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Na realidade a cultura é um conjunto de interpretações que as pessoas compartilham e que, ao mesmo tempo, fornece os meios e as condições para que essas interpretações aconteçam (MACEDO, 2006, p. 25).

Na visão de Hall (1997) desde o século XX está em curso uma "revolução cultural", um complexo com dimensões humanas e não humanas, individuais e coletivas. Nesse prisma, o binômio cultura digital vem sendo apropriado por diferentes áreas da sociedade, inclusive a educação, desde o pós-guerra, 1945.

Mundialmente as tecnologias digitais vêm impactando sobremaneira os meios de produção, circulação e trocas culturais.

A internet mudou nossa realidade: a realidade de ser um membro da sociedade, um cidadão, um consumidor, um pensador, um falante, um

denunciante, [...], um amigo, um fã, um organizador, um fazedor. Um estudioso, um colega, um pai, um estudante (KOZINETS, 2014, p. 170).

Para muitos estudantes e professores estar online significa estar incluído, de algum modo, na propalada cibercultura (SILVA, 2008), a qual deriva do termo ciberespaço e

especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo ‘cibercultura’, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço (LÉVY, 1999, p. 17).

O sociólogo espanhol Manuel Castells enfatiza que não usar a internet para qualquer finalidade possível, como um agendamento de determinado serviço, compra de um produto ou realização de uma pesquisa, por exemplo, “[...] é sofrer uma das formas mais danosas de exclusão em nossa economia e em nossa cultura” (CASTELLS, 2003, p.8).

Com efeito, uma característica fundamental do que se consegue compreender por cultura digital são os modos como as experiências mediadas por tecnologias podem ser sentidas.

Em geral, pensa-se na prótese como algo ‘reparador’, por exemplo, se uma pessoa tem problemas visuais pode-se pensar nas lentes de contato como próteses, elas ‘reparam’ a visão. No caso de um cego é difícil dizer onde termina sua mão, nos dedos ou na bengala. Neste caso fica mais claro que a bengala não é apenas um objeto auxiliador da visão, mas um artefato que modifica a percepção de quem o usa. Usarei aqui a ideia de que a prótese vai além de reparar uma falta. Um sujeito equipado com uma prótese (seja qual for) pode fazer coisas que não faria sem ela (FRANT, 2002, p. 7, grifos nossos).

Essa carga semântica sugere que uma pessoa com baixíssima visão ou cega pode conhecer o sistema Braille de leitura e escrita e conseguir interagir com o mundo de determinados modos. Porém, ao utilizar um software, leitor de tela, deficientes visuais podem ampliar a sua condição de (des)encantamento com tecnologias. O professor-pesquisador-autor teve alunos no ensino médio que ao conhecerem esses softwares passaram a preterir o sistema Braille.

Nesse ensejo, faz-se necessário salientar algumas políticas públicas de amplitude nacional voltadas para a inclusão digital das pessoas. Ao longo das últimas décadas o governo federal tem implantado programas dessa natureza nas esferas federal, estadual e municipal, como: o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (PROINFO, 1997); o Programa Computador Portátil para Professores (PCPP, 2008); o Programa Banda Larga nas Escolas

(PBLE, 2008); o Programa Um Computador por Aluno (PROUCA, 2010); além de várias iniciativas voluntárias ou privadas, como projetos por parte de empresas. Contudo, diante do tratamento dado à educação brasileira nos últimos anos, como ocorre a implantação, a continuidade desses programas, bem como as suas avaliações e os seus aprimoramentos? Como se sabe os cortes ou reduzidos sistemas de financiamentos de programas e instituições educacionais brasileiras definem e condicionam em grande parte seu modus operandi e a maneira de pesquisar e, por conseguinte, de ensinar, aprender e viver em sociedade. Além disso, acredita-se que o desempenho do indivíduo em uma atividade pode ser um indicativo de motivação para que ele deseje ou não continuar.

Então, por que ou para que os indivíduos usam mídias? Quais são as suas necessidades atávicas ou primárias?

Caribé (2011) elaborou uma pirâmide de necessidades em “mídias sociais”, a qual está apresentada na figura 15.

Figura 15 - Pirâmide das Necessidades em Mídias Sociais.

Fonte: Caribé, 2011, p. 182.

Para esse autor, a inclusão digital tem como meta a construção do e‐cidadão, isto é, um indivíduo capaz de estabelecer diferentes formas de interações mediadas por recursos digitais: acesso à informação; produção cultural, científica e acadêmica; empreendedorismo; e construção de inteligência coletiva.

Pérez Gómez (2001, p. 17, grifos nossos) adverte que o foco da inclusão digital deve ultrapassar o acesso às mídias sociais, porque

viver uma cultura e dela participar supõe reinterpretá-la, reproduzi-la, assim como transformá-la. A cultura potencia tanto quanto limita, abre ao mesmo tempo em que restringe o horizonte de imaginação e prática dos que a vivem. Por outro lado, a natureza de cada cultura determina as possibilidades de criação e de desenvolvimento interno, de evolução ou estancamento, de autonomia ou dependência individual.

Castells (2009) procura caracterizar a cultura digital como o engendramento de diversas habilidades e competências:

1. Habilidade para comunicar ou mesclar qualquer produto baseado em uma linguagem comum digital;

2. Habilidade para comunicar desde o local até o global em tempo real e, vice-versa, para poder diluir o processo de interação;

3. Existência de múltiplas modalidades de comunicação;

4. Interconexão de todas as redes digitalizadas de bases de dados ou a realização do sonho do hipertexto [...];

5. Capacidade de reconfigurar todas as configurações criando um novo sentido nas diferentes camadas dos processos de comunicação;

6. Constituição gradual da mente coletiva pelo trabalho em rede, mediante um conjunto de cérebros [...]. Neste ponto, me refiro às conexões entre cérebros em rede e a mente coletiva (CASTELLS, 2009, s/p, tradução nossa).

Para o professor e romancista italiano Umberto Eco “conhecer é cortar, é selecionar” (ECO, 2011). E continua advertindo: “[...] a internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele”. Muitos estudantes utilizam o método “CTRL C” e “CTRL V”, isto é, copiar e colar. Então, se “conhecer é filtrar” não basta ao professor acreditar que sabe o tema da aula, prepará-la e ministrá-la para ser copiada.

Cabe a escola ensinar o aluno a lidar com a informação e não a consumi-la apenas. Por isso é necessário que os meios técnicos de informação estejam à disposição da escola; que a ciência e a tecnologia façam parte de seu cotidiano reflexivo (MORAN, 1992, p. 25).

Nas aulas podem emergir interesses por parte dos alunos que o professor não conseguiu imaginar previamente. Com o tempo o processo de “filtrar” pode ser revelador e enriquecedor.

[...]. Uma cultura escolar na era digital não passa apenas pela transformação do professor, mas de todos os envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. O aluno traz consigo um modelo de escola constituído, geralmente, a partir de experiências tradicionais e pouco flexíveis. Perceber o seu tempo de mudança e compreensão e ajudá-lo nesta mudança é fundamental para o sucesso de experiências didáticas alternativas ao ensino tradicional. As chamadas práticas inovadoras, se não compreendidas e partilhadas pelos alunos, correm o risco do aplicacionismo (THADEI, 2018, p. 95-96).

Não só a experiência digital exige a (re)formulação de perguntas. “[...] A tarefa básica da pedagogia é propiciar ecologias cognitivas para que as experiências de aprendizagem aconteçam de tal forma que estejam abertas a um máximo de interfaces possíveis com os mais variados campos do sentido” (ASSMANN, 2007, p. 108).

Nesta investigação, por exemplo, noções de cultura digital se apresentam, em um primeiro momento, em formato de texto, mediado por uma multiplicidade de elementos em ação: autores, leitores, tecnologias, interfaces, documentos e outros. Diante da multiperspectividade que esse binômio sugere é preciso tentar entender como TDIC têm influenciado o trabalho docente, e consequentemente o ato de produzir conhecimento pedagógico, na e sobre a ação docente.

Lemos (2019) salienta que o digital é o que possibilita controle, softwares e algoritmos atuam de forma ampla e integrada, coletando dados e induzindo ações: o que comprar? Sobre o que se deve conhecer? Com quem e como se relacionar? Quais lugares conhecer? Que comidas experimentar? Muitas são as sugestões do que fazer mediadas pela lógica capitalista.

Com essa visão mais inclusiva, o mesmo autor rechaça a primazia da posição antropocêntrica, das relações intersubjetivas e dos modos de comunicação engendrados pela cultura digital. As agências são diversas e estão distribuídas nas redes, uma vez que os humanos não têm o controle e nem são a fonte das ações.

Tem-se, assim, os pilares dessa cultura: a plataformização, a dataficação e a performatividade algorítmica (PDPA) (LEMOS, 2019, 2020a; HELMOND, 2015). Esses elementos formam uma engrenagem, cuja função é conectar, agrupar elementos para amplificar o alcance e o poder de ação.

Para esses autores, as plataformas digitais passaram a ser interfaces de passagens praticamente obrigatórias na vida quotidiana, na medida em que vão conseguindo oferecer serviços, produtos diversos e controlar hábitos de consumo. No caso do professor- pesquisador-autor, com o tempo sentiu-se compelido a usar o software em sala de aula para manter-se um professor necessário.

A dataficação consiste na transformação de todas as formas de ação dos usuários dessa plataforma, como curtir, visualizar, comentar em dados (LEMOS, 2020a) para engajar e obter lucros. O amplo domínio de rastreamento, coleta, processamento e a gestão da vida social na forma de dados operacionalizáveis a partir das plataformas digitais, inclusive do Facebook tem como desdobramentos: incrementar a participação política, com discursos de violência, como ocorreu nas eleições de 2018 no Brasil; fomentar a manipulação de sentimentos e/ou negação de fatos científicos, como a concepção de que a pandemia de COVID-19 seria uma gripezinha e uma história inventada pela mídia e algmas autoridades; e outros fins.

A performatividade algorítmica está relacionada ao uso de inteligência artificial para monitorar e agenciar os outros. Enquanto “navegam” pela plataforma ou leem postagens, os usuários também são “lidos” pelos algoritmos. Têm seus dados pessoais como e-mails e rotinas midiáticas usadas para fins empresariais, a partir de estratégias de “marketing sem permissão” ou outros fins. Diante da expressiva quantidade de postagens e supostos “amigos”, o Facebook criou um algoritmo por trás da página inicial da plataforma, para apresentar no “mural” publicações direcionadas em função das experiências dos usuários. A partir da suposta identificação de uma gama de seus interesses ou suas necessidades, os desenvolvedores do software podem explorar ferramentas e atualizações para agenciá-los. Dessa forma, fala-se na criação de “bolhas” mediadas pelas plataformas (LEMOS, 2019, 2020a).

Lemos (2020a) apregoa retrocessos da liberdade, da inovação e da criatividade arquitetados pela engrenagem PDPA. No caso do Facebook, o poder prescritivo da plataforma possibilita postagens diversas, inclusive de notícias falsas (fake news) para atender prioritariamente interesses imediatistas de políticos e de outros grupos. Em 2016 a Cambridge Analytica, empresa britânica de marketing político, usou a pedido do então candidato a presidente dos EUA, Donald Trump, algoritmos para prever o comportamento eleitoral de eleitores norte-americanos durante a sua campanha presidencial. E em 2017, a imprensa mundial noticiou que dados de mais de 50 milhões de usuários dessa plataforma haviam sido usados.

Na subseção 3.3.4, com base em Lemos (2013a, 2013b, 2020b) e Latour (2000, 2001, 2002, 2012) aprofunda-se essa perspectiva de agenciamentos e seus efeitos.

Depreende-se, então, que o binômio cultura digital é polissêmico, aberto e desafiador. Tanto que Pérez Gómez (2001, p. 15) ressalta: “conhecer a própria cultura é um empreendimento sem fim”.