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Bacharel e Licenciada em Educação Física, especializanda em Metodologia do Ensino de Artes, tradutora/intérprete de Libras na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). gabrielle.mschuster@gmail.com

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Os alunos surdos brasileiros (da Educação Básica ao Ensino Superior) tem direito à presença do tradutor/intérprete de Libras desde o Decreto de número 5.626 homologado em dezembro de 2005. Para entender como acontece este processo dentro de uma instituição de ensino é necessário que voltemos um pouco no tempo.

A língua de sinais “existe no Brasil há pelo menos 150 anos, com a chegada de Ernest Huet, um surdo francês que fundou a primeira escola para surdos no nosso país” (GESSER, 2009, p. 37). Apesar de a língua existir de fato há tanto tempo, só foi reconhecida legalmente em 2002, com a Lei nº 10.436, cujo artigo 1º explica:

É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados.

Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutu- ra gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002).

Desde então, e principalmente após a homologação do Decreto 5.626 de 2005, é legalmente garantida a presença de um tradutor/ intérprete de Libras dentro de qualquer instituição (privada ou pública): escolas, universidades, hospitais, delegacias, fóruns e outros tantos lugares que as pessoas surdas circulam. Mas o que faz, exatamente, um tradutor/intérprete?

O tradutor/intérprete de língua de sinais – ou, utilizando as letras iniciais, o TILS – faz o trabalho como o tradutor/intérprete de qualquer língua oral: seu papel é traduzir a comunicação entre duas pessoas que não são fluentes na mesma língua, ou seja, passar as informações de uma língua para outra. No caso específico da profissão de tradutor/intérprete de língua de sinais, como o nome diz, a tradução ou interpretação é feita de uma língua oral para uma língua gestual e

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vice-versa.

A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), atualmente (1º semestre de 2015) conta com 9 tradutores/intérpretes e 17 alunos surdos incluídos em diversos cursos de graduação, além de 4 professores efetivos, também surdos. A seguir, uma tabela com a quantidade de alunos surdos e seus respectivos cursos:

Tabela. 01: Relação número de alunos x cursos frequentados.

Neste trabalho vamos nos ater aos cursos lotados no Centro de Tecnologia, os quais possuem maior parte da estrutura curricular composta por disciplinas que utilizam matemática avançada.

DESENVOLVIMENTO

Atualmente, atendemos 4 alunos surdos cujos cursos estão lotados no Centro de Tecnologia da UFSM. Os cursos são, por ordem alfabética: Arquitetura e Urbanismo; Ciência da Computação;

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Engenharia de Computação e Sistemas de Informação. A seguir, a grade curricular dos semestres pelos quais estes alunos já passaram ou estão passando, com algumas disciplinas assinaladas:

Figura. 01: Grade curricular do 1º, 2º e 3º semestre do curso de

Arquitetura e Urbanismo. Fonte: http://portal.ufsm.br/ementario/ curso.html?curso=718

Figura. 02: Grade curricular do 1º semestre do curso de Ciência da

Computação. Fonte: http://www.inf.ufsm.br/index/graduacao/cc/ estrutura-do-curso.

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Figura. 03: Grade curricular do 1º e 2º semestres do curso de

Engenharia de Computação. Fonte: http://w3.ufsm.br/ecomp/?page_ id=4.

Figura. 04: Grade curricular do 1º semestre do curso de

Sistemas de Informação. Fonte: http://www.inf.ufsm.br/index/ graduacao/si/estrutura-do-curso.

Para fins de análise, selecionamos apenas as disciplinas cujos professores são lotados no Departamento de Matemática da UFSM (vide códigos que iniciam com as iniciais MTM). As disciplinas assinaladas são:

- Cálculo A

- Geometria Analítica - Cálculo B

- Álgebra Linear.

Tais disciplinas são fundamentadas basicamente em práticas de cálculos, em que o professor realiza a explicação ao mesmo tempo em que coloca fórmulas, números e gráficos no quadro, dificultando ainda mais a interpretação do TILS, que precisa desenvolver estratégias para que as explicações não sejam perdidas em momento algum.

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A seguir, alguns exemplos de conteúdos que são desenvolvidos nas disciplinas acima referidas:

Figura. 05: Caderno do aluno do curso de Ciência da Computação.

Disciplina: Cálculo A. Conteúdo: Funções.

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Figura. 07: Curso: Engenharia de Computação. Disciplina: Cálculo

A. Conteúdo: Limites.

Figura. 08: Curso: Ciência da Computação. Disciplina: Cálculo A.

Conteúdo: Limites no infinito.

E agora, a pergunta: como interpretar, para uma língua exclusivamente visual, conteúdos tão complexos, abstratos e que possuem uma linguagem específica? Para que haja uma boa prática da interpretação do conteúdo que está sendo passado, os TILS desenvolvem estratégias próprias ou em conjunto com o aluno para

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realizar a interpretação. Muitas vezes podendo até haver combinações com o professor, para que ele mude a maneira de explicar e o aluno surdo possa acompanhar em tempo hábil.

Na maioria das vezes, se utiliza de combinações entre o TILS e o aluno em que se leva em conta a preferência do aluno no momento da interpretação, pelo que pode deixar o conteúdo mais claro para ele. As estratégias já utilizadas são:

a) Somente interpretação Língua Portuguesa – Libras

Em alguns momentos o aluno acompanha a explicação somente através da interpretação para a Libras, sem outro tipo de recurso visual.

b) Interpretação e visualização simultânea do quadro negro

O aluno acompanha a interpretação do TILS enquanto este aponta para alguma fórmula ou gráfico no quadro negro, fazendo com que o aluno surdo possa visualizar o que o professor escreveu e assim ligar ao que foi interpretado.

c) Visualização do quadro negro e interpretação posterior

O aluno surdo visualiza o que o professor está explicando em anotações no quadro (realizando o cálculo) e somente após o professor fazer as devidas anotações é que o TILS realizará a tradução do que foi dito na explicação.

d) Interpretação e visualização escrita

O aluno surdo acompanha a interpretação do TILS e o mesmo fará apontamentos escritos (cálculos) no caderno do aluno para que ele possa visualizar e assim compreender o conteúdo.

e) Somente visualização do quadro negro, sem interpretação

O aluno surdo, em alguns momentos, pode pedir que a interpretação cesse para ele visualizar somente o que está no quadro, sem requerer que o TILS faça a interpretação posterior do que foi falado pelo professor.

f) Convenção de sinais

O aluno surdo e o TILS combinam sinais específicos (que não são sinais oficiais, mas sim convencionados para certos termos que

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não possuem tradução), tornando a interpretação mais fluida e rápida.

g) Explicação particular do professor no caderno do aluno surdo

Após a aula ou em um momento especificado pelo professor, o mesmo dará uma assistência específica para o aluno surdo, podendo ter um maior contato para realizar a explicação, através de apontamentos no caderno do aluno surdo e o acompanhamento do TILS.

h) Interpretação espelhada

Utilizada principalmente na interpretação de gráficos: o TILS vê o que está no quadro na ordem esquerda→direita e interpreta da mesma forma (esquerda→direita). Porém, como está de costas para o quadro (e de frente para o aluno surdo), o que o aluno vê é um gráfico no quadro (desenhado da esquerda→direita) e outro interpretado pelas mãos do TILS (direita→esquerda). Nestes casos, o surdo pode solicitar ao tradutor/intérprete que faça a interpretação espelhada, que nada mais é do que interpretar “ao contrário” (ao invés de esquerda→direita, direita→esquerda) para que o aluno surdo visualize as duas informações visuais da mesma forma.

Lembramos que cada aluno surdo possui suas preferências nas estratégias a serem utilizadas pelo TILS durante as aulas, assim como em uma só aula pode surgir a necessidade de utilização de mais de uma estratégia. Portanto, a escolha varia de acordo com o que é de melhor compreensão para o aluno surdo, podendo alguns TILS se adaptarem a somente uma estratégia sem adotar nenhuma outra possibilidade, se o aluno compreende através da estratégia oferecida.

Os alunos surdos também possuem suas estratégias para facilitar a aprendizagem destes conteúdos. A seguir listamos algumas:

a) Realizar cópia ao mesmo tempo da interpretação

O aluno surdo realiza apontamentos em seu caderno ao mesmo tempo que o TILS está realizando a interpretação.

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O aluno surdo se atém somente à interpretação do TILS e posteriormente realiza reprodução do material que foi escrito por um colega.

c) Realização de fotografias

O aluno surdo captura através de uma câmera (celular ou câmera digital) o que foi escrito no quadro negro, ganhando tempo e não perdendo a interpretação do TILS.

d) Filmagem da aula

Com o consentimento do professor e do TILS o aluno filmará a aula com as explicações do conteúdo para que estes vídeos o ajudem para um momento de estudo posterior.

CONCLUSÃO

Muitos são os desafios que o profissional tradutor/intérprete de Libras enfrenta no dia-a-dia, especialmente em disciplinas tão complexas e com um alto índice de reprovação histórico. A dificuldade maior neste tipo de disciplina, de acordo com a grande maioria dos alunos ouvintes, é tentar entender algo que parece irreal, abstrato demais, sem aplicação no mundo físico. Esse foi o motivo pelo qual decidimos analisar estas disciplinas – as de Matemática – e não as de Física, por exemplo, que possuem seus cálculos aplicados no mundo físico (o mundo que conhecemos). Para muitos, conteúdos como os vistos aqui parecem coisas de outro mundo. Para o TILS, a dificuldade de interpretar este tipo de disciplina está no fato de que estes conteúdos (que são autoexplicativos quando apresentados de forma visual) são interpretados primeiramente pelo professor: do seu pensamento através da linguagem matemática para uma explicação na Língua Portuguesa em sua modalidade oral. O TILS, por sua vez, recebe essa informação oral e passa para a Libras, uma língua visual.

Como já foi dito, existem pouquíssimos materiais no país onde os TILS possam ler algo sobre este assunto. Por isso, reiteramos que as sugestões colocadas neste trabalho são estratégias já utilizadas

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pelas tradutoras/intérpretes da UFSM, ou seja, estratégias que foram colocadas em prática – e deram certo – nesta realidade específica. Talvez em outra instituição de ensino, um TILS tente utilizar as mesmas estratégias para com seu público-alvo e nenhuma delas cause o efeito esperado, fazendo com que ele tenha que descobrir suas próprias estratégias de tradução/interpretação. Mas esperamos que, de alguma forma, o relato de nossa experiência possa auxiliar o trabalho de outros profissionais da área.

Se existe um requisito para que um TILS possa interpretar em alguma das disciplinas citadas, não é saber todo o conteúdo, muito menos ser um “expert” em Matemática. Gostar e ter conhecimento prévio sobre o conteúdo ajuda, e muito, mas o mais importante é a vontade de ser um bom profissional tradutor/intérprete de Libras: competente, ético e preocupado com a compreensão, pelos surdos, de sua interpretação.

Nosso objetivo, como grupo de tradutoras/intérpretes de Libras da UFSM, é continuar as discussões acerca da interpretação nas disciplinas de Matemática, bem como em disciplinas de outras áreas que também apresentam suas complexidades específicas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua

Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm.> Acesso em 27 abr. 2015.

GESSER, A. LIBRAS? Que língua é essa? crenças e preconceitos em torno

da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

O uso da agenda como