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Eles dois, Talvez

No documento EXERCÍCIOS DE DRAMATURGIA (páginas 130-138)

Eles dois, Talvez

Magela Lima

CENA 1

Rua do Chacon, 328, Poço da Panela, Recife. É tarde da noite de 27 de novembro de 1957. A Ilumiara A Coroada está um breu. Ariano conversa com Zélia, sua esposa. Joaquim, primeiro filho do casal, era recém-nascido. Uma luz fraca é acessa nas coxias. Toda a cena se passa lá.

ARIANO: Zélia! Zélia, meu bem! Cadê você? Zélia! Reparasse nas correspondências? Zélia, cadê você? Zélia!

ARIANO: Meu amor, me perdoe. Joaquim tá dando trabalho pra dormir, é? Eu saí do Ginásio, passei no Santa Isabel e acabei demorando.

ARIANO: Pssssssiu! Desculpe. Tá tudo bem. Painho fala alto demais, né? E, quando tá feliz, então, fala mais alto ainda. Vá se acostumando, viu! Fique quietinho, fique! ARIANO: Zélia, você não vai acreditar. É telegrama de Walmor e Cacilda. Isso mesmo! Escute só: “Chegamos ao Recife na próxima terça. Será uma viagem breve, mas muito importante para a nossa nova companhia. Fazemos questão de receber de suas mãos o texto que você nos preparou. Um abraço fraterno. Walmor e Cacilda”. Eles tão vindo pro Recife, Zélia! Eles tão vindo pro Recife, meu amor! Joaquim, Joaquim, meu filho, seu pai vai ter um texto montado pela maior atriz de teatro do Brasil! Olhe, que maravilha!

CENA 2

Aeroporto dos Guararapes, Recife. Cacilda é cercada por um grupo de jornalistas e fotógrafos. Ela veste um sobretudo caqui e tem os cabelos presos num gorro de tricô cinza. Enquanto responde às perguntas, ela fuma um cigarro. No palco, Cacilda está sozinha e interage com pessoas que o público não ouve nem vê.

CACILDA: Meus queridos, eu estou um caco! Podemos deixar isso pra amanhã? Eu recebo vocês no hotel, juro, conversamos o tempo que for necessário, mas hoje estou exausta, saímos de São Paulo muito cedo.

CACILDA: Tudo bem! Tudo bem! Coisa rápida, ok?

CACILDA: É minha primeira vez no Recife, sim! Para a minha tristeza, que fique bem claro! Ziembinski fala maravilhas daqui e eu tenho absoluta certeza que ele não exagera em nada! Mas, anotem aí: ano que vem, o Teatro Cacilda Becker cumprirá temporada aqui e com repertório.

CACILDA: Pergunta capciosa, essa! Já deixamos. Nossa história no TBC se encerrou com a montagem de “Adorável Julia”, que estreamos agora no teatro da Maria Della Costa. Eu quero um teatro meu. Entende? O TBC, em minha carreira, significa realmente, e com sinceridade, a escola. Lá, eu aprendi com os outros e aprendi comigo mesma! Aprendi como se representa e como se vive! Foram 10 anos da minha vida dedicados ao TBC. Deu-me muito e eu a ele me dei integralmente! Sou muito grata ao TBC, e o amo mais do que ninguém!

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CACILDA: Por que Ariano? Ora, não se façam de modestos! O Teatro Cacilda Becker vai estrear com uma peça do “maior comediógrafo do moderno teatro brasileiro”. Não é assim que ele vem sendo chamado? Meus queridos, ninguém no teatro brilhou mais que Ariano nesse ano de 1957! Desde o festival da Dulcina, Ariano Suassuna é o assunto!

CACILDA: Não! Não! Não! Agora chega! Amanhã, sou toda de vocês, mas agora sou do Recife!

CENA 3

Ainda no aeroporto, Ariano e Cacilda, enfim, se conhecem pessoalmente. Ele está vestido a rigor, usa um terno branco e gravata preta. Ariano deve estar sempre do lado esquerdo do palco, enquanto Cacilda permanece à direita.

CACILDA: Então: eu não mereço um abraço? ARIANO: Fez boa viagem?

CACILDA: Meu querido, eu tava tão aflita pra chegar logo ao Recife que não reparei nem no serviço de bordo! Gosto sempre de observar as aeromoças. Elas são tão elegantes!

ARIANO: Suas bagagens?

CACILDA: Walmor se encarrega disso! Pra certas coisas, eu sou uma mulher bem à moda antiga.

ARIANO: Vocês vão ficar num hotel muito agradável.

CACILDA: Preciso ver o mar. Tem certas horas, que esqueço que não sou de Santos. O mar me deixa mais leve, mais solta, mais feliz.

ARIANO: O mar é novidade na minha vida, eu sou do sertão.

CACILDA: Você vai me achar muito louca, se eu perguntar se você trouxe a peça? Estou ansiosa como nunca! O velho Zimba, então! Ninguém mais toma dele esse tal de Euricão... Euricão engole cobra! Prometi que lhe tefonava, assim que terminasse a primeira leitura do texto na íntegra.

ARIANO: Você vai me achar muito louco, se eu disser que escrevo meus textos a mão e ainda falta um tanto pra datilografar da versão final?

CACILDA: Nossa, você é alto!

ARIANO: Eu também tô bastante ansioso, um pouco preocupado mesmo, com a escolha de “O santo e a porca” pra que você inaugure a sua companhia. Não do modo por que alguns possam pensar, com vaidade por ir ser representado novamente no Rio de Janeiro, mas pela importância que sei que essa sua iniciativa tem pro teatro nacional.

CACILDA: Nossa. Nossa iniciativa, meu querido! “O santo e a porca” tá aí para provar que o teatro brasileiro é realização, e, não, mais mera aspiração, como dizem

CACILDA: Por que Ariano? Ora, não se façam de modestos! O Teatro Cacilda Becker vai estrear com uma peça do “maior comediógrafo do moderno teatro brasileiro”. Não é assim que ele vem sendo chamado? Meus queridos, ninguém no teatro brilhou mais que Ariano nesse ano de 1957! Desde o festival da Dulcina, Ariano Suassuna é o assunto!

CACILDA: Não! Não! Não! Agora chega! Amanhã, sou toda de vocês, mas agora sou do Recife!

CENA 3

Ainda no aeroporto, Ariano e Cacilda, enfim, se conhecem pessoalmente. Ele está vestido a rigor, usa um terno branco e gravata preta. Ariano deve estar sempre do lado esquerdo do palco, enquanto Cacilda permanece à direita.

CACILDA: Então: eu não mereço um abraço? ARIANO: Fez boa viagem?

CACILDA: Meu querido, eu tava tão aflita pra chegar logo ao Recife que não reparei nem no serviço de bordo! Gosto sempre de observar as aeromoças. Elas são tão elegantes!

ARIANO: Suas bagagens?

CACILDA: Walmor se encarrega disso! Pra certas coisas, eu sou uma mulher bem à moda antiga.

ARIANO: Vocês vão ficar num hotel muito agradável.

CACILDA: Preciso ver o mar. Tem certas horas, que esqueço que não sou de Santos. O mar me deixa mais leve, mais solta, mais feliz.

ARIANO: O mar é novidade na minha vida, eu sou do sertão.

CACILDA: Você vai me achar muito louca, se eu perguntar se você trouxe a peça? Estou ansiosa como nunca! O velho Zimba, então! Ninguém mais toma dele esse tal de Euricão... Euricão engole cobra! Prometi que lhe tefonava, assim que terminasse a primeira leitura do texto na íntegra.

ARIANO: Você vai me achar muito louco, se eu disser que escrevo meus textos a mão e ainda falta um tanto pra datilografar da versão final?

CACILDA: Nossa, você é alto!

ARIANO: Eu também tô bastante ansioso, um pouco preocupado mesmo, com a escolha de “O santo e a porca” pra que você inaugure a sua companhia. Não do modo por que alguns possam pensar, com vaidade por ir ser representado novamente no Rio de Janeiro, mas pela importância que sei que essa sua iniciativa tem pro teatro nacional.

CACILDA: Nossa. Nossa iniciativa, meu querido! “O santo e a porca” tá aí para provar que o teatro brasileiro é realização, e, não, mais mera aspiração, como dizem

muitos. Não pense você que eu te pedi esse texto com intenção de dar respostas aos que me cobram maior empenho aos autores nacionais. Bobagem! Nesse momento da minha vida, eu não carrego remorsos ou antipatias. Eu tô, sim, absolutamente consciente de que estamos todos vivendo um novo momento. Eu não sou nenhuma alienada! Sei bem que o Teatro Cacilda Becker será grande e lembrado no futuro porque estreou justamente com um texto de Ariano Suassuna. ARIANO: E eu terei um orgulho danado disso!

CACILDA: Mas, indo ao que interessa, me diga, com franqueza, hein: “O santo e a porca” é melhor ou pior, se comparada à peça que Nydia e Sérgio lhe encomendaram?

ARIANO: Escrevi os dois textos atendendo a pedidos de pessoas a quem não podia faltar. Hermilo, para mim, tem a força que a universidade não teve, em se tratando de teatro.... Entende? Bandeira, Bandeira é um autor extraordinário, uma grande referência.

CACILDA: Hermilo Borba Filho. Nydia e Sérgio foram inteligentíssimos quando o convidaram para dirigir o espetáculo! Então, você prefere “O casamento suspeitoso”!

ARIANO: Particularmente, gosto mais de “O santo e a porca”, minha imitação nordestina de Plauto.

CACILDA: Mas essa nossa história aconteceu de verdade, não?

ARIANO: Foi, sim! Em Taperoá, onde me criei! E com uma pessoa avarenta, por sinal, pertencente a minha família, viu! Na agência do Banco do Brasil, em Campina Grande, cidade lá pertinho, onde ela foi trocar o dinheiro, juntou gente pra ver aquele monte de notas velhas, guardadas durante tanto tempo que ninguém nem conhecia mais.

CACILDA: E a porca?

ARIANO: A porca? A porca apresenta a vida como um impasse, cuja única saída é Deus!

A conversa segue, sem que o público consiga compreender perfeitamente. O foco de luz sobre Ariano e Cacilda, progressivamente, vai sendo reduzido. Enquanto isso, a imagem abaixo, aos poucos, vai sendo projetada, até ocupar a centralidade da cena. A caracterização dos atores deve ser a mais fidedigna possível à fotografia. Por alguns instantes, o público deve ver as sombras dos atores em meio à projeção.

p. 132

CENA 4

Suíte presidencial, Grande Hotel, centro do Recife. Cacilda e Walmor discutem. Ela está se preparando para sair. No decorrer da cena, Cacilda termina de trocar de roupa, calça sapatos altos e finaliza a maquiagem.

CACILDA: Chega, Walmor! Essa conversa já tá me entediando! Desde ontem, você tá nessa ladainha.

CACILDA: Meu bem, você tem toda razão. Sim, eu aceitei o convite no impulso. Talvez, seja mesmo impróprio visitar Ariano e Zélia, eles tão com criança pequena em casa. Mas já aceitei, pronto!

CACILDA: Anda, fecha aqui! Deixa! Se é pra fazer reclamando, eu faço sozinha! CACILDA: Desde quando eu sou mulher de seguir regra, Walmor? Ninguém tá indo pra uma festa, não! É um café, uma oportunidade de a gente conversar um pouco mais. Afinal, viemos até o Recife pra quê?

CACILDA: Você tá sendo inconveniente! Então, façamos assim: eu vou e arrumo alguma desculpa para justificar sua ausência, digo que acordou indisposto. Pode ser?

CACILDA: Ariano disse que esse rio aqui da frente passa lá perto da casa dele! Como se a gente fosse de barco!

CACILDA: Para, Walmor! Não há possibilidade alguma de eu desistir desse encontro! Muito mais deselegante do que ter aceito o convite é simplesmente não aparecer na hora marcada. Tá combinado e eu vou! Vou sozinha, mas vou. Além do

CENA 4

Suíte presidencial, Grande Hotel, centro do Recife. Cacilda e Walmor discutem. Ela está se preparando para sair. No decorrer da cena, Cacilda termina de trocar de roupa, calça sapatos altos e finaliza a maquiagem.

CACILDA: Chega, Walmor! Essa conversa já tá me entediando! Desde ontem, você tá nessa ladainha.

CACILDA: Meu bem, você tem toda razão. Sim, eu aceitei o convite no impulso. Talvez, seja mesmo impróprio visitar Ariano e Zélia, eles tão com criança pequena em casa. Mas já aceitei, pronto!

CACILDA: Anda, fecha aqui! Deixa! Se é pra fazer reclamando, eu faço sozinha! CACILDA: Desde quando eu sou mulher de seguir regra, Walmor? Ninguém tá indo pra uma festa, não! É um café, uma oportunidade de a gente conversar um pouco mais. Afinal, viemos até o Recife pra quê?

CACILDA: Você tá sendo inconveniente! Então, façamos assim: eu vou e arrumo alguma desculpa para justificar sua ausência, digo que acordou indisposto. Pode ser?

CACILDA: Ariano disse que esse rio aqui da frente passa lá perto da casa dele! Como se a gente fosse de barco!

CACILDA: Para, Walmor! Não há possibilidade alguma de eu desistir desse encontro! Muito mais deselegante do que ter aceito o convite é simplesmente não aparecer na hora marcada. Tá combinado e eu vou! Vou sozinha, mas vou. Além do

mais, meu querido, poucas vezes, a gente, que é ator, que é do palco mesmo, tem esse privilégio de ver o autor do texto assim tão de perto. A gente tá sempre em tempos e mundos tão distantes. Você acha mesmo que eu vou abrir mão dessa oportunidade por conta de etiqueta? Muito prazer, eu sou Cacilda Becker Yakonis. Não me faça rir!

CACILDA: Estou bonita? Não quero parecer exagerada, quero que Zélia tenha uma boa impressão de mim. Nós, atrizes, coitadas, sempre tão mal faladas! Pois bem, meu anjo, caso mude de ideia, sabe onde me encontrar!

CENA 5

Ilumiara A Coroada, gabinete de trabalho de Ariano. Ele escreve usando uma máquina de datilografar, enquanto Cacilda o observa atentamente.

CACILDA: Vocês moram aqui há muito tempo?

ARIANO: A gente se casou em janeiro agora e já veio pra cá logo em seguida. CACILDA: Nem parece que a gente tá na mesma cidade. Impressionante! Aqui ainda é Recife?

ARIANO: É Recife, sim. Mas poderia ser Taperoá.

CACILDA: Ou Pirassununga. Você se incomoda que eu fume? ARIANO: Imagina.

CACILDA: Eu procurei cinzeiros aqui desde que cheguei, e nada. Nunca que eu ia sair desse gabinete antes de você terminar, tô absolutamente fascinada pelo som dessa máquina de escrever.

ARIANO: Pra falar a verdade, nunca ninguém fumou aqui. CACILDA: Nunca?

ARIANO: Pelo menos, nunca, desde que a gente mora aqui. CACILDA: Mas essa casa parece ter 300 anos.

ARIANO: 117. CACILDA: Para.

ARIANO: Verdade. Essa casa foi construída em 1840.

CACILDA: Nesse tempo todo, certamente, alguém já deve ter fumado aqui. ARIANO: Você tem toda razão.

CACILDA: Eu sempre tenho razão.

p. 134

CACILDA: Walmor não é tão flexível assim, não. Desde ontem, briga horrores comigo. Ele achou invasivo da minha parte vir até a sua casa. Joaquim é tão pequenininho ainda. Uma fofura, viu! Você e Zélia devem estar se adaptando a essa nova rotina. Criança muda a vida da gente!

ARIANO: Ora. O convite foi nosso. CACILDA: Mas eu aceitei sem contestar.

ARIANO: Olhe, Zélia não me deixaria em paz, se Cacilda Becker e Walmor Chagas viessem ao Recife só buscar um texto meu e a gente não oferecesse ao menos um café...

CACILDA: Com bolo de rolo! ARIANO: Com bolo de rolo!

CACILDA: Que bom que Zélia tem sempre razão. ARIANO: Sempre.

CACILDA: Então, aqui é onde você se esconde.

ARIANO: Aqui, é onde eu me refugio. Todo mundo sabe que eu tô aqui. Sabe, e não entra. Eu fico aqui sozinho, fazendo minhas coisas. Escrevo, pinto, leio...

CACILDA: Engraçado. ARIANO: O quê?

CACILDA: Você aí, escrevendo, e eu aqui, olhando. Até parece um ator em cena e eu, um espectador, na plateia.

ARIANO: Posso lhe confessar uma coisa?

CACILDA: Tenho medo de confissões, mas você tá na sua casa!

ARIANO: Eu sou um péssimo ator. Olhe, Cacilda, eu não sou só o pior ator vivo, não. Eu sou o pior ator vivo e morto.

CACILDA: Já que você me fez uma confissão, também vou lhe fazer uma. Ando tão emotiva esses dias. Tem muita coisa envolvida nesse movimento de sairmos todos do TBC de uma só vez. Sabe? Eu, Cleydinha, Walmor, Zimba... Se o Teatro Cacilda Becker fracassa? Jesus!

ARIANO: Vale o risco, vale a aposta. Olhe pra mim! Acabei de me formar advogado e tenho certeza que nunca vou advogar. Terminei o curso de Direito, e decidi viver de arte.

CACILDA: Eu não trocaria essa vida por nada, Ariano. Não fosse o teatro, meu amigo, muito provavelmente, eu estaria perdida numa vidinha sem graça ali entre

CACILDA: Walmor não é tão flexível assim, não. Desde ontem, briga horrores comigo. Ele achou invasivo da minha parte vir até a sua casa. Joaquim é tão pequenininho ainda. Uma fofura, viu! Você e Zélia devem estar se adaptando a essa nova rotina. Criança muda a vida da gente!

ARIANO: Ora. O convite foi nosso. CACILDA: Mas eu aceitei sem contestar.

ARIANO: Olhe, Zélia não me deixaria em paz, se Cacilda Becker e Walmor Chagas viessem ao Recife só buscar um texto meu e a gente não oferecesse ao menos um café...

CACILDA: Com bolo de rolo! ARIANO: Com bolo de rolo!

CACILDA: Que bom que Zélia tem sempre razão. ARIANO: Sempre.

CACILDA: Então, aqui é onde você se esconde.

ARIANO: Aqui, é onde eu me refugio. Todo mundo sabe que eu tô aqui. Sabe, e não entra. Eu fico aqui sozinho, fazendo minhas coisas. Escrevo, pinto, leio...

CACILDA: Engraçado. ARIANO: O quê?

CACILDA: Você aí, escrevendo, e eu aqui, olhando. Até parece um ator em cena e eu, um espectador, na plateia.

ARIANO: Posso lhe confessar uma coisa?

CACILDA: Tenho medo de confissões, mas você tá na sua casa!

ARIANO: Eu sou um péssimo ator. Olhe, Cacilda, eu não sou só o pior ator vivo, não. Eu sou o pior ator vivo e morto.

CACILDA: Já que você me fez uma confissão, também vou lhe fazer uma. Ando tão emotiva esses dias. Tem muita coisa envolvida nesse movimento de sairmos todos do TBC de uma só vez. Sabe? Eu, Cleydinha, Walmor, Zimba... Se o Teatro Cacilda Becker fracassa? Jesus!

ARIANO: Vale o risco, vale a aposta. Olhe pra mim! Acabei de me formar advogado e tenho certeza que nunca vou advogar. Terminei o curso de Direito, e decidi viver de arte.

CACILDA: Eu não trocaria essa vida por nada, Ariano. Não fosse o teatro, meu amigo, muito provavelmente, eu estaria perdida numa vidinha sem graça ali entre

Santos e São Paulo. Não fosse o teatro, eu não teria ido, sozinha, tentar a sorte no Rio de Janeiro. Veja: me separar da minha mãe e das minhas irmãs foi a maior loucura que eu já fiz... Não fosse o teatro, eu não estaria aqui no Recife. Não fosse o teatro, como eu iria conhecer Ariano Suassuna?

ARIANO: Pronto! Terminei aqui de bater o texto! Vocês voltam pra São Paulo levando duas cópias para começar os ensaios!

CACILDA: Veja, Ariano, nosso encontro se deu assim, um tanto apressado, mas, há muito, que a gente sonhava com você. Não com você, exatamente, mas com um autor, brasileiro, que trouxesse algo realmente novo pra nossa cena. É com uma alegria imensa que vamos estrear “O santo e a porca”. Fique certo disso, meu querido! Quem acha que conhece Cacilda Becker vai se surpreender muito quando for ver o espetáculo.

ARIANO: Eu não duvido disso!

CACILDA: Não posso sair do TBC para continuar sendo a mesma Cacilda. Fosse assim, seguia lá. Eu quero ser outra. Quero ser outras. Estão todos me esperando com um grande drama, uma tragédia, e eu vou aparecer com uma comédia. Estão todos me esperando com alguma tradução inédita no Brasil, e eu vou aparecer com um texto inédito, sim, mas de autor nacional. Estão todos me esperando como a grande estrela da minha própria companhia, e eu vou aparecer, acredite, como coadjuvante. Está decidido: a protagonista da primeira montagem do Teatro Cacilda Becker é a senhora Cleyde Becker Yaconis. Eu faço Margarida, Cleydinha faz Caroba!

p. 136

No documento EXERCÍCIOS DE DRAMATURGIA (páginas 130-138)