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Doutora em Educação/Área da surdez, Universidade Federal de Santa Maria, elisane2007@gmail.com

Ana Maria Filipini Rampelotto

Especialista em Educação Especial. EMEF Major Tancredo Penna de Moraes. amframpelotto@gmail.com

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A tarefa de elaborar um artigo é, por certo, bem mais complexa do que se costuma imaginar. Assim, pretendemos realizar um ensaio, tomando como eixo central o Grupo Canto Mão que foi realizado como projeto de extensão do Centro de Educação na Universidade Federal de Santa Maria- UFSM. O objetivo do projeto foi divulgar a Língua de Sinais para a comunidade acadêmica ouvinte da UFSM, da comunidade santa-mariense, assim como difundi-la à comunidade regional em geral. Tornou-se um projeto bastante conhecido e solicitado em aberturas de eventos e comemorações de datas festivas. A música, que faz parte do cotidiano dos ouvintes, era o elemento principal para transmitir mensagens sinalizadas através da modalidade gestual – visual, ou seja, utilizando-se da LS. Vale mencionar que, com a divulgação deste projeto, a procura e interesse, em conhecer e aprender a LS cresceu consideravelmente.

Como professora do Departamento de Educação Especial da UFSM, a autora principal deste artigo, leciona desde o ano de 1994 disciplinas teórico-práticas no Curso de Educação Especial – área da surdez e da pedagogia. Está envolvida com a comunidade surda desde bem antes de assumir a docência e tem realizado diversas atividades na área. Como docente participa de vários projetos de ensino, pesquisa e extensão, sendo o discurso voltado para questões sociolinguísticas. Foi nessa caminhada de projetos que foi discutido e surgiu o Grupo Canto-Mão.

A ideia inicial da formação do grupo aconteceu na disciplina Língua Brasileira de Sinais (Libras), oferecida pelo Curso de Educação Especial no ano de 1998. O objetivo principal da disciplina, na época, foi de suprir a necessidade de interação dos acadêmicos ouvintes com a comunidade surda, através de uma comunicação de modalidade gesto- visual, a LIBRAS. Diferente das línguas faladas, que são pronunciadas verbalmente e captadas auditivamente, as línguas de sinais são articuladas por gestos que envolvem mãos, face, corpo e captadas visualmente.

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disciplina Língua Brasileira de Sinais uma aprendizagem prazerosa da LIBRAS e uma maneira mais fácil de memorizar os sinais.

A escolha do nome do grupo foi bastante discutida entre a coordenadora e acadêmicas que frequentaram a disciplina. O nome deveria causar impacto e chamar a atenção do público ouvinte. Procuramos, então, uma linguista, a professora Drª Maria Alzira da Costa Nobre, que sugeriu ao grupo realizar um estudo sobre a forma de expressão musical conhecida na antiguidade como cantochão. Do latim, cantochão quer dizer “cantus planus”, canto igual, canto invariável, nivelado... um canto de ritmo livre (Enciclopédia Mirador Internacional 1995, p.2029- 2030). Em analogia a cantochão, surgiu a denominação Canto-Mão.

O grupo era composto por 25 integrantes, todos acadêmicos ouvintes do Curso de Educação Especial, uma instrutora (surda) que auxiliava no aprendizado dos sinais e uma professora ouvinte (autora deste texto), que coordenou o projeto.

As canções sempre foram glosadas (traduzidas da língua portuguesa para a estrutura da língua de sinais) e a tradução sempre feita em parceria com a instrutora surda, uma intérprete de Libras e a coordenadora do projeto. As glosas das canções eram discutidas com o grupo que semanalmente ensaiava a sinalização das músicas.

REPRESENTAÇÃO DO SUJEITO SURDO E DA SURDEZ Ainda é bastante frequente falar em surdo, surdez, educação de surdos, educação especial e falar disso como um problema.

Nas mudanças e nos novos paradigmas da “educação especializada”, um dos pontos polêmicos é levar a discussão da surdez para a ampla arena do contexto geral da educação. Uma discussão em que o surdo não seja visto como um problema, mas que se veja “o discurso sobre o surdo como um problema” (SILVA,1997, p.4).

Muitos autores, entre eles Wrigley (1997, p. 7) colocam que “a surdez não é um tema de audiologia, mas epitemologia”.

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Essa é uma afirmativa que leva os surdos e a surdez a serem “vistos como criando e constituindo uma diferença política” (SKLIAR, 1995, p.34). Um espaço que nos convida a problematizar a normalidade ouvinte e não a condição de ser o outro – o surdo. Isso faz com que a questão se altere, invertendo aquilo que foi edificado como regime de verdade. Nesse sentido, Skliar (1998, p.23) documenta que:

em vez de entender a surdez como uma exclusão e um isola- mento no mundo do silêncio, defini-la como uma experiência e uma representação visual; em vez de representá-la através de formatos médicos e terapêuticos, quebrar essa tradição por meio de concepções sociais linguísticas e antropológicas; em vez de submeter aos surdos a uma etiqueta de deficientes da linguagem, compreendê-los como formando parte de uma mi- noria linguística; em vez de afirmar que são deficientes, dizer que estão localizados no discurso da deficiência.

O que está mudando para Skliar (1998), são as percepções sobre o sujeito surdo e a surdez, são as descrições em torno da língua de sinais, são as decisões sobre as políticas educacionais, são as análises das relações de saberes e poderes entre surdos e ouvintes.

As discussões sobre as formas com que os surdos e a surdez têm sido representados pelas práticas e políticas educacionais se enquadram nos modelos de correção, recuperação e normalização da surdez ou, então, naqueles modelos que entendem o grupo de surdos enquanto “categoria cultural de auto identificação”.

De um lado está a representação da surdez que vê o surdo como um deficiente auditivo que “precisa ter sua deficiência removida através de terapias da fala e sessões de oralização da pessoa surda, utilizadas a fim de que o surdo se pareça, o mais possível com as pessoas ouvintes” (THOMA, 1998, p.43).

Por outro lado, o surdo e a surdez, também são vistos de outra forma. São vistos como constituindo um grupo minoritário de cultura visual.

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AS REPRESENTAÇÕES

O processo de representação não se refere aqui às questões teóricas do que se deve ou não saber; ou, então, do que se verbaliza em relação a informações, atitudes, imagens, formas de dominar ao outro. Para Costa (2000, p.77), representações são “noções que se estabelecem discursivamente, instituindo significados segundo critérios de validade e legitimidade vinculados a relações de poder”. Menciona ainda que “as representações não são fixas e em suas transformações não expressam aproximação a um suposto ‘correto’, ‘verdadeiro’, ‘melhor’”.

Para outros autores, representações (ou imagens) são construções criadas dentro das relações sociais e produzem efeitos de verdade. Stuart Hall (1997), por exemplo, refere-se ao termo para falar do processo pelo qual os sentidos e as significações são produzidos e celebrados entre membros de uma comunidade. Hall diz que representação é

o processo pelo qual membros de uma mesma cultura usam a linguagem para produzir sentidos... as coisas, objetos, even- tos do mundo não têm, neles mesmos, qualquer sentido fixo, final ou verdadeiro. Somos nós, em sociedade, entre culturas humanas, que atribuímos sentidos às coisas, nós que “signifi- camos” as coisas. Os sentidos, consequentemente, sempre mudarão de uma cultura para outra e de uma época a outra (HALL, 1997, p.61).

Hall (1997) ainda refere que as práticas de significação estão incluídas nas relações de poder e se tornam significativas quando manifestam as relações entre aquelas culturas e instituições que fazem a “representação” das pessoas ou dos objetos “representados”.

Sobre a mesma questão Meyer (1999) coloca que

são, pois, os sistemas de representação social que constroem os ‘lugares’ nos quais indivíduos e/ou grupos se posicionam ( ou são posicionados) e a partir dos quais podem falar ( ou ‘ser

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falados’), uma vez que estes sistemas providenciam respostas para questões acerca de ‘quem sou eu?’ Ou “o que eu posso ser? ’ Ou ainda “quem pode dizer o que, a quem, em que cir- cunstâncias? ‘ (p.60).

Meyer comenta que os significados são construídos através das práticas de significação e dos processos simbólicos, envolvendo relações de poder.

O VISÍVEL É SEMPRE O OUTRO

A visibilidade é um dos temas notáveis nos trabalhos científicos de Michel Foucault. Para o autor a visibilidade é “qualquer forma de sensibilidade, qualquer dispositivo de percepção. O ouvido e o tato na medicina, o exame na pedagogia, a observação sistemática e sistematizada em qualquer aparato disciplinar, a disposição dos corpos nos rituais penais, etc” (LARROSA, 1996, p.60).

A representação, o olhar, a visão ... se associam e são centrais em análises culturais. Nesse panorama, Silva (1999, p.60) comenta que “visão e representação, em conexão com o poder se combinam para produzir a alteridade e a diferença”.

A tendência da norma é ser invisível, por isso não é questionada nem problematizada. O que é questionado e problematizado é o “desvio”. É ele que constitui um problema. Ele sempre é o Outro, aquele que é visível e problemático.

Sobre essa questão Larrosa (1998, 48) argumenta que “[...] propor um discurso sobre o outro, o diferente, aquele que não sou eu, que não somos nós, significa necessariamente refletir sobre como se constroem essas imagens e como funcionam para classificar e excluir as pessoas que não são supostamente como nós”.

O mesmo autor comenta que “somos nós que definimos o outro”: decidimos como ele é, o que lhe falta, o que precisa, suas carências e seus desejos.

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A construção da alteridade é caracterizada pelo processo de estabelecimento da diferença. A condição de ser o outro é sempre deslocada, tornando-se visível e problemático.

Os surdos são um exemplo que tem sido insistentemente inventado. Nas palavras de Skliar (1998, p.28), “seus corpos foram moldados a partir do ouvido incompleto e da fala insuficiente. Suas identidades, pensadas como pedaços desfeitos. Suas mentes como obscuras e silenciosas cavernas”.

Qualquer grupo social que não segue as dimensões da “norma” é determinado e estruturado como “inferior e desviante”. Como um grupo subordinado, as pessoas surdas são vistas como “objeto de admiração e objeto de piedade” (SILVA, 1997, p.10).

AS APRESENTAÇÕES

Numa pesquisa, Lulkin (2000) examina os discursos que inventaram/construíram uma representação dos surdos e da surdez. Ele observa as apresentações de estudantes surdos colocados em cena sob o poder dos ouvintes. Em uma delas, o autor refere-se a um coral de surdos que emocionam plateias ao colocar em sinais a linguagem musical. Um evento em que há sempre a dependência do regente, neste caso o ouvinte que conduz o grupo a representar-se.

Muitos são os questionamentos de Lulkin. Ele pergunta: “Que sentidos/significados são produzidos por uma plateia de surdos e ouvintes, quando essa apresentação ‘cênica’ é orientada pela letra cantada e pela música instrumental?” ou “Que sentidos são produzidos para os próprios ‘artistas’ surdos (sobre si mesmos), ao mostrarem uma criação ‘dependente’ do professor ouvinte?” ou ainda “por que fazer os alunos surdos representarem (e representarem-se) dessa forma?”. Questiona também: “E se não tivesse um condutor ouvinte para orientar os movimentos ao ritmo da canção, os surdos teriam condições de fazê-lo? ”.

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a forma de expor o outro está marcada a partir da utilização da língua de sinais e do corpo, entendidos sempre como uma interpretação para quem ouve. Revela também que “o que se narra, o que se inventa e se constrói quando o sujeito surdo está no centro da representação corporal é uma representação ouvinte”.

Imersas que estivemos nas atividades realizadas pelo Grupo Canto-Mão é que pretendemos agora falar. Queremos fazer algumas reflexões e levantar novos questionamentos, na esperança de lançar luzes sobre ele.

O grupo, desde a sua formação, foi sendo convidado para apresentações em aberturas ou encerramentos de eventos artístico- culturais. Antes de iniciar qualquer apresentação, procurávamos informar a plateia sobre os objetivos do projeto, assim como da importância da língua de sinais para o sujeito surdo. Informávamos ainda que os integrantes são todos estudantes ouvintes (muitas vezes vistos como surdos pela plateia) e usuários da língua de sinais. Também a instrutora surda era apresentada ao público nas apresentações.

Como nos corais de surdos, o grupo Canto-Mão utilizava-se de luvas brancas, que fazem o contraste com o vestuário preto; assim salientavam as expressões sinalizadas durante as apresentações.

Como Lulkin, em relação ao coral de surdos, temos muitos questionamentos em sobre os processos culturais que envolveram o Grupo Canto- Mão. Questiono então:

• Como nós [ o grupo] se autorizou a passar pelo outro [ o surdo]?

Lulkin observou em seu estudo, foi possível observar também no Grupo Canto-Mão, que a forma de expor o outro está marcada a partir da utilização da língua de sinais e do corpo.

• Ao representar o outro, o grupo Canto- Mão não estaria produzindo um espaço de diferença?

Frente a esta questão o Grupo Canto-Mão compartilha de um espaço de diferença. Independente do viés ouvintista (as representações dos ouvintes sobre a surdez e sobre o surdo) o grupo suscita uma

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reação dos outros [ plateia ouvinte] que deseja conhecer e aprender a língua de sinais.

• Que efeito (s) produzia o grupo ao representar e representar- se?

Através da visibilidade de corpos (re) inventados, o Grupo Canto- Mão produzia uma mensagem não somente no sentido linguístico, mas também cultural. O Grupo constrói um lugar, se posiciona nesse lugar e dele fala para o outro, surdos e ouvintes.

A língua de sinais até então objeto desviante que vai se tornar um lugar comum, um lugar que passa ser aceito, um lugar conhecido por um outro grupo, o dos ouvintes.

CONCLUSÃO

Nosso interesse, neste ensaio, foi tentar discutir e principalmente (re) pensar os efeitos produzidos pelas apresentações do Grupo Canto- Mão; pensados agora de forma sistemática, aprofundada e não mais como uma mera metodologia de ensino.

Nesse sentido, este estudo problematiza as representações de ouvintes que produzem corpo (s) surdo (s) quando se apropriam da linguagem espacial, criando um espaço de diferença.

E afinal, de que corpo falamos? De um corpo visível, que utiliza as mãos como status de língua e celebra um espaço do surdo. Uma língua que, por ser espacial, acaba resumindo o surdo apenas na “língua”, no corpo, no que é visível.

E as outras questões, como as identidades, os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades, as culturas surdas, essas não entram em cena.

Falamos de corpos [ouvintes] que se colocam num espaço de diferença. Falamos de corpos (re) inventados a partir de representações daqueles que ouvem. Corpos criados/ inventados e que se mantém na cultura ouvinte, mas recusam o poder que se lhe atribui.

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REFERÊNCIAS

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O sujeito aprendente no