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3. O CONFLITO DE BENS JURÍDICOS CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS

3.4. PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA ECONÓMICA PRIVADA

O princípio em análise sofreu grandes transformações desde a sua origem até à atualidade. Assim, no Estado liberal, era impregnado do mais absoluto individualismo, acreditando- se que até o bem coletivo era fomentado a partir do plano individual, pois o indivíduo, na persecução egoística de seu interesse pessoal, seria conduzido por uma "mão invisível" no sentido da realização do interesse geral. Na verdade, segundo ADAM SMITH cada indivíduo tenta aplicar o seu capital de maneira a que tenha a maior poupança fiscal possível. Normalmente, o indivíduo não tem em vista a melhoria do interesse geral nem sabe em que medida o está a promover, procurando somente a sua própria segurança, o seu ganho pessoal. Aber, é conduzido por uma “mão invisível” à promoção de um fim que não fazia parte das suas intenções iniciais. Ora, na prossecução dos seus interesses, o indivíduo está, frequentemente, a beneficiar a sociedade de um modo mais eficaz do que quando pretende fazê-lo intencionalmente 124. Veritas, “Todo o homem —

escreve Adam Smith —, desde que não viole as leis da justiça, tem direito a lutar pelos seus interesses como melhor entender e a entrar em concorrência, com a sua indústria e capital, com os de qualquer outro homem, ou ordem de homens” (itálico nosso) 125.

Atualmente, este princípio encontra-se explicitamente condicionado em função do interesse geral. Trata-se de um típico conceito constitucional indeterminado, destinado a funcionar como fator de legitimação constitucional da intervenção legislativa na liberdade de iniciativa (obviamente

123 Cfr. Fernando Pérez Royo, Derecho Financiero y Tributario. Parte General, Vigésima edición, Pamplona, Thomson Reuters, 2010, p. 138. 124 Cfr. Adam Smith, Riqueza das Nações, I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, p. 758.

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sempre balizada pelo princípio da proporcionalidade), cuja densificação deve arrancar, primeiramente, das determinantes heterónomas fornecidas pela própria lei fundamental, sendo de destacar, de entre várias, as seguintes: aumento do bem-estar e da qualidade de vida do povo (v.g. artigos 9.º, alínea b), 64.º, n.º 3, alínea d) e 81.º, alíneas a) e b) da CRP); realização dos direitos dos trabalhadores, a começar pelo direito ao trabalho (artigo 58.º da CRP);subordinação do poder económico ao poder político (artigo 80.º, alínea b) da CRP); aumento da produção e plena utilização das forças produtivas (artigos 81.º, alíneas a) e c) e 88.º da CRP); crescimento equilibrado de todos os setores e regiões (artigo 81.º, alínea d) da CRP); a defesa do ambiente e utilização racional dos recursos naturais (artigos 66.º e 93.º, n.º 1, alínea d) da CRP), etc.

Por conseguinte, e como ensinam GOMES CANOTILHO “o compromisso constitucional da iniciativa privada com o interesse geral, embora não seja susceptível, de só por si, estabelecer deveres ou obrigações das empresas para com a colectividade, legitima seguramente a noção de «responsabilidade social» das empresas, consubstanciada em iniciativas em prol dos seus trabalhadores (obras sociais) e da colectividade em geral (apoio a escolas, museus, realizações culturais) ” (itálico nosso) 126.

Por outro lado, o princípio da iniciativa económica privada exige uma leitura em conformidade com a constituição económica da União Europeia, designadamente com as normas jurídicas referentes às liberdades fundamentais, maxime, a liberdade de circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento em todo o território comunitário e referentes ao direito da concorrência (v.g. artigos 49.º e ss, 63.º e ss e 101.º e ss do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).

Do ponto de vista normativo este princípio está previsto no artigo 61.º, n.º 1 da CRP. Segundo este artigo “1. A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral” (itálico nosso). Ora, este princípio

está também previsto na Contituição espanhola sob a designação de liberdade de empresa.

Segundo o artigo 38.º da CEsp “Se reconoce la libertad de empresa en el marco de la economía de

mercado. Los poderes públicos garantizan y protegen su ejercicio y la defensa de la productividad, de acuerdo con las exigencias de la economía general y, en su caso, de la planificación” (itálico nosso). Além disso, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia também prevê este princípio sob a mesma designação. Na verdade, segundo o artigo 16.º da Carta “É reconhecida a

126 Cfr. J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa - anotada, Artigos 1.º a 107.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp.

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liberdade de empresa, de acordo com o direito comunitário e as legislações e práticas nacionais” (itálico nosso).

Neste sentido, ao reconhecer a liberdade de iniciativa económica privada, a Constituição considera-a seguramente como um direito fundamental, embora sem a incluir diretamente entre os direitos, liberdades e garantias.

Porquanto, como defendem JOSÉ GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA a liberdade de iniciativa privada arroga um duplo sentido. Por um lado, “consiste na liberdade de iniciar uma atividade económica (liberdade de criação de empresa, liberdade de investimento, liberdade de estabelecimento” e, por outro lado, comporta “a liberdade de organização, gestão e atividade da empresa (liberdade de empresa, liberdade do empresário, liberdade empresarial). No primeiro sentido, trata-se de um direito pessoal (a exercer individual ou colectivamente); no segundo sentido é um direito institucional, um direito da empresa em si mesma” (itálico nosso) 127.

Ora, a liberdade a que os autores se referem materializa-se, por exemplo, nos seguintes atos: (i) na escolha da forma e organização da empresa, das heißt, numa empresa individual ou numa empresa societária; num estabelecimento estável ou sociedade afiliada; numa sociedade simples ou num grupo de sociedades ou num agrupamento complementar de empresas, etc.; (ii) na escolha do financiamento (v.g. autofinanciamento, através da não distribuição de resultados, em que temos sobretudo o investimento direto e a incorporação de reservas, heterofinanciamento, recurso a suprimentos, etc.); (iii) escolha do local da sede da empresa, afiliadas e estabelecimentos estáveis; (iv) escolha na política de reintegração e amortizações, etc 128.

Contudo, este princípio não é um direito absoluto, pelo que as vertentes supra referidas do direito de iniciativa económica privada podem ser objeto de limites ou restrições mais ou menos extensos. Por conseguinte, nesta matéria a fronteira tem claramente de se fixar na sua limitação quando do seu exercício resulte danos para a coletividade 129.

Pensemos por exemplo naqueles casos em que a Constituição veda à atividade privada a gestão de outras empresas da mesma natureza em determinados setores básicos (v.g. artigo 86.º, n.º 3 da CRP), ou quando estabelece

127 Cfr. J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa - anotada, Artigos 1.º a 107.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.

789.

128 Cfr. Casalta Nabais, Liberdade de gestão fiscal e dualismo na tributação das empresas, in Homenagem a José Guilherme Xavier de Basto,

Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 421.

129 Neste sentido, cfr. acórdão do TC n.º 249/90, processo n.º 102/89, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt. Acrescentam ainda os

juízes conselheiros que “se isto é assim no que toca ao direito de iniciativa económica privada há-de forçosamente sê-lo também quanto ao princípio da liberdade contratual ou da liberdade negocial, mero corolário daquele direito e apenas constitucionalmente protegido na estrita medida em que o seja a iniciativa económica privada” (negrito e itálico nosso).

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limites à liberdade de criação de empresas (v.g. limite do número de empresas em determinado setor, limite mínimo do investimento inicial necessário, limites de natureza ambiental, etc.).

Ora, apesar dos limites e restrições que possam ocorrer à liberdade de iniciativa económica, a regra nesta matéria deve ser essa mesma liberdade contratual ou negocial. Daher, qualquer tipo de limites ou restrições devem ser devidamente justificadas à luz do princípio da proporcionalidade, enquanto “meta-princípio”, previsto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP e sempre com respeito de um “núcleo essencial” que a lei não pode aniquilar, bem como obedecer à garantia institucional de um setor económico privado, nos termos do artigo 82.º, n.º 3 da CRP 130.

Por outro lado, a livre iniciativa económica impõe obrigações de cunho negativo e positivo para o Estado. Nesse sentido, as de perfil negativo relacionam-se com a não intervenção do Estado, salvo nos casos determinados na própria Constituição, criando-se e respeitando-se um espaço de autonomia da esfera privada, ao passo que as obrigações de perfil positivo impõem ao ente publico tomar medidas de modo a assegurar a própria existência desse âmbito privado, adotando medidas de estímulo à economia e ao desenvolvimento privado.