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3. O CONFLITO DE BENS JURÍDICOS CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS

3.5. PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE CONCORRÊNCIA

O quinto princípio que elegemos traduz-se no princípio da liberdade de concorrência, seja ao nível da União Europeia, seja ao nível do direito interno. Este é um corolário do princípio da livre iniciativa económica, constituindo mesmo a espinha dorsal da economia de mercado, sendo, por isso, também chamada de economia da concorrência 131. O princípo da liberdade de concorrência é

também um dos princípios gerais da atividade económica do Brasil, previsto no artigo 170.º, parágrafo IV, da Constituição Brasileira.

Do ponto de vista normativo, ao nível interno, este princípio está previsto no artigo 81.º, alínea f) da CRP. Segundo este artigo “Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social: (…) f) Assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral” (itálico nosso). Neste artigo temos uma manifestação do regime económico capitalista, ou seja, aquele em que prevalece o modo de produção capitalista, que se carateriza por uma propriedade privada dos meios de

130 Sobre esta matéria cfr. J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa – Anotada -Volume I – 4.ª edição revista, Artigos

1.º a 107.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 789 e ss.

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produção e sua gestão e controlo social tendo em vista interesses particulares que se consideram concordantes com o interesse da coletividade.

Ora, a expressão "concorrência" pode reportar-se a categorias distintas de normas: (i) umas que se destinam à proteção dos direitos das empresas individualmente consideradas (v.g. normas de proteção contra a concorrência desleal, que pode lesar os titulares de direitos de propriedade industrial e intelectual, mediante apropriação indevida de marcas, patentes e tecnologias, etc; (ii) a segunda categoria de normas visa disciplinar os procedimentos da Administração Pública na aquisição de bens e contratação de serviços, com o escopo de se obterem preços mais vantajosos; (iii) por último, temos o conjunto de normas cujo propósito é a proteção do direito que têm os agentes da produção e os consumidores de beneficiarem de uma política económica que lhes proporcione as vantagens decorrentes da organização racional do mercado. No nosso objeto de estudo temos em conta a terceira categoria.

Na verdade, o sistema económico baseado na iniciativa privada tem na economia de mercado a sua trave mestra. Além da liberdade de apropriação dos bens de produção, o funcionamento adequado do sistema pressupõe a capacidade individual dos agentes da produção e os consumidores tomarem as suas decisões económicas num ambiente de livre concorrência, que permita o movimento dos preços pelo mecanismo da oferta e da procura. Por conseguinte, o principal elemento de tal sistema é a empresa privada, que tem como fito principal a maximização do lucro.

Ora, ao Estado cabe por um lado, assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de forma a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, que constitui uma manifestação, densificação da economia de mercado e por outro lado criar mecanismos de defesa da concorrência, sendo que esses mesmos mecanismos de defesa são um dos princípios fundamentais da ordem jurídica europeia (v.g. artigos 101.º e ss do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)). Segundo o artigo 101.º, n.º 1 do TFUE “1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em: a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transacção;

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c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;

d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;

e) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos” (itálico nosso).

Assim, nos termos do artigo 102.º TFUE “é incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre os Estados-Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste.

Estas práticas abusivas podem, nomeadamente, consistir em:

a) Impor, de forma directa ou indirecta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transacção não equitativas;

b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos consumidores; c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência;

d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos” (itálico nosso).

Por conseguinte, incumbe ao Estado proibir as práticas restritivas da concorrência, reprimir os abusos de posição dominante, bem como a “impedir preventivamente, nas operações de concentração, a criação de situações de posição dominante que possam pôr em risco a concorrência (e não as posições dominantes em si mesmas) ” (itálico nosso) 132. Esta tarefa de

defesa da concorrência cabe hoje a uma autoridade independente, a Autoridade da Concorrência (AdC), criada em 2003, cuja “jurisdição se estende transversalmente a todas as atividades económicas, mesmo as que estão sob jurisdição de outras entidades reguladoras sectoriais

132 Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Volume I, 4.ª edição revista,

Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 969. Como bem referem os autores, o referido preceito constitucional também se aplica às entidades públicas empresariais, vulgo empresas públicas, que são pessoas coletivas de estatuto público criadas pelo Estado, fazendo parte da Administração indireta do Estado. Tal aplicação tem como fito evitar que as empresas que fazem parte do setor público empresarial sejam favorecidas pelo Estado relativamente às suas concorrentes de outros setores. Além disso, cfr: Decreto-Lei n.º 558/99, 17 de Dezembro que aprovou o regime jurídico do setor empresarial do Estado.

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(mercados financeiros, energia, telecomunicações, etc.) ” (itálico nosso) 133. Contudo, a proibição e

restrição da concorrência poderá entrar em conflito com o planeamento fiscal, quando essa proibição ou restrição não seja devidamente justificada à luz do princípio da proporcionalidade, enquanto “meta-princípio”, previsto no artigo 18.º, n.º 2 da CRP e sempre com respeito de um “núcleo essencial” que a lei não pode aniquilar.

133 Cfr. J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa - anotada, Artigos 1.º a 107.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.

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CAPÍTULO II

AS MEDIDAS DE REAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.DELIMITAÇÃO DO OBJETO

No nosso discurso, quando analisarmos algumas medidas de reação da AT à evasão e fraude fiscal, constataremos que poderá haver um conflito entre vários bens jurídicos constitucionalmente protegidos. Nesse sentido, neste capítulo, em termos de estrutura do raciocínio faremos num primeiro momento, um enquadramento dogmático dos aspetos mais relevantes do sistema constitucional português de direitos fundamentais para efeitos da nossa investigação, nomeadamente dos direitos, liberdades e garantias, onde demarcaremos em especial o direito fundamental ao planeamento fiscal e a possibilidade dos DLG sofrerem restrições. Num segundo momento, reduziremos um pouco o foco analítico, onde as considerações debruçar-se-ão particularmente sobre os bens jurídicos constitucionalmente protegidos sob a forma de direitos fundamentais em conflito e passíveis de sofrerem restrições, em particular o direito à reserva de intimidade da vida privada e familiar; o direito à inviolabilidade do domicílio e correspondência e dos outros meios privados de comunicação; o direito ao bom nome e reputação e o direito à justa repartição dos encargos públicos. Além disso, alguns destes direitos fundamentais poderão entrar em conflito com o interesse público da solidez e confiança na atividade bancária.

Por outro lado, delimitando negativamente o âmbito discursivo, ficarão fora da nossa análise considerações plenas sobre o regime jurídico geral e específico dos DLG e dos DESC, o processo de acumulação histórico dos direitos fundamentais. Além disso, também não abordaremos os meios de defesa dos direitos fundamentais, quer ao nível nacional, quer ao nível internacional 134.

Depois de fixado este quadro epistemológico avancemos na retórica discursiva.

134 A propósito destes três tópicos sobre os direitos fundamentais que ficarão de fora das nossas considerações cfr. Catarina Santos Botelho, A tutela

directa dos direitos fundamentais. Avanços e recuos na dinâmica garantística das justiças constitucional, administrativa e internacional, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 76 e ss; Isabel Moreira, A Solução dos Direitos, Liberdades e Garantias e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais na Constituição Portuguesa, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 33 e ss; José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 315 e ss e 359 e ss; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 491 e ss; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 4.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 400 e ss e O sistema português de direitos fundamentais-Brevíssima nota, in Revista de Direito Público, n.º 1, Janeiro/Junho de 2009, pp. 129 e ss. Além disso, quanto à génese histórica dos direitos fundamentais cfr. Reinhold Zippelius, Deustche Staatslehre, tradução portuguesa de Karin Praefke-Aires Coutinho, Teoria geral do Estado, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 418 e ss.

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