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Empoderamento crítico e de classe

No documento Open Empoderamento e planejamento para o . (páginas 85-90)

3. EMPODERAMENTO E DESENVOLVIMENTO

3.1 TEORIAS DO EMPODERAMENTO

3.1.1. Empoderamento crítico e de classe

A Teoria Crítica está estritamente relacionada à emancipação humana, considerada como conceito de transcendência do desenvolvimento. A emancipação está relacionada à totalidade dos aspectos de cada indivíduo; nasce e se reitera nas práticas cotidianas, como produto da cultura, em um processo contínuo de vivência e de convivência com o meio social. Assim, há o entendimento de que a emancipação é produto dos processos de empoderamento. Assim, numa perspectiva crítica de natureza epistemológica, Paulo Freire168 trabalhou com o conceito de empoderamento e de diálogo, ao construir uma pedagogia libertadora, cujo alcance de um ensino de transformação social é articulado pelo professor. Explica o autor que o diálogo não pode ser compreendido apenas como uma técnica, um instrumento para obter resultados e fazer amigos, pois, nesse caso, o diálogo seria utilizado

167 BOQUERO, Rute Vivian Angelo. Empoderamento: instrumento de emancipação social? – uma discussão conceitual. Revista Debates, Porto Alegre, v. 6, n. 1, jan/abr. 2012, pp.173-187, P.175.

168 FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Traduzido por Adriana Lopes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.64.

como instrumento de manipulação e não de libertação, devendo ser percebido, portanto, como parte da própria natureza histórica do homem. E define o diálogo como “momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade, como a fazem e refazem”, selando-se, assim, uma relação entre os sujeitos cognitivos.

Tratando sobre a visão humanista, aponta ele169 que ninguém pode coisificar pessoas, através da manipulação. E constata que muitas vezes, para justificar tais atos de desrespeito, disfarçassem-se seus verdadeiros propósitos com explicações messiânicas170. E alerta para

uma questão muito importante: a de que ninguém liberta ninguém, pois “toda busca movida

por interesses pessoais ou de grupos é necessariamente uma busca contra os demais. Consequentemente uma falsa busca. Tão somente em comunhão a busca é autêntica”. Porém, essa comunhão não poderá existir se alguns, ao buscarem, transformarem-se em antagônicos dos que proíbem que a busquem, já que o diálogo entre ambos se tornará impossível, as distâncias aumentarão e as soluções procuradas não passarão do assistencialismo. Deste modo, defende que no momento em que superem o antagonismo e almejem o diálogo, conseguirão a comunhão e o grupo dominante já não fará oposição e renunciará a desumanização tanto de si mesmo quanto dos demais, pois ao humanizarem os dominados, os dominadores também estariam se humanizando e vice-versa. E expõe que do ponto de partida para este consenso está no homem-mundo, ou seja, no homem em suas relações com o mundo.

É Interessante notar que, apesar de não negar o conflito de interesses, a ótica freiriana denota certa credibilidade demasiada na boa-fé dos grupos socialmente antagônicos e chega a ser ingênua ao defender que é possível a simples abdicação de poder.

E já prevendo receber este julgamento, Paulo Freire171 defende que o diálogo envolve discurso e práticas democráticas e ao ser reflexão e a ação, não pode ser convertido em simples intercâmbio de ideias, tampouco em uma discussão hostil, ou a imposição de verdade,

169 FREIRE, Paulo. O papel da humanização na educação: resumo de palestras da conferência, realizada em maio de 1967, em Santigao, sob o patrocínio da OEA. Revista da FAEEBA, Salvador n°7, jan/jun.1997, pp.9-17, p.10- 12. Disponível emhttp://acervo.paulofreire.org, consulta realizada em 29 de março de 2014.

170 Nesse sentido, Paulo Freire exemplifica: “É necessário, dizem, salvar essas pobres massas cegas de influências malsãs. E, com essa salvação, o que pretendem os que assim atuam é salvaram-se a si mesmos, negando ao povo o direito primordial de dizer a sua palavra”. (FREIRE, Paulo. O papel da humanização na educação: resumo de palestras da conferência, realizada em maio de 1967, em Santigao, sob o patrocínio da OEA. Revista da FAEEBA, Salvador n°7, jan/jun.1997, pp.9-17, p.10. Disponível emhttp://acervo.paulofreire.org, consulta realizada em 29 de março de 2014.)

171 FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Traduzido por Kátia de Mello e silva. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979, p.42.

por isso é um ato de amor, não existindo, portanto sem humildade, sem uma fé intensa no homem e sem esperança.

Porém, ao reconhecer a natureza dialética do aprendizado gerado pelo processo de empoderamento, a perspectiva freiriana apresenta uma hipótese confirmada na prática social, pela própria evolução sobre o direito ao desenvolvimento e também na construção da educação em direitos humanos pelas Nações Unidas, que será objeto de análise.

Nota-se que a construção dialógica de Paulo Freire é ontologicamente democrática, pois no processo de conhecimento de realidade existe a comunicação entre indivíduos. O diálogo necessariamente precisa ser uma comunicação democrática, uma vez que a crença no conhecimento não pode ser entendida como instrumento de posse exclusiva de um dos sujeitos; deve ser a confirmação conjunta, no ato comum de conhecer e de reconhecer, em um processo de aprendizagem e de reaprendizagem172.

Entretanto, esclarece Paulo Freire173 que não há diálogo em um vácuo político, em

um espaço em que se possa fazer tudo o que se quiser, pois o diálogo ocorre inserido em um programa ou contexto, implicando responsabilidade, disciplina e direcionamento174. Deve ser construído em permanente tensão entre autoridade e liberdade, em que os sujeitos crescem e amadurecem na capacidade de autodisciplina, não sendo concebida uma cisão, uma dicotomia, entre o conhecimento científico e a realidade; a ciência sobrepõe o pensamento crítico, a partir do senso comum, isto é, da observação da realidade e do conhecimento popular sobre ela. Assim, entende ser essencial, no trabalho do professor, o ensino humaniazador.

Nesse sentido, Paulo Freire175 nota uma preocupação nos Estudos Unidos em se utilizar a palavra e o conceito de “empowerment” nas atividades de ensino e entende que a razão esteja no incentivo à potencialidade criativa de quem aprende e a perda da funcionalidade do interlocutor, do professor, do transmissor de conhecimento, o que se mostra

172 FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Traduzido por Adriana Lopes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.65.

173 FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Traduzido por Adriana Lopes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.66-67.

174 Nesse sentido, fale salientar que no capítulo quinto desta tesa será realizado um estudo de caso sobre as experiências dos Programas Nacionais de Direitos Humanos, em que será ilustrado os malefício em não buscar um diálogo em todos os segmentos sociais.

175 FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Traduzido por Adriana Lopes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.69-70.

despropositado, por acreditar inexistir autoaprendizado e autoemancipação, já que a educação é sempre diretiva e a libertação um ato social.

E aqui se revela um ponto de vista muito importante na teoria freiriana, sobre a crítica numa perspectiva ontológica. Como já esclarecido, para ele não é possível falar-se em autoemancipação pessoal, pois, mesmo quando o indivíduo se sente individualmente mais livre, se esse não foi um sentimento social, de instrumentalidade, para reverter essa autoconsciência em capacidade de ajudar os outros também a se libertarem, por meio de uma transformação global da sociedade, então, há apenas o exercício de uma atitude individualista no sentido de “empowerment” individual ou de liberdade, que foi a conatação adotada, em regra, pelos cientistas sociais norte-americanos. E reitera que apesar de fazer parte de um processo de transformação social ele, por si só, não é suficiente para isso.

Na verdade, a reflexão de Paulo Freire sobre a impossibilidade de autoemancipação pode ser levada aos dois extremos, tanto para a concepção unicamente ontológica da crítica, como para a liberdade, individualista. Isso porque o empoderamento, realmente transformador, é um ato social, em que a sensação de libertação é o meio, mas não o fim do processo, o qual exige mais do que uma concepção coletivista. Assim, é preciso haver um direcionamento para a libertação, sendo necessário um processo de aprendizado, que através de um diálogo democrático, os indivíduos sejam direcionados à vivência crítica e a propagação da emancipação.

Sob enfoque ontológico, o empoderamento ocorre através da suspensão do cotidiano, em que, por meio de momentos de fuga para realização das atividades prazerosas, o indivíduo consegue superar a alienação, percebendo a verdade e somando aquele momento a uma vivência doravante mais crítica e reflexiva176.

Assim, a crítica ontológica da vida cotidiana impõe aos indivíduos um padrão de comportamento, o qual apresenta modos típicos de realização, que faça com que o indivíduo se perceba como ser singular. Para romper com percepções ideológicas, é necessário suspensão da vida cotidiana, a qual pode ser alcançada pelo trabalho, arte, ciência e moral, pois através dessas atividades pode-se alcançar uma escolha consciente e autônoma para realização de um trabalho livre, prazeroso e provocador de intensa motivação. É importante alertar que essa suspensão da vida cotidiana não é fuga, mas um circuito, pois se sai dela e se

176 NETTO, José Paulo. Para a crítica da vida cotidiana. In: CARVALHO, M.C. Brant; NETTO, J.P. Cotidiano: conhecimento e crítica. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2000, p.77-79.

retorna a ela de forma modificada, aprimorada. Assim, apesar da suspensão do cotidiano ser temporária, ela permite ganhos de consciência do indivíduo para transformação do cotidiano singular e coletivo177.

Ainda na perpespectiva de crítica unicamente ontológica, Agnes Heller 178 defende que o preconceito – entendido como espécie de juízo provisório, como categoria de pensamento e de comportamento cotidianos, do qual todo homem é dotado - é um grande obstáculo, a fim de realizar práticas emancipatórias, uma vez que impede a autonomia do homem por limitar as margens de escolha diária e por alimentar a alienação. Cada um é responsável por seus preconceitos e, tentando responder a questão de como libertar-se deles, a autora responde: “só podemos nos libertar dos preconceitos se assumirmos o risco de erros e se abandonarmos – juntamente com a infalibilidade sem riscos – a não menos tranquila carência de individualidade” 179.

Já no âmbito teórico do liberalismo - individualista, a proposta de desenvolvimento como emancipação, deve ser compreendida como aquele que reflete, em grau máximo, a possibilidade de escolhas individuais dos sujeitos. Essa posição, conforme analisado no capítulo anterior, reflete um contraponto a construção teórica do Amartya Sen e demais teóricos liberais. Apesar de esta tese confabular com a proposta para o desenvolvimento elaborada por Sen, constata-se que Paulo Freire lança significativa reflexão no tocante ao empoderamento de direitos não ocorrer de modo individual, mas somente de forma coletiva.

Considerando que uma das racionalidades do desenvolvimento é a participação ativa e ampla do ser humano; e que a participação democrática é concebida como um valor, institucionalizado em instrumentos de consultas e de debates coletivos; e percebendo, ainda, que a força motriz capaz de transformar a realidade não é gerada individualmente, constata-se que o empoderamento é construído coletivamente, através da vivência participativa.

Paulo Freire180 aponta que o empoderamento capaz de transformação social é o empoderamento de classes, que não se confunde com o individualista, comunitária ou social.

177 CARVALHO, M.C. Brant. O conhecimento da vida cotidiana: base necessária à prática social. In: CARVALHO, M.C. Brant; NETTO, J.P. Cotidiano: conhecimento e crítica. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2000, p.27- 28.

178 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Traduzido por Carlos Nelson Coutinho. 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.43 e 59.

179 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Traduzido por Carlos Nelson Coutinho. 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.63.

180 FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Traduzido por Adriana Lopes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.72.

E aqui explicita o fundamento marxista, porém, pondera que não é que esteja reduzindo tudo às classes sociais, como em corrente mais estreita do socialismo. E expõe que o “empowerment” de classe social está muito além de um evento individual ou psicológico, pois “indica um processo político de classes dominadas, que buscam a própria liberdade de dominação, um longo processo histórico de que a educação é uma frente de luta” e envolve um processo permanente de aprendizado. Vai além, afirmando que literaturas de autoajuda sobre sucesso e esforço pessoal, muito bem aceitos na cultura norte-america são um bloqueio ao empoderamento de classes, justamente por intervir no direcionamento do aprendizado do indivíduo, levando-o a uma visão egoísta.

Deve ser ponderado que se discorda, entretanto, da concepção freiriana se for interpretado o empoderamento de classes como classes de trabalho, empregadores e empregados, mas concorda-se se for expandida essa interpretação para uma concepção ampla de classes sociais, da relação de exploração econômico-social e de dominação, não restrita a relações de trabalho, conforme complexidade social da contemporaneidade, mas a todos os modos de exploração de um grupo dominador, sobre outro mais vulnerável ou marginalizado. Ratifica-se, ainda, que este é o entendimento de empoderamento para esta tese.

No documento Open Empoderamento e planejamento para o . (páginas 85-90)