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Oi eu escrevi isso agora durante o show pra você. (Entrega a folha

No documento EXERCÍCIOS DE DRAMATURGIA (páginas 118-130)

SENTA QUE O LEÃO É MANSO

L- Oi eu escrevi isso agora durante o show pra você. (Entrega a folha

P- Você quer dizer um e-mail?

L- Não, não. Eu nem tenho computador. Só gosto de escrever a mão.

Belchior surge, de calças vermelhas, se aproxima e escutando a última frase da conversa, diz para Luzia:

B-Quem é essa mulher misteriosa?

L- Oi eu escrevi isso agora durante o show pra você. (Entrega a folha

escrita) Me chamo Luzia.

Realmente, quem escreve a mão em 2003, né?

B- Eu. Eu estou inclusive fazendo uma tradução de Dante manuscrita. L- Que barato! Mas traduzir a Divina Comédia, mais de dez mil versos a mão... É uma loucura

B- Pois é, restam uns "hidalgos de La Mancha" por aí. Aqui mesmo, dois rabiscadores, calígrafos, se encontram em pleno terceiro milênio. Escrever a mão se torna agora um ato transgressor.

L- As histórias precisam permanecer, escritas! E no papel, onde não tem "delete" de arquivo nem rastreamento de dados, sem depender do sistema

L- (Rindo) É... Sinais fortes sinais. Melhor eu entrar logo pra ouvir as cítaras e a tal revelação da voz do trovão.

Dentro do teatro Luzia escuta Belchior cantar repetidas vezes o mesmo verso:

B-"Senão chega a morte ou coisa parecida, ou coisa parecida, ou coisa parecida, ou coisa parecida, e nos arrasta moços sem ter visto a vida"

Luzia sente essas palavras/navalhas, cortando sua carne e expondo a semivida em que ela, entre tantos ali, desvivia. Luzia começa a chorar, tira da bolsa um caderno e escreve lá mesmo no escuro da plateia.

O show termina, ela sai para o foyer do teatro onde vê a produtora:

L- Com licença, meu nome é Luzia, parabéns pelo espetáculo. É ótimo ter um Centro Cultural assim, funcionando aqui na Cinelândia. O show me

surpreendeu, até acabei escrevendo pro Belchior, vocês têm um endereço postal da produção, algo assim, pra onde eu poderia enviar uma carta?

P- Você quer dizer um e-mail?

L- Não, não. Eu nem tenho computador. Só gosto de escrever a mão.

Belchior surge, de calças vermelhas, se aproxima e escutando a última frase da conversa, diz para Luzia:

B-Quem é essa mulher misteriosa?

L- Oi eu escrevi isso agora durante o show pra você. (Entrega a folha

escrita) Me chamo Luzia.

Realmente, quem escreve a mão em 2003, né?

B- Eu. Eu estou inclusive fazendo uma tradução de Dante manuscrita. L- Que barato! Mas traduzir a Divina Comédia, mais de dez mil versos a mão... É uma loucura

B- Pois é, restam uns "hidalgos de La Mancha" por aí. Aqui mesmo, dois rabiscadores, calígrafos, se encontram em pleno terceiro milênio. Escrever a mão se torna agora um ato transgressor.

L- As histórias precisam permanecer, escritas! E no papel, onde não tem "delete" de arquivo nem rastreamento de dados, sem depender do sistema

cair... Mas aí tem que pintar um trovador qualquer pra manter vivos os romances, aventuras e ideais da cavalaria andante.

B-Mesmo que seja um cavaleiro de triste figura B- Somos umas figuras estranhas.

P-Estranha é essa conversa de vocês...

B- Vem jantar comigo Luzia e a gente conversa mais.

2

Bar Nova Capela na Lapa. Os dois numa mesa. Nelson Gonçalves canta Feitio de Oração

L- Ninguém aprende samba no colégio. Batuque é um privilégio

B-Um privilégio, uma alegria e agonia obsessiva. Desesperante encontrar o tom exato de cor e de som. E depois manter a entonação vida afora... L- Imagino a dificuldade, clássica aliás, para traduzir a Divina Comédia. Quando você pretende publicar? Já tem editora?

H- Não estou escrevendo para publicar. Estou traduzindo pra penetrar no Renascimento, na latinidade, mergulhar no Mediterrâneo. Eu quero mesmo é ficar por dentro. Entrar de braço dado com Virgílio no inferno. Atravessar o arco de fogo e encontrar Beatriz pra andar no ar.

L- Coisa de circo...

H- Eu aonde vou, armo sempre minha lona. Fiz uma instalação, um

scriptorium de monge copista, lá no meu quarto de hotel. (Segura as mãos

dela sobre a mesa)

L- Você usa um anel em cada mão, um de rubi outro de safira azul. Isso me lembra, não sei bem por que, a relação de Fernando Sabino e Clarice Lispector, eles se corresponderam por mais de vinte anos. Lendo as cartas que eles trocavam se percebe Sabino apolíneo, azul. E Clarice...

B- Clarice escreveu “Perto do Coração Selvagem”. “Vem correr perigo” Luzia, vem comigo conhecer meu scriptorium. Eu quando viajo carrego sempre meus manuscritos, posso mostrar pra você o Canto 1 da Comédia. Na selva escura do Rio.

p. 118

L- Eu já saquei que nessa história eu tô mais pra Fernando Sabino... Eu acho que preciso ir daqui a pouco, já tá tarde e eu fico na casa da minha avó aqui no Rio.

B- O hotel fica bem aqui na Cinelândia, atrás do Cine Odeon.

L- A gente se telefona e combina de se ver. Nós dois moramos em São Paulo mesmo.

B- Tudo bem

L- Mas cá entre nós, um monge profano instalado logo ali entre os nightclubs da Cinelândia?

H-Faz parte.

3

Luzia de blusa vermelha segurando um aparelho de telefone fixo, vacila tomando coragem para ligar.

L-Porque eu fui dar o telefone errado pra ele, de uma casa onde eu já não morava mais, meu Deus. Não pensei que o Belchior ia me ligar mesmo. Também o atual inquilino, podia ter explicado melhor, ao invés de só dizer: "É engano!" Agora, convenhamos, é ridículo fazer um papel de groopie nessa altura do campeonato, com quase 50 anos na cara. E aquilo é um lobo mau de dar medo: "Pra que esse bigode tão grande? Pra que esse nariz tão grande? Pra que aquele olho brilhando com tanto fulgor? " Pra me comer... Eu não tive pique. Mas não paro de pensar nele, vou ligar. Coragem!

Telefona para outro aparelho, também residencial

B- Alô

L- Alô, aqui é a Luzia.

B-Humm. "Depois do que ela me fez eu jamais deveria aceitá-la outra vez..." (Cantarolando a música Mulambo)

L- Como?

B- Bom que você ligou Luzia, porque você me deu o telefone errado. Mas tudo bem.

L- Eu já saquei que nessa história eu tô mais pra Fernando Sabino... Eu acho que preciso ir daqui a pouco, já tá tarde e eu fico na casa da minha avó aqui no Rio.

B- O hotel fica bem aqui na Cinelândia, atrás do Cine Odeon.

L- A gente se telefona e combina de se ver. Nós dois moramos em São Paulo mesmo.

B- Tudo bem

L- Mas cá entre nós, um monge profano instalado logo ali entre os nightclubs da Cinelândia?

H-Faz parte.

3

Luzia de blusa vermelha segurando um aparelho de telefone fixo, vacila tomando coragem para ligar.

L-Porque eu fui dar o telefone errado pra ele, de uma casa onde eu já não morava mais, meu Deus. Não pensei que o Belchior ia me ligar mesmo. Também o atual inquilino, podia ter explicado melhor, ao invés de só dizer: "É engano!" Agora, convenhamos, é ridículo fazer um papel de groopie nessa altura do campeonato, com quase 50 anos na cara. E aquilo é um lobo mau de dar medo: "Pra que esse bigode tão grande? Pra que esse nariz tão grande? Pra que aquele olho brilhando com tanto fulgor? " Pra me comer... Eu não tive pique. Mas não paro de pensar nele, vou ligar. Coragem!

Telefona para outro aparelho, também residencial

B- Alô

L- Alô, aqui é a Luzia.

B-Humm. "Depois do que ela me fez eu jamais deveria aceitá-la outra vez..." (Cantarolando a música Mulambo)

L- Como?

B- Bom que você ligou Luzia, porque você me deu o telefone errado. Mas tudo bem.

(Luzia treme nas bases, sabendo o que significa esse "tudo bem" vindo de quem vem, dos lábios de um escorpião)

L- Mas sabe por que eu tô te ligando?

(Ao fundo se ouve Ray Charles cantando Ruby)

B- Porque Ray Charles morreu, ele era tudo pra mim! Agora estou começando a acreditar que estamos no fim dos tempos.

L- É, pelo menos estamos no fim de um tempo. Talvez do “Tempo da

Delicadeza”. Tá ficando tudo sem soul, insosso, sem tesão, "sem sangue nas veias, com nervos de aço". Aonde isso vai terminar?

B- Só sei que no último momento o véu afina. Quando as pessoas morrem, ou somem, elas transparecem num clarão. Elas afloram. Como eu estou sentindo ele agora...

L- Ray Charles tá por aí. Encantado. Vai ficar cantando dentro das pessoas. B- Ele disse: "Nasci com música dentro de mim, como um rim. Preciso de música, como de água."

L- As pessoas nascem assim, como esfinges, propõem enigmas: Escritores criados numa casa onde não havia um livro.

Espantos!

B- Aleijados esculpindo! Surdos compondo sinfonias!

L-O mistério gozoso, rindo na nossa cara...Pode alguma coisa boa vir de Nazaré? Ou da favela? Daí surge a lírica sabedoria do samba, como canta Paulinho da Viola: ”Sei lá não sei não, a Mangueira é tão grande que não cabe explicação”.

B- “Não sei, não sabe ninguém, porque canto o fado...” (cantarola o fado

“Foi Deus”) Amália Rodrigues!

L-O poema é um inesperado peregrino. " O vento sopra onde quer ,.." H-Spiritus ubi vult spirat! Essa voz cigana, oracular, ninguém sabe de onde vem nem pra quem irá.

L- E qual de nós dois sabe pra onde vai, nessa vida de Circo... Eu agora vim parar aqui em Blumenau. Tá difícil.

p. 120

B- Os domínios anglo-saxônicos são severos. Mas não se desespere, lembre de Goethe.

L- "O eterno feminino nos arrasta". Eu queria tanto te ver. Eres mi consuelo. Mas a gente vive viajando, cada um pra um lado... Assim nunca vamos nos encontrar.

B-Não duvide!

4

Sala de aula no SESC Copacabana, com poucos ouvintes, entre eles a mulher de vermelho com um saquinho de veludo azul na mão. Escrito no quadro negro:

Dramaturgia Nordestina Ariano Suassuna

“Gosto médio é uma peste. É muito pior do que o mau gosto.”

João Cabral

“O Brasil, qualquer Brasil, Quando fala do Nordeste...”

Professor- João Cabral nos fala da referência vulgar, estereotipada, que encobre o Nordeste. Um molde formulado pelo predador para paralisar sua presa. Como diz o poeta de Sobral:

"Nordeste é uma ficção! Eu não sou do lugar dos esquecidos! Não sou da nação dos condenados! Conheço o meu lugar!" Aliás ele deve estar

começando a se apresentar agora, perto de minha casa, lá no subúrbio, na distante Guadalupe. Então pessoal, vamos encerrando porque eu moro longe. Salário de professor não está dando pra morar na zona sul. Obrigada a todos.

L- (Dirigindo-se ao professor e sua esposa) Professor, desculpa, mas vocês podem me dar uma carona pra Guadalupe?

B- Os domínios anglo-saxônicos são severos. Mas não se desespere, lembre de Goethe.

L- "O eterno feminino nos arrasta". Eu queria tanto te ver. Eres mi consuelo. Mas a gente vive viajando, cada um pra um lado... Assim nunca vamos nos encontrar.

B-Não duvide!

4

Sala de aula no SESC Copacabana, com poucos ouvintes, entre eles a mulher de vermelho com um saquinho de veludo azul na mão. Escrito no quadro negro:

Dramaturgia Nordestina Ariano Suassuna

“Gosto médio é uma peste. É muito pior do que o mau gosto.”

João Cabral

“O Brasil, qualquer Brasil, Quando fala do Nordeste...”

Professor- João Cabral nos fala da referência vulgar, estereotipada, que encobre o Nordeste. Um molde formulado pelo predador para paralisar sua presa. Como diz o poeta de Sobral:

"Nordeste é uma ficção! Eu não sou do lugar dos esquecidos! Não sou da nação dos condenados! Conheço o meu lugar!" Aliás ele deve estar

começando a se apresentar agora, perto de minha casa, lá no subúrbio, na distante Guadalupe. Então pessoal, vamos encerrando porque eu moro longe. Salário de professor não está dando pra morar na zona sul. Obrigada a todos.

L- (Dirigindo-se ao professor e sua esposa) Professor, desculpa, mas vocês podem me dar uma carona pra Guadalupe?

Professor-Você mora lá?

L- Não, tô aqui pertinho em Copacabana mesmo. Cheguei ontem

justamente, tive que vir de repente pro Rio. Daí venho assistir sua palestra e acabo de saber por você, que vai ter esse show hoje. E eu preciso ir.

Esposa- Mas a gente nem tem certeza se esse show é hoje mesmo, pode ter sido ontem, sexta-feira... E, detalhe: Como você vai voltar? Vai encarar um trem da Central sábado a noite? Ainda por cima com esse saquinho suspeito de veludo aí na mão. Maior chamariz pra ladrão. Até eu fiquei curiosa...

M- Ah são umas peças de prata. Acabei de pegar com uma amiga pra

vender. Tem umas com ametista, outras com granada ou topázio azul...

E- Deixa eu dar uma olhada...Pera aí, porque você não telefona lá pra Lona Cultural de Guadalupe e vê se o show é hoje? Mas eu, tô sem crèdito

M-E eu nem tenho celular, será que tem um orelhão funcionando aqui perto? P-Orelhão funcionando? Pelo amor de Deus, eu tô com pressa.

M-(Olha para o saquinho de joias, respira fundo).É muita coincidência. Eu vou!

5

O farol do carro ilumina o letreiro na entrada escura de Guadalupe: Lona Cultural, Sábado, Belchior.

P- É hoje!

M- Claro, Faz só uns dias ele me disse: Não duvide! 6

Banheiro feminino da Lona Cultural, duas mulheres diante do espelho: Luzia e a outra, uma carioca do Subúrbio.

M-É o seguinte: Eu saí toda esculhambada pra voltar em meia hora, acabei pegando uma carona e vim parar aqui. E detalhe: Pra encontrar com o Belchior. Sem perfume, sem batom...

p. 122

M- Adoro! Scarlett O'hara. "After all, tomorow will be another day!" Vivien

Leigh em E o vento levou...E um vendaval me arrastou pra cá.

C- Então: A sorte está lançada. (Empunhando o batom vermelho, como uma lança) Alea Jacta Est!!!

7

Mulher entra na Lona de Guadalupe, do centro do picadeiro, Belchior a enxerga e ri pra ela, cantando:

H-"Essa noite namorar, sem ter medo da saudade.Sem vontade de casar ..."

(No escuro a música Mucuripe segue tocando até aos versos : “Aquela estrela é dela. Vida, vento, vela: Leva-me daqui”)

8

Garagem velha numa casa de bairro em São Paulo, onde foi improvisado um Scriptorium. Iluminuras e frases em latim, escritas com letras góticas pelas paredes. uma mesa de caligrafia. Livros encadernados à mão, lira e coroa de louros. Mesa com garrafa térmica e xícaras antigas. Belchior e Luzia, sentados à mesa. agasalhados para o frio: ela em tons azuis, ele tem um gorro vermelho. Uma vitrola e um aparelho antigo de cds onde toca Elis cantando A Vida de Bailarina.

B-Forçado a enganar, não vivendo pra dançar, mas dançando pra viver.

L- Esse dilema aguarda a todos, como assaltante, ao virar da esquina.

B- Eu quis trabalhar com a música, com arte, da forma puramente

sentimental, romântica, desprendida. Sem nenhum objetivo imediato de sucesso, sem buscar benefício pessoal.

L- É uma parte de você, que transpareceu desde o começo. Aliás você já apareceu como um acrobata, dando um triplo salto mortal. Chegou rasgando, descerrando a cortina, dizendo:

M- Adoro! Scarlett O'hara. "After all, tomorow will be another day!" Vivien

Leigh em E o vento levou...E um vendaval me arrastou pra cá.

C- Então: A sorte está lançada. (Empunhando o batom vermelho, como uma lança) Alea Jacta Est!!!

7

Mulher entra na Lona de Guadalupe, do centro do picadeiro, Belchior a enxerga e ri pra ela, cantando:

H-"Essa noite namorar, sem ter medo da saudade.Sem vontade de casar ..."

(No escuro a música Mucuripe segue tocando até aos versos : “Aquela estrela é dela. Vida, vento, vela: Leva-me daqui”)

8

Garagem velha numa casa de bairro em São Paulo, onde foi improvisado um Scriptorium. Iluminuras e frases em latim, escritas com letras góticas pelas paredes. uma mesa de caligrafia. Livros encadernados à mão, lira e coroa de louros. Mesa com garrafa térmica e xícaras antigas. Belchior e Luzia, sentados à mesa. agasalhados para o frio: ela em tons azuis, ele tem um gorro vermelho. Uma vitrola e um aparelho antigo de cds onde toca Elis cantando A Vida de Bailarina.

B-Forçado a enganar, não vivendo pra dançar, mas dançando pra viver.

L- Esse dilema aguarda a todos, como assaltante, ao virar da esquina.

B- Eu quis trabalhar com a música, com arte, da forma puramente

sentimental, romântica, desprendida. Sem nenhum objetivo imediato de sucesso, sem buscar benefício pessoal.

L- É uma parte de você, que transpareceu desde o começo. Aliás você já apareceu como um acrobata, dando um triplo salto mortal. Chegou rasgando, descerrando a cortina, dizendo:

" Quem me deu a ideia de uma nova consciência está em casa guardado por Deus contando os seus metais..."

Depois dessa declaração pra onde se vai?

B- Era preciso desvendar a cortina da vida de bailarino do Hair, da

contracultura de massa e eu tinha uma navalha. Eu sou de Sobral, trago a faca do sertão, "o punhal do Pajeú, reto, quase mais bala que faca, fala em objeto direto."

L-João Cabral de Melo Neto.

B- Pois então! Como posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém...

L- Correto. Agora, você tá consciente de que o teu ato já começa lá no alto? E quando um número circense já inicia com o trapézio lá em cima e sem rede de proteção, não tem volta. O público já tá com o coração na boca e

qualquer retrocesso é anticlímax, desaponta. É difícil manter esse nível de emoção e você queimou pontes.

B- É já não dá pra virar Jerry Rubin e abalar Wall Street. Alguém até me chamou de " o anti yuppie". O rapaz latino-americano sem dinheiro no banco...

L- Taí, olha só o personagem com que você entra em cena.

B- Sim eu quis adotar definitivamente essa personagem poética latino

americana, assumir toda essa emoção latina, contrastante com o tal universo anglo- saxônico.

p. 124

L- Comprou uma grande briga, talvez perca uns rounds, uns assaltos. Mas como disse meu filho de vinte anos: Quem fez "Rapaz Latino-Americano" nem precisa fazer mais nada. Vinte anos, atenção! Ou seja, a sua vitória é irreversível

B- Mas por agora eles estão vencendo e o sinal de todas as avenidas está fechado pra mim. Os Palhaços da Paulista gargalham em inglês do massacre diário, moendo carne de sertão, carne de segunda, de segunda-feira. É quando recomeça o embarque dos congelados no trem container lotado, comboio pra Treblinka linha 2. Rumo à vala comum. E não tem velório, é sem choro nem vela. Mas o pessoal segue aos pés do palhaço, sob os sapatos do Clown! Como ele ri pisoteando nossa cabeça chata de paraíbas. E pisa nos Cuca-rachas, baratas imundas, mão de obra barata, boliviano, peruano, é tudo do Paraguai. Chuta até deformar o rosto e virar só uma massa sem cara. E ainda existe um povo que a bandeira empresta para cobrir toda a infâmia e covardia dos nossos navios negreiros.

L-Talvez cubramos o rosto por vergonha de morar na fronteira do bolero e do tango.E pelo medo maior do peito dilacerado do fado. "Ah que lindeza tamanha... " Índias, negras estupradas, memórias enterradas vivas. O mar como sepultura e os cala bocas da ditadura. "Olhar ceguinho de choro"...

B- De fato é a hora do clamor no deserto: Só falta pouco tempo para 1-9-8-4. Agora estou em paz, o que eu temia chegou.

L- Verdade. Você escreveu coisas reveladoras.

B- Nem sempre eu tive essa voz oracular. Mas o que está ocorrendo agora mesmo, é que minha voz tem estado sob efeito de distorção, à medida que vão me deformando através da imagem, vão mudando a minha voz e ela vai ficando caricata. Estão me transformando num personagem cômico.

M- Entendo. Outro dia eu soube que ridicularizaram sua obra, num programa humorístico de TV, acho que chama Sexo Frágil

L- Comprou uma grande briga, talvez perca uns rounds, uns assaltos. Mas como disse meu filho de vinte anos: Quem fez "Rapaz Latino-Americano" nem precisa fazer mais nada. Vinte anos, atenção! Ou seja, a sua vitória é irreversível

B- Mas por agora eles estão vencendo e o sinal de todas as avenidas está fechado pra mim. Os Palhaços da Paulista gargalham em inglês do massacre diário, moendo carne de sertão, carne de segunda, de segunda-feira. É quando recomeça o embarque dos congelados no trem container lotado, comboio pra Treblinka linha 2. Rumo à vala comum. E não tem velório, é sem choro nem vela. Mas o pessoal segue aos pés do palhaço, sob os sapatos do Clown! Como ele ri pisoteando nossa cabeça chata de paraíbas. E pisa nos Cuca-rachas, baratas imundas, mão de obra barata, boliviano, peruano, é tudo do Paraguai. Chuta até deformar o rosto e virar só uma massa sem cara. E ainda existe um povo que a bandeira empresta para cobrir toda a infâmia e covardia dos nossos navios negreiros.

L-Talvez cubramos o rosto por vergonha de morar na fronteira do bolero e do tango.E pelo medo maior do peito dilacerado do fado. "Ah que lindeza tamanha... " Índias, negras estupradas, memórias enterradas vivas. O mar como sepultura e os cala bocas da ditadura. "Olhar ceguinho de choro"...

No documento EXERCÍCIOS DE DRAMATURGIA (páginas 118-130)