador para trompete, com a execução de Quadros de uma Exposição, Petrouchka e Sagração da Primavera. Em 1979, com a saída de Ted Parker e o retorno de Gilberto Siqueira, a temporada de concertos da Osesp reforçou o conceito de executar os ciclos completos de compositores. Siqueira relata que no primeiro semestre “tocamos as seis sinfonias de Tchaikovsky e tocamos as quatro sinfonias de Brahms. No segundo semestre, tocamos excertos das onze óperas de Wagner”. Essa ênfase na organização da temporada em ciclos pode ser atribuída ao interesse que a direção artística tinha em ensinar o público. Para Siqueira, dentre os maestros que trabalhou, ele considerava que Eleazar “além de ser grandioso entre todos, era o mais pedagógico”. A progressão no repertório das temporadas – Beethoven, Brahms, Tchaikovsky e Wagner – foi, ainda na reflexão de Siqueira, algo que o maestro Eleazar deliberadamente idealizou: “Ele, na verdade, foi frustrado com quebras no caminho [...] que ia ser viável [...] com tanta porcaria que acontece, interrompendo isso e aquilo. Ou seja, as lutas eram sempre muito grandes, mas, que ele pensou, pensou sim”.

Os concertos das diversas temporadas aconteciam uma vez por semana e, de acordo com Siqueira, “nesse período tudo era lotado”, pois havia um “nível de exigência” por parte do público, o que, em última análise, tornou a Osesp “uma referência, tanto como orquestra quanto pela sua programação”. Essa sequência de ciclos de compositores finalmente culmina no segundo semestre de 1980, quando a Osesp realiza as dez sinfonias de Mahler. Siqueira relata que “era uma por semana [...] uma empreitada e tanto”. Sérgio Cascapera também descreve a

49 put up with doing Beethoven every week. (Traduzi)

50 and that was very interesting actually because I found in Brazilian composers … a wide variety of music styles. I mean, all the way from Romantic, to Modern, to twelve tone, to neoclassical, you know, a lot of variety. Some of them were very good, and that was interesting. (Traduzi)

intensidade de trabalho que o ciclo Mahler trouxe a todos, afirmando que, as doze semanas “foram extremamente estafantes”, pois o estudo tinha que ser contínuo, “inclusive sábados e domingos (...) de manhã, de tarde e de noite e, se possível, de madrugada”. Esse empenho justificava-se pelo grau de dificuldade de cada sinfonia e pelo fato de que a orquestra nunca tinha feito um ciclo de obras tão desafiador. Nesse sentido, é interessante comparar o ciclo de Mahler feito pela Osesp com o outro que aconteceu em Nova York. Cascapera relata que,

nessa mesma época, tínhamos acabado de fazer as sinfonias de Mahler e a New York Philharmonic veio pela primeira vez ao Brasil, no Teatro Municipal de São Paulo. Nós (Cascapera e Siqueira) tivemos o privilégio de conversar com o Philip Smith e com o John Ware, na época. E nós falamos, entusiasmados, para o Philip Smith que tínhamos feito, em dez semanas, as dez sinfonias de Mahler. Ele deu uma risadinha e o John Ware falou: “Fizemos uma por dia a semana passada em Nova York” [...] aí eu olhei para o Gilberto e demos uma risada. Quando nós achávamos uma África, tocar uma por semana, eles fizeram uma por dia [...] uma por dia!

Além da dificuldade técnico/musical de cada uma das sinfonias de Mahler, e da falta de experiência dos músicos, deve-se ressaltar que em 1980 a Osesp não possuía seu quadro integral de instrumentistas. Carlos Santana enfatiza que “a temporada do Mahler foi muito difícil e eles lutaram muito, pois a orquestra não era completa (...) e ele (Gilberto) sempre teve que contratar pessoas de fora”. Mesmo com essas circunstâncias desafiadoras, é interessante observar outro tópico ressaltado por Santana: a qualidade da temporada da Osesp – ecoando a famosa rivalidade entre o Rio de Janeiro e São Paulo – perante a Orquestra Sinfônica Brasileira, dirigida por Isaac Karabtchevsky: “Era uma coisa muito diferente do que se fazia, mesmo lá no Rio de Janeiro, onde o Isaac fazia um excelente trabalho com a Brasileira, mas não era como o Eleazar. E apesar de ser uma orquestra com muitos cachês (...) o resultado, dentro da nossa realidade, foi muito bom”.

A concepção de realizar os ciclos de obras de um mesmo compositor foi sempre um desejo de Eleazar de Carvalho. Siqueira relata que, especificamente sobre as obras de Mahler, “era um projeto do Eleazar [...] maravilhoso, audacioso (...) que eu sentia dele, olhando para a gente, um orgulho”. Em alguns momentos, porém, esse entusiasmo foi repentinamente substituído por preocupação e desconfiança por parte do próprio Eleazar de Carvalho. Gilberto Siqueira cita, por exemplo, a leitura da Oitava Sinfonia de Mahler que, segundo o trompetista, foi “um negócio absurdamente perdido, mas tão perdido, que [...] juro para você [...] eu olhei para o Eleazar e senti-o atônito, perplexo [...] “Nossa, o que será que eu inventei de fazer?” A decisão de realizar esse repertório mahleriano, mesmo com toda a inerente complexidade técnica e musical, mereceu diversas reflexões dos trompetistas da Osesp. Sérgio Cascapera destaca que, antes dos ciclos de obras de um mesmo compositor, “os repertórios eram mais

amenos”, e foi devido a esses desafios que a orquestra teve energia para outras empreitadas, ainda mais intricadas, como a execução de Bartok, Strauss e Stravinsky. Cascapera ressalta ainda que, “Ficávamos loucos! Mahler, vamos dizer assim, foi só um começo”. Siqueira também qualifica a orientação de repertório de Eleazar de Carvalho e, em particular, as dez sinfonias de Mahler como um “devaneio” que, porém, “teve resultados”.

O sonho, a fantasia, ou mesmo a utopia de Eleazar de Carvalho de fazer o ciclo de Mahler pode ser entendido por diversos ângulos e, porventura, simplesmente a falta de músicos para ocupar as cadeiras da Osesp seja um deles. O caso específico dos trompetes é emblemático nesse contexto, pois exatamente no período escolhido para fazer o ciclo de Mahler, a Osesp tinha somente Gilberto Siqueira como trompetista efetivamente contratado. O naipe ficou completo somente um ano depois, com o ingresso de Sérgio Cascapera e Reginaldo Farias. Carlos Santana também ingressou na Osesp no ano de1981, vindo da Orquestra de Campinas, ele relata que a temporada de Mahler foi importante porque “várias pessoas que atuaram nos concertos como cachês (...) passaram a ser efetivos da orquestra depois”.

Os desafios de executar Mahler, porém, vão muito além de simplesmente ter as “cadeiras da orquestra preenchidas” por músicos, pois eles necessitam saber como enfrentar os percalços impostos pelo compositor austríaco. Resgatando a fala de Siqueira sobre o “devaneio” de Eleazar de Carvalho, talvez seja possível entender as escolhas de repertório nos anos anteriores à temporada que trouxe o ciclo Mahler. Sérgio Cascapera, por exemplo, acredita que as escolhas não foram infundadas, mas sim revelavam a consciência que ele possuía dos problemas técnicos e musicais da orquestra, sobretudo nas cordas:

Bem, eu não digo que (o repertório) foi aleatório, mas como o maestro tinha vindo dos Estados Unidos, ele tinha muitos problemas com as cordas, e isso era evidente na época. As cordas estavam abaixo do nível das madeiras, dos metais e da percussão.

Para explicar esse desnível técnico existente entre as cordas e outros naipes, Cascapera cita, por exemplo, o timpanista John Boudler, que era “entusiasmadíssimo lá atrás, fazendo todo mundo se mexer”, além dos trompistas Daniel Havens e Charles Cornish e do trombonista Michael Kelly. Esses músicos norte-americanos tinham experiência e habilidade nas suas funções dentro da orquestra e, de certo modo, “puxavam as pessoas para o nível deles”. E nesse contexto, as cordas não acompanhavam a desenvoltura musical de outras famílias de instrumentos. Cascapera justifica a abordagem do maestro Eleazar, pois “ele fez essa temporada como um desafio para a própria orquestra, sem dúvida nenhuma”.

Estabelecidas as dificuldades e os desafios das partituras escolhidas, restava somente ao maestro dar a sua contrapartida artística e, desse modo, ensaiar adequadamente a orquestra. Isso, porém, representava obrigatoriamente escolhas de andamento que nem sempre respeitavam fielmente a partitura, pois segundo Cascapera, “a orquestra, realmente, na parte das cordas, não estava pronta”. A fala de Eleazar sobre uma execução – retratada por Sérgio Cascapera – ilustra uma das concessões artísticas assumidas por Eleazar de Carvalho:

Eu lembro que ele sempre dizia (a respeito) do 4º movimento da Quarta Sinfonia de Tchaikovsky: “Em Saint Louis, eu toco a 192”. “Aqui na Osesp, eu toco um Allegro, mas, infelizmente, a nossa técnica só nos permite tocar a 116”.

O esforço visando melhorar o desempenho das cordas também partiu de Ayrton Pinto, spalla da Osesp, e figura musical importante dentro da estrutura artística criada por Eleazar de Carvalho. Tanto Cascapera quanto Siqueira relatam que, diariamente, antes do ensaio começar, eram realizados trabalhos específicos com as cordas, visando o estudo das arcadas e dedilhados. Os membros da orquestra deram o apelido pejorativo de Mobral51 para essas atividades com as

cordas. Segundo Cascapera, no entanto, esses estudos eram realmente necessários, pois os instrumentistas das cordas “não tinham o mesmo empenho” e não possuíam “uma técnica tão apurada”. As madeiras e os metais pacientemente aguardavam que as passagens musicais das cordas fossem trabalhadas. Cascapera descreve que era comum, por exemplo, ficarem aguardando “das 9h00 às 11h55 [...] 11h55 tocávamos meia dúzia de notas e íamos embora [...] muitas vezes aconteceu isso, só ensaiando com as cordas”.

Os relatos sobre as temporadas e as abordagens minuciosas de ensaio para a família das cordas demonstram quão desafiadores esses repertórios realmente foram. As madeiras e os metais – mais especificamente os trompetes – também tiveram que criar estratégias para vencer os obstáculos impostos pelo repertório das temporadas de 1978 a 1980. A seguir, serão relatados alguns desses procedimentos adotados pelos trompetistas que integraram a Osesp.