• Nenhum resultado encontrado

3. FRAUDE FISCAL

3.2. ENQUADRAMENTO NORMATIVO DA FRAUDE FISCAL STRICTO SENSU NO ÂMBITO DO DIREITO PENAL

O crime de fraude fiscal, do ponto de vista normativo, está previsto no artigo 103.º do RGIT. O n.º 1 do citado artigo não contém uma noção clara de fraude fiscal 289.Na verdade, o artigo

em causa prevê a reação criminal do crime de fraude fiscal e enumera as situações concretas que fazem despoletar o mesmo. Assim, segundo o teor do artigo “constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias” (itálico nosso).

289 Sobre o crime de fraude fiscal cfr. J. L. Saldanha Sanches, O combate à fraude fiscal e a defesa do contribuinte: dois objectivos inconciliáveis? in

Colóquio - Os efeitos da globalização na tributação do rendimento e da despesa, Administração Geral Tributária, Centro de Estudos e Apoio às Políticas Tributárias, 12 e 13 de Junho de 2000, pp. 457 e ss, Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4.ª edição, Lisboa, Áreas Editora, 2010, pp. 688 e ss, Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º 5, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2010, Nuno Pombo, A Fraude Fiscal: A Norma Incriminadora, a Simulação e outras Reflexões, Coimbra, Almedina, 2007 e A Fraude Fiscal: um contributo para a exegese da norma incriminadora, Relatório e Direito Fiscal, policopiado, Lisboa, UCP, 2003, Augusto Silva Dias, Os crimes de fraude fiscal e de abuso de confiança fiscal: alguns aspectos dogmáticos e político criminais, in CTF, n.º 394, Abril-Junho, 1999, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, O crime de fraude fiscal no novo Direito Penal Tributário Português (consideração sobre a factualidade típica e o concurso de infracções), in RPCC, n.º 6, 1996 e Paulo Sá Mesquita, A tutela penal das deduções e reembolsos indevidos de imposto: contributo para uma leitura da protecção dos interesses financeiros do Estado, pelos tipos de fraude fiscal e burla tributária, RMP, ano 23, n.º 91, Julho-Setembro, 2002. Do ponto de vista da jurisprudência, entre outros, cfr. acórdãos do TRP de 23 de fevereiro de 2005, processo n.º 0341594, de 22 de junho de 2005, processo n.º 0412101, de 8 de fevereiro de 2006, processo n.º 0515247, de 5 de abril de 2006, processo n.º 0542276, de 13 de fevereiro de 2010, processo n.º 229/06.8IDPRT.P1, acórdão do STJ de 17 de maio de 2007, processo n.º 12/07-5, acórdão do TRC de 11 de junho de 2008, processo n.º 53/06.8IDAVR.C1 e acórdão do TRL de 8 de fevereiro de 2006, processo n.º 1071/06-3, disponíveis em http://www.dgsi.pt.

131

Assim, o preceito prevê tão só alguns elementos que indiciam o que é o crime de fraude fiscal, nomeadamente: “condutas”, “ilegítimas”, “que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias”. Além disso, da leitura do artigo retiramos a ilação de que o legislador adotou uma conceção de caráter patrimonialista do bem jurídico tutelado, pois o fundamental no crime de fraude fiscal é a proteção da receita tributária, indispensável para garantir a satisfação de necessidades coletivas 290.

Ora, este enquadramento jurídico remete-nos para o âmbito do Direito Penal. Na verdade, o Direito Penal que constava do Código Penal era essencialmente, o que chamamos Direito Penal de matriz clássica, de justiça, comum, nuclear, geral ou de cunho liberal, que visava proteger bens jurídicos individuais. Contudo, com o evoluir da sociedade, foi surgindo um número diverso de bens jurídicos, considerados novos face aos tradicionais, e que impunham uma tutela especial, fora do código penal. Nesse sentido, surgiu o direito penal especial.

Assim, adentro deste direito penal especial cabem vários subtipos de direitos, a saber: direito penal económico stricto sensu, direito penal tributário, direito penal do ambiente, direito penal do consumo, direito penal da informação, etc. Normalmente, estes novos bens jurídicos são trans-individuais, supra-individuais, isto é, a sua titularidade pertence a um conjunto de indivíduos indistinto. Por exemplo: a burla é um tipo legal de crime próprio do Direito Penal clássico, porque protege o património de um individuo, ao passo que, a fraude fiscal é um tipo legal de crime próprio do Direito Penal secundário, próprio do Estado ou da função dos tributos ou dos deveres dos contribuintes, em que o titular não é o Ministério das Finanças, é sim um bem jurídico supra- individual, que afeta a todos e cuja titularidade é do Estado 291.

Como ensina FIGUEIREDO DIAS “ao lado dos bens jurídicos individuais ou dotados de referente individual e ao mesmo nível de exigência tutelar autónoma, existem autênticos bens jurídicos sociais, trans-individuais, transpessoais, colectivos (…)” (interpelação e itálico nosso) 292.

Portanto, a relação entre eles não é de supra infra-ordenação.

290 A propósito desta conceção patrimonialista do bem jurídico cfr. Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais. Análise Dogmática e Reflexão sobre a

Legitimidade de Discurso Criminalizador, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 68 e ss.

291 A propósito da distinção entre direito penal de justiça e direito penal secundário cfr: Figueiredo Dias, Para uma dogmática do Direito Penal

Secundário, in RLJ, n.º 3714, pp. 265 e ss. e, mais recentemente, o seu Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 135 e ss. Além disso, cfr. Figueiredo Dias e Costa Andrade, O crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Penal Tributário Português, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano VI, Fasc. 1.º, Janeiro/Março, 1996, pp. 80 e ss.

132

CAPÍTULO IV

MEDIDAS REATIVAS DO ESTADO AO FENÓMENO EVASIVO

1. ASPETOS GERAIS

Após termos traçado o quadro jurídico-normativo dos direitos fundamentais no capítulo II onde constatamos que só pelo facto do desencadeamento de um determinado procedimento, seja de derrogação do sigilo bancário, seja de inspeção, seja de avaliação indireta ocorre o conflito entre vários bens jurídicos com acolhimento constitucional, avançaremos para outro ponto de análise, mais precisamente averiguar quais os comportamentos do Estado Fiscal, do ordenamento jurídico para combater os comportamentos ilícitos dos contribuintes.

Na verdade, a evasão e fraude fiscal podem pôr em causa a sustentabilidade financeira do Estado, pelo que o mesmo, através dos seus diversos atores (v.g. legislador, Adiministração tributária), adotou mecanismos de auto-proteção. Veritas, as reações do ordenamento jurídico ao comportamento dos contribuintes implicam que os mecanismos de planeamento fiscal se modifiquem com prontidão no tempo. Ora, a esta conduta dos contribuintes alguns autores designaram de princípio ação-reação, maxime, para ilustrar as ações que os contribuintes adotam para evitar a sujeição ao imposto, a contra-reação do ordenamento jurídico (v.g. tipificar o facto tributário, alargar o tipo normativo, utilizar ficções jurídicas e presunções, criação e utilização de normas anti-abuso, etc), ao qual se segue uma nova ação dos contribuintes e assim sucessivamente dando origem a uma espiral sem fim nas palavras de RUBIO GUERRERO 293.

Nesse sentido, em Portugal podemos distinguir fundamentalmente dois tipos de reação que tem vindo a ser desenvolvidos:

(i) Ao nível da via legislativa; (ii) Ao nível da via administrativa.

O nosso discurso irá incidir, essencialmente, sobre a reação ao nível da via administrativa como referimos supra, pois é esse o nosso objeto de estudo 294. Contudo, não podemos deixar de

293 Cfr. J. J. Rubio Guerrero, Estudos sobre Fiscalidad Internacional y Comunitaria, Centro Internacional de Estudios Fiscales, Madrid, p. 687. Além

disso, cfr. Rui Duarte Morais, Imputação de Lucros de Sociedades Não residentes Sujeitas a um Regime Fiscal Privilegiado, Porto, Publicações Universidade Católica, 2005, p. 191.

294 Além das medidas de reação da Administração tributária no combate à evasão e fraude fiscal que referiremos infra, há ainda a mencionar outras

medidas de caráter preventivo e dissuasivo, nomeadamente a publicação da lista dos contribuintes faltosos, como forma de pressionar o contribuinte para regularizar a sua situação tributária; a cooperação entre a Polícia Judiciária e a Autoridade Tributária e Aduaneira (nova denominação dada pelo Decreto-Lei n.º 117/2011 de 15 de dezembro e Decreto-Lei n.º 118/2011 de 15 de dezembro de 2011) relativamente ao acesso mútuo às bases de

133

referir, ainda que brevitatis causa, as medidas de reação mais significativas ao nível legislativo no combate à evasão e fraude fiscal.