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Preparação e equipamento no ciclo Mahler (1980)

6 Trompetistas da Osesp

6.9 Preparação e equipamento no ciclo Mahler (1980)

A temporada de 1980 da Osesp teve como foco principal o ciclo completo das sinfonias de Mahler, e o naipe de trompetes que executou as obras do compositor austríaco começou a ser estruturado no ano anterior, quando do retorno de Gilberto Siqueira à cadeira de 1º trompete da Osesp e da substituição de Nailson Simões por Sérgio Cascapera, que era então trompetista do Teatro Municipal. No entanto, essa transição envolvendo substituição da cadeira de 2º trompete – função essencial no naipe – causou apreensão a Gilberto Siqueira, pois, desde o

início de suas atividades na Osesp, ele não tinha tido um 2º trompete que possuísse qualidades musicais e de relacionamento semelhantes às que desenvolveu com Nailson Simões ao longo da temporada de 1979. Siqueira, porém, descreve que Cascapera foi “uma revelação maravilhosa”, e relata em detalhes o primeiro encontro musical com o seu futuro 2º trompete:

Um dia, em 1980, eu pus debaixo do braço (um caderno com as partes das dez sinfonias de Mahler (...) e fui na casa do Cascapera que morava em Santana, em um domingo (...). Passamos a tarde toda tocando. E eu voltei para casa [...] me lembro até hoje, aliviado. Muito afinado, muito eficiente, muito estudioso, muito dedicado [...] 150, 200 por cento dedicado (...) ajustava e tocava todas as partes. Se você pegar uma sinfonia de Mahler para alguém tocar, você sabe, não vai sair fácil. Então, daí eu lembro que fiquei aliviado.

Uma vez definida a cadeira de 2º trompete, Siqueira conseguiu trazer Nailson Simões – somente para a execução da Segunda Sinfonia de Mahler – além de Carlos Santana e Reginaldo Farias. O naipe que efetivamente executou o ciclo de Mahler, de acordo com Siqueira, foi “eu (1º trompete), Cascapera (2º trompete), Santana (3º trompete) e o Reginaldo (4º trompete)”. O desafio que o naipe da Osesp enfrentou deve ser contextualizado dentro da realidade do período em que atuaram. No final dos anos 1970, até mesmo o acesso às gravações era restrito na cidade, como descreve Breno Fleury:

a referência que eu tinha era só o Haitink e Concertgebouw de Amsterdã (...) não tinha Chicago, não tinha nada [...] isso veio nos anos 80 para 90 [...] porque os LPs vendidos na loja Breno Rossi, Bruno Blois, aqui em São Paulo, você encomendava e demorava um mês [...] ou tinha na prateleira para vender, ou você ouvia na Rádio Eldorado ou na Cultura. Eu conheci Mahler na Rádio Cultura [...] eu não sabia nem quem era Mahler. Você tinha que comprar tudo [...] era tudo caro.

Sérgio Cascapera também relata que era difícil obter gravações. O trompetista cita que “esses discos, na época, não faziam grande sucesso, eram pedidos que nós fazíamos”. Da mesma maneira, as performances ao vivo de sinfonias de Mahler eram raras em São Paulo e restritas à execução da Segunda Sinfonia.65 Em 09 de julho de 1999, essa obra de Mahler ganha

um significado especial no âmbito da Osesp, pois foi programada no concerto inaugural da Sala São Paulo.66 A Segunda Sinfonia de Mahler, de acordo com Teperman,67 é uma obra para

ocasiões especiais, inclusive assim considerada pelo próprio compositor que, em 1907, a escolheu para seu concerto de despedida da Ópera de Viena.68

65 Breno Fleury relata que essa obra foi apresentada duas vezes em 1974 (no encerramento do Festival de Campos do Jordão e no Teatro Municipal), em 1975 (no Anhembi, novamente com a Orquestra do Teatro Municipal) e em 1977 (no encerramento do Festival de Campos do Jordão, mas de forma reduzida, somente com os dois últimos movimentos).

66 Op. cit., p. 58.

67 TEPERMAN, Op. cit., p. 58.

68 Em sua tese, Teperman cita alguns concertos significativos em que a Segunda Sinfonia de Mahler foi programada, destacando-se, por exemplo o tributo ao presidente John F. Kennedy e, mais recentemente, o

Entre os trompetistas do naipe da Osesp, somente Gilberto Siqueira e Sérgio Cascapera haviam tocado as obras de Mahler – ambos participaram dos concertos no Teatro Municipal onde foi apresentada a Segunda Sinfonia. Cascapera ressalta ainda que, das demais sinfonias, só conhecia “os excertos de orquestra”, pois essas obras eram “simplesmente uma novidade”. Nesse contexto, de experiência e conhecimento limitados das obras de Mahler, e dificuldades para obtenção de gravações, Gilberto Siqueira resolve pessoalmente gravar todos os concertos do ciclo Mahler. Essa abordagem pode ser atribuída à experiência que ele teve, ainda em Montevidéu, com o seu professor, Wilfredo Cardoso, como relata o trompetista:

eu ouvia muitas gravações em casa, mas eu aprendi muito naquela época com o Cardoso [...] ele tinha uma discografia inacreditável! De tudo, mas principalmente da Boston Symphony, é claro, onde ele foi estudar (...). Outra coisa que me lembro é que eu copiava. Eu não sabia, naquele tempo, a história de gravação direta. Para mim, até aquela época, para gravar tinha que ter um microfone. Nós íamos na casa do Cardoso – minha irmã, eu e, algumas vezes, meu irmão – ouvir disco gravando.

A complicada logística para realizar as gravações dos concertos do ciclo Mahler incluiu, por exemplo, a obtenção de um cabo blindado substancialmente longo e um carrossel de madeira para enrolá-lo, além do empréstimo de um gravador de rolo. Siqueira descreve:

Quando iniciamos o ciclo, eu gravava tudo [...] gravava direto do caminhão da TV, e 10 minutos antes do concerto eu plugava o cabo blindado num painel externo, e ele ia por dentro do corredor do Cultura Artística até embaixo do palco.

Siqueira gravava o som direto da performance: “era uma matriz” afirma ele, pois o som gravado era o que “acontecia na hora, da mesa da TV”. O passo seguinte era ouvir a gravação e fazer duas cópias, uma para Sérgio Cascapera e outra para o maestro Eleazar de Carvalho. A prática trabalhosa de gravar os concertos foi fundamental para, em um primeiro instante, avaliar se o equipamento utilizado por Gilberto Siqueira e os outros integrantes do naipe estava adequado para a execução das sinfonias de Mahler. Na Segunda Sinfonia, por exemplo, Gilberto Siqueira utilizou o trompete Getzen, que havia funcionado adequadamente na temporada anterior, porém, de acordo com as gravações, o instrumento mostrava características sonoras que o desagradaram: “Aquilo era uma gritaria! Trompete Getzen! Nossa [...] furando tudo! Isso não pode ser assim, não pode ser assim!” A constatação de que o som do seu trompete Getzen era diferente do som que imaginava, levou Siqueira a tomar medidas extremas:

Às três da manhã, parei a gravação e entrei em um quartinho que tinha para meu estudo, lá no Brooklin [...] trompete em Do Getzen novinho, lindo, maravilhoso [...] meti o maçarico nele, tirei a campana original e coloquei uma da Vincent Bach, do trompete Si bemol.

Essa primeira tentativa drástica de alterar o som de seu instrumento misturando peças de trompetes de diferentes marcas não produziu os resultados esperados, o que o obrigou a remontar o trompete Getzen. A estratégia seguinte de Siqueira – ainda mais ousada, mas não inédita para o trompetista – foi cortar um trompete em Si bemol, transformando-o em um trompete em Do. Essa empreitada arriscada já havia sido feita anteriormente por Siqueira, na temporada de 1979, quando da execução de passagens tecnicamente intricadas da ópera Rienzi. Nessa ocasião, para ter melhor desenvoltura nos dedilhados difíceis, Gilberto Siqueira cortou seu trompete em Re, transformando-o em um instrumento em Mi. Os desafios de 1980, porém, onde uma sinfonia de Mahler era executada a cada semana, levaram Siqueira a trocar também a campana do “novo” trompete cortado. O trompetista descreve que,

(na semana seguinte) toquei a Terceira de Mahler com a campana solta: campana 37 com o trompete em Si bemol cortado. Ou seja, era um leadpipe de Si bemol 25 [...] largo, com uma campana 37 que era original do trompete meio largo. Essa era a combinação. Eu fiz quase todas (as sinfonias de) Mahler assim. A Quinta (Sinfonia) não, (...) eu fiz com a campana 25 mesmo [...] o som do trompete Si bemol.

Sérgio Cascapera relembra esse episódio, confirmando que na execução da Terceira Sinfonia Gilberto Siqueira “chegou a trocar a campana do instrumento no último movimento, utilizou uma campana mais pesada para tocar aquele coral final”.

Figura 7 - Coral final da Terceira Sinfonia de Mahler.

O naipe da Osesp que tocou as sinfonias de Mahler, segundo Siqueira, estava usando “instrumentos Bach (de calibres) grandes” e cita, por exemplo, que Carlos Santana teria utilizado um trompete Si bemol cortado em Do, campana 72. Siqueira ainda explica que, “ele (Santana) tinha um jeito de tocar meticuloso (...) e ficou muito bom essa campana no trompete Si bemol cortado em Do”.69 Cascapera usava também um trompete em Do Vincent Bach, des-

69 Carlos Santana, durante a sua entrevista citou que usou um instrumento diferente para o ciclo Mahler. Segundo ele, esse trompete seria “um Schilke em Do, com afinação na campana”.

crevendo ainda que sua preferência era, e continua sendo, por “um instrumento de afinação de campana – 229 com leadpipe70 25A –, que o luthier Ludueña fez para mim em Buenos Aires”.

Além de uma análise sonora de como o equipamento funcionava, a audição das gravações realizadas por Gilberto Siqueira possibilitava também uma avaliação artística das performances, conforme Cascapera:

passávamos o dia escutando aquilo para saber o que tinha sido bom ou que podia ter sido melhorado, (...) queríamos tocar bem, era muito importante para nós. Nosso empenho era elogiável na forma de estudar, eu digo isso em relação ao naipe de trompetes.

O naipe de metais da Osesp trabalhou os trechos das sinfonias de Mahler, mas conforme Siqueira, foram ensaios esporádicos, “uma coisa muito rápida”. Nesse sentido, o trabalho deliberado feito pelos trompetistas foi único. Cascapera descreve que, em virtude da quantidade de ensaios do naipe de trompetes, os trechos eram executados de forma quase automática, pois “repetíamos até a exaustão”, e em muitas das sinfonias, “praticamente nem virávamos a página, sabíamos quase de memória, de tanto que estudávamos”. Da mesma forma que Siqueira, Cascapera possuía o seu próprio “caderno das dez sinfonias de Mahler”, e para ilustrar a dedicação do naipe, Cascapera cita um acontecimento:

Eu lembro que, nessa época, o primeiro contrabaixo da Osesp, chama-se Barry (...), sempre vinha ao nosso camarim e dizia: “Olha, eu tenho muito orgulho de trabalhar com vocês [...] vocês são muito esforçados”. Ele passava a tarde estudando, e via o naipe de trompetes estudando as sinfonias também.

A justificativa para essa quantidade de estudos não era especificamente técnica, pois os integrantes do naipe praticavam regularmente. Sob o ponto de vista de Cascapera, os estudos de naipe ocorriam por se tratar de “uma novidade para nós [...] eram obras que nunca tínhamos tocado”. Gilberto Siqueira enfatiza o trabalho sério de todos os seus colegas, afirmando que o naipe ensaiava “no teatro mesmo [...] fora do horário do ensaio. Era um ensaio por dia, mas ensaiávamos a semana inteira”. Especificamente para a Terceira e a Quinta Sinfonia de Mahler, Sérgio Cascapera cita que a preparação foi árdua e que os ensaios tomavam muito tempo, tanto que “praticamente não fazíamos nada na vida, a não ser estudar, inclusive sábados e domingos”. Convém ressaltar que a agenda de ensaios da Osesp naquele período se iniciava na terça-feira e seguia até sexta-feira, sempre no período da tarde. Em alguns casos, a orquestra ensaiava também no sábado, e o concerto acontecia na segunda-feira à noite.

Os relatos dos trompetistas da Osesp auxiliaram a esclarecer a mobilidade no naipe e

alguns dos problemas decorrentes disso. A repetição dos repertórios e o caráter pedagógico que Eleazar de Carvalho tentou implementar por meio dos ciclos também foram abordados, levando-se em conta as dificuldades técnicas, especialmente na família das cordas, para a execução do repertório. Alguns dos conflitos ocorridos entre os trompetistas mereceram destaque, em um cenário de desafios que os obrigou a, deliberadamente, organizar ensaios para suprir o desconhecimento de obras inéditas. O auxílio do equipamento foi essencial nesse processo, pois trouxe novas opções perante a estagnação do uso contínuo do trompete em Si bemol. A interação entre as mudanças de equipamento e o desafio de novos repertórios instigou o naipe a buscar gravações, desenvolver rotinas de ensaio e ajustar o equipamento de acordo com as necessidades das obras, evidenciando, assim, o grau de interesse, denodo e dedicação que os trompetistas da Osesp tiveram para vencer os desafios. A seguir, uma análise sobre o norte musical que esses instrumentistas buscavam, e quais foram as referências artísticas que seguiram, as influências sofridas e, ao mesmo tempo, o quão próximo chegaram desses objetivos traçados.