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3. O CONFLITO DE BENS JURÍDICOS CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS

3.2 PRINCÍPIO DA JUSTIÇA NA TRIBUTAÇÃO

3.2.3. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E PROTEÇÃO DA CONFIANÇA

O princípio da segurança jurídica lato sensu postula que a tributação será justa se for segura e antecipada. Ou seja, os destinatários de norma jurídica com alguma razoabilidade, previsibilidade, determinabilidade, compreensibilidade, certeza podem antecipar os seus efeitos (v.g. pagar impostos, entregar declarações, etc.). As normas jurídicas devem ser antecipadas e expetáveis no sentido de existir uma estabilidade das normas jurídicas, pelo que não é admissível uma mutação da ordem jurídica com a qual os contribuintes não possam contar.

O princípio da segurança jurídica não está explícito na CRP, mas pode ser retirado dos artigos 2.º da CRP e 103.º, n.º 3 da CRP 73. Ao nível internacional este princípio está previsto no

preâmbulo do PIDESC e do PIDCP. Ao nível europeu está previsto no preâmbulo e no artigo 36.º da CDFUE.

Veritas, como ensina GOMES CANOTILHO “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito” (itálico nosso) 74. Ora,“é quase intuitiva a ideia de que qualquer

sujeito cria expectativas e orienta as suas opções de vida de acordo com um esquema de

71 Cfr. Karl English, Einfuhrung in das Juristische Denken,tradução Portuguesade J. Baptista Machado, Introdução ao pensamento jurídico, Lisboa,

Fundação Calouste Gulbenkian, 9.ª ed., 2004, p. 173.

72 Cfr. Acórdão do TC n.º 765/95, processo n.º 134/94, disponível em http://www.tribunal constitucional.pt.

73 Cfr. Acórdão do TC n.º 70/92, processo n.º 86/90, consulta eletrónica em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ [27/03/2011]. 74 Cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2003, p.250.

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normalidade, antecipando riscos com base em determinadas situações que prevê poderem manter- se, e planificando pessoal, profissional e economicamente com base em dados que, com probabilidade, se repetirão. Por isso se pode afirmar que, de um ponto de vista subjectivo, a ideia fundamental a reter é a de que não devem ser permitidas alterações jurídicas com as quais, razoavelmente, os destinatários não podem contar e que introduziriam na respectiva esfera jurídica desequilíbrios desproporcionais, justificando-se por isso que seja reconhecida ao ordenamento normativo uma dimensão conservadora tendente a impedir a perturbação que a acção estadual imprevista poderia introduzir” (itálico nosso) 75.

Por conseguinte, os contribuintes ao planear a sua atividade económica, vão delinear um planeamento fiscal tendo em conta uma determinada situação jurídica, como por exemplo um benefício concedido a uma atividade ou setor situada no interior. Nesse sentido, não será admissível uma mutação da ordem jurídico-fiscal com a qual os contribuintes não possam contar e que pode trazer sérios prejuízos para a sua atividade empresarial, além de criar profundos problemas ao nível da adaptação para a atividade dos agentes económicos.

Ora, segundo GOMES CANOTILHO “Em geral considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos” (itálico nosso) 76. Assim, a segurança e proteção da confiança exigem: (i) fiabilidade, clareza,

racionalidade e transparência dos atos do poder; e (ii) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos.

Por seu turno, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA defende que “o princípio da protecção da confiança (Vertrauensschutz) vincula e limita os vários poderes Estaduais, exigindo de cada um

75 Cfr. Joaquim Freitas da Rocha, Direito pós-moderno, patologias normativas e protecção da confiança, disponível em

http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/JRocha10.pdf [23/07/2012].

76 Cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2003, p.250. Além disso, ALEXANDRA

COELHO MARTINS defende também estas duas componentes do princípio da segurança jurídica lato sensu. Cfr. Alexandra Coelho Martins, A Admissibilidade de uma Cláusula Geral Anti-Abuso em Sede de IVA, Cadernos IDEFF, n.º 7, Coimbra, Almedina, 2007, p. 36. Cumpre dizer que este princípio da segurança jurídica não é novo, ou seja, já foi enunciado em 1776 por ADAM SMITH como um dos três pilares da sua teoria. Cfr. Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, London, ed. Edwin Cannan, 5.ª edition, 1904, disponível em http://www.econlib.org/LIBRARY/Smith [21/03/2011].

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deles cuidados suplementares no momento de levarem à prática as diferentes tarefas que o Ordenamento lhes confia e consigna, impondo particularmente:

- que o criador normativo desenhe normas claras, determinadas e tendencialmente estáveis; - que o agente administrativo (Administração pública) fundamente adequadamente todos os seus actos, os leve convenientemente ao conhecimento dos seus destinatários, e não revogue os actos constitutivos de direitos; e

- que o aplicador normativo jurisdicional (Tribunal), além de também dever fundamentar de modo apropriado as suas decisões, deve igualmente construí-las tendo presente que elas farão caso julgado, devendo ainda respeitar as decisões dos Tribunais superiores e, sendo caso disso, os precedentes”. Acrescenta o mesmo autor que o princípio da proteção da confiança compreende “quer uma dimensão de eficácia positiva — exigindo clareza e transparência na actuação (aqui se interseccionando com o princípio da boa-fé) — quer uma dimensão de eficácia negativa — impondo a conservação de situações jurídicas (até eventualmente desconformes com o ordenamento, por inconstitucionalidade ou ilegalidade) —, mas que, em todo o caso, assume que a normalidade e a estabilidade são duas das traves estruturais sobre as quais deve assentar todo o Ordenamento” (negrito e itálico nosso) 77. Daher, os contribuintes tem o direito de poder confiar em que aos seus

atos de planemanto fiscal incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídico-tributárias alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas. Assim, devem ser acauteladas as convicções legítimas dos contribuintes de que as coisas se passarão de determinado modo e cuja violação se pode considerar atentatória da mais elementar ideia de justiça.

No domínio do Direito Tributário o princípio em análise colocasse com mais acuidade na medida em que “é de todos os ramos de Direito aquele em que a segurança jurídica assume a sua maior intensidade possível” (itálico nosso) 78.

Acrescenta ALBERTO XAVIER, embora em sentido ligeiramente diferente do admitido por GOMES CANOTILHO, que o princípo da segurança jurídica “desdobra-se num conteúdo formal, que é a estabilidade do Direito e um conteúdo material, que é a proteção da confiança. O princípio da proteção da confiança na lei fiscal traduz-se mais concretamente na susceptibilidade de previsão objectiva das suas situações particulares, das suas situações jurídicas, de tal modo que estes possam ter uma expectativa precisa dos seus direitos e deveres, dos benefícios que lhes serão

77 Cfr. Joaquim Freitas da Rocha, Direito pós-moderno, patologias normativas e protecção da confiança, disponível em

http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/JRocha10.pdf [23/07/2012].

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concedidos ou dos encargos que hajam de suportar” (negrito e itálico nosso). Assim, este princípio traduz-se “na possibilidade dada ao contribuinte de conhecer e computar os seus encargos tributários com base directa e exclusivamente na lei” (itálico nosso) 79. Deste modo, a segurança

jurídica na relação jurídico-tributária implica a possibilidade de o contribuinte prever as consequências jurídicas que advêm de um determinado comportamento, isto é, o direito dos destinatários das normas em conhece-las com antecedência e perceber o conteúdo das mesmas, bem como o seu alcance, mediante a publicidade das mesmas e a explicação do seu conteúdo. Logo, as normas devem ser claras, precisas e congruentes nas palavras de NUNO SÁ GOMES 80.

Por outro lado, a segurança da tributação obedece ao princípio do autoconsentimento, pelo que leva-nos ao entendimento clássico, de que os impostos devem ser criados por lei, ou seja, quer dizer que os tributos têm de ser criados por normas jurídicas. Segundo JOÃO RICARDO CATARINO o princípio do consentimento é um princípio autónomo em relação ao princípio da legalidade, entendendo o autor que este princípio do consentimento liga-se à ideia de que o poder constituinte pertence ao povo onde radica a soberania e a vontade popular 81. No caso dos

impostos o princípio do consentimento quer dizer que estes são criados por lei, pelo que significa que existe um princípio da legalidade e de acordo com o artigo 103.º, n.º 3 da CRP a retroatividade dos impostos é inadmissível.

Na verdade, o fator temporal é fundamental ao nível da segurança jurídica e deve ser tomado em conta pela nossa Constituição, como de facto o é. Já quanto às taxas estas podem ter natureza retroativa mas não sempre, ou seja, não o podem ser quando são injustificadas, inadmissíveis, intoleráveis e arbitrárias, pelo que se assim forem, são constitucionalmente ilegítimas. Finalmente, cumpre salientar que o princípio da não retroatividade só se aplica às matérias protegidas pela reserva de lei absoluta, ou seja, aos elementos fundamentais do imposto que estão no artigo 103.º, n.º 2 da CRP, que são: a incidência, a taxa, as garantias dos contribuintes e os benefícios fiscais. Nesse sentido, pode haver retroatividade em caso de normas procedimentais relativas à liquidação e cobrança 82.

79 Cfr. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, 1981, p. 118.

80 Cfr. Nuno Sá Gomes, Estudos sobre a segurança jurídica na tributação e as garantias dos contribuintes, in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 169, 1993,

p. 19. Além disso, cfr. Paloma Biglino Campos, La publicación de la ley, Madrid, 1993, pp. 26 e 27. Segundo a autora a publicação é, em primeiro lugar, uma garantia objetiva do próprio ordenamento, destinada a fixar, de forma autêntica e permanente, o conteúdo da própria norma.

81 Cfr. João Ricardo Catarino, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 430 e ss.

82 Quanto ao princípio do consentimento cfr. ainda João Ricardo Catarino e Vasco Branco Guimarães (coord.), Lições de Fiscalidade, Coimbra,

Almedina, 2012, pp. 48 e ss. Para mais desenvolvimentos sobre o princípio da segurança jurídica e protecção da confiança dos cidadãos cfr: Joaquim Freitas da Rocha, Direito pós-moderno, patologias normativas e protecção da confiança, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano VII, 2010 (especial), pp. 383 e ss. [também disponível em formato eletrónico em

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Antes de terminar análise deste princípio, deixamos, entretanto, uma questão em aberto à qual daremos só resposta infra aquando da análise da cláusula geral anti-abuso e que se prende com a seguinte questão: o que dizer da previsibilidade, determinabilidade, compreensibilidade que acompanha a segurança jurídica lato sensu face à inserção sistemática no ordenamento jurídico- tributário da cláusula geral anti-abuso (CGAA), prevista normativamente no artigo 38.º, n.º 2, da LGT? Diremos tão-somente, para já, que a inserção da mesma no agregado normativo deve ser entendida com algumas reservas pois poderá abrir a porta à insegurança jurídica para os contribuintes, dando uma grande margem de discricionariedade à AT, no sentido de esta poder tornar ineficaz uma determinada forma negocial, eleita pelo contribuinte como aquela que melhor satisfaz as suas expetativas, e de a substituir por outra forma negocial que pode ser mais onerosa do ponto de vista fiscal.