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As entrevistas de hístória de vida são um tipo de experiência em que se trabalha basicamente com a memória Não cabe aqui uma reflexão

profunda sobre a memória e sua seletividade, mas convém lembrar

o que a prática demonstra, caso após caso: o depoente, consciente ou

inconscient.!ment.!, seleciona det.!rminados assuntos para se apro­ fundar e afasta outros da discussão_ Normalment.! longas, as entre­ vistas de história de vida levam tanto os entrevistadores - que desejam testar, confumar ou esclarecer fatos que permaneceram nublados - como o depoent.! - que tem interesse em reforçar ou explicar algumas idéias ou momentos de sua vida - a voltar inúme­ ras vezes aos mesmos temas ou acontecimentos. Mas assim como existem :recorrências, existem também silêncios e esquecimentos, que podem Ber voluntários ou não.

Ao analisar o depoimento do general Muricy, det.!cU!i vários núcleos recorrent.!s.

Os

que mais chamam at.!nção são as afumações de que o militar não discut.! política nos quartéis e os comentários e reflexões sobre o comunismo. Exatament.! por se tratar de um militar mais ligado à vida nos quartéis, a entrevista é toda voltada para a descrição da corporação, e conseqüentemente seus temas mais recor­ rent.!s estão ligados à visão de mundo militar. Daí a volta persist.!nt.! a explicações sobre a noção de chefia nas forças armadas. A impor­ tância do ser chefe para o militar aparece em todas as sessões de gravação e é vista dos ângulos mais variados.

A.C.-

O

que é isto, general? Explique para nós esta idéia que o persegue muito, nest.! depoimento, de que ser chefe é uma coisa muito precisa. Nem sempre significa ser inteligent.! ... A.M.-

O

chefe é um homem que reúne qualidades de tal ordem, que inspira confiança: é capaz de levar os subordinados até o sacrifício pela simples palavra; dá o exemplo; cria uma quali· dade de liderança absoluta; t.!m capacidade e discernimento; o subordinado compreende as razões dos seus atos; t.!m sem· pre uma atitude muito clara, muito precisa; e depois sint.!tiza:

isso e isso . •

O

homem só é chefe quando verdadeirament.! comanda. Nem precisa falar. Ele sabe o que cada um pensa. Conhece todos os seus homens e todos os seus homens o conhecem. Todos os seus homens lhe obedecem porque têm confiança no que fazem, não porque têm medo que ele os castigue.

O

chefe é um homem que comanda pelo exemplo, pela vontade e pela razão: nunca pelo temor.

L.H.-

Com isso ele não precisa ser brilhantíssimo, não precisa

ter a Escola de Comando e Estado· Maior ...

A.M.- Não! Eu já disse a vocês: o melhor

troupier

que conheci foi o Souza Carvalho. Não tinha Escola de Estado·Maior, mas era um líder.

A.C.- E foi o que o senhor disse do Mascarenhas também: sabia tomar decisões certas; sabia escolher.

A.M.- Não tenha dúvida. Mais tarde, vamos chegar ao caso do Machado Lopes, que não era líder. Era inteligente, era chefe, foi comandante e no caso da renúncia ele mostrou que não era líder. Mas isso é lá na frente.

A.C.- Nesse sentido o Canrobert era chefe?

A.M.- Era ... o Canrobert, o Alcio e o Dutra eram chefes.

(p.

195 e

196.)

Descrevendo seus comandantes na Escola Superior de Guerra diz o seguinte:

A.M.- Quanto às diferenças entre os dois comandos, era uma questão de estilo. Nós, do corpo permanente, sempre tivemos muita liberdade de ação, tanto com o Cordeiro quanto com o Juarez. Mas os dois temperamentos eram completamente diferentes.

L.H.-Como isso se manifestava? Na direção da escola? A.M.-

O

Cordeiro era um homem persuasivo, falava manso, convencendo mais do que mandando.

( O

Juarez também era cordato.) Por temperamento, o Cordeiro nunca se exaltava. A única vez que o vi sair ... foi naquela ocasião. No mais, ele sempre procurou unir e, principalmente, quando tinha que dizer as coisas, dizia-as de uma maneira elegante. O Juarez era mais impetuoso, tinha fala vibrante, batia na mesa, se exaltava, sua voz era muito alta. Então, às vezes, criava um certo impacto naqueles que não o conheciam de perto. Quanto à atuação sobre nós, com o Cordeiro havia muito mais enten· dimento de chefe com subordinado, em que ambos se respei­ tavani mutuamente e procuravam dar tudo em benefício da inatituição. Nunca tivemos grandes problemas com o coman­ do. (p. 250.)

Membro de uma corporação, ao reconstruir sua trajetória o general Muricy constroi também a de seu grupo. Sua história é a história do Exército. Outro fato recorrente da entrevista é que o general Muricy, quando fala na vida militar, e principalmente quan­ do descreve. os momentos de crise e as decieões graves que tomou como membro das forças armadas, raramente usa a primeira pessoa do singular. Constantemente aparece: • Nós, os militares ... • Muricy se apropria do passado do grupo e seleciona as lembranças de

maneira a minimizar os choques, as "tensões e os conflitos internos do Exército.s O único conflito incontornável, como já se viu em exemplos apresentados aqui, é com 08 comunistas. Já no período pós·64, um outro grupo foge ao "nós' corporativo: é o grupo que chama doe "radicais" . Nestes casos as críticas são violentas, e não há o menor cuidado em abrandar ou justificar atitudes.

A.M.- ( ... ) E o general Castelo, que era profund�ente demo· crático, procurou controlar os companheiros. Tinha muita força moral e procurou evitar os radicais. Há aquela frase célebre, que todo mundo conhece: sem 08 radicais não se faz a revolução, mas com os radicais não se pode construir uma democracia. E é verdade: há sempre os radicais. E mais tarde vamos ver isso nos problemas do AI·5 e da doença do Costa e Silva; são os radicais que surgem e que vêm até hoje.

A.C.- Exatamente. Isso dá a impressão de que a Revolução de 64 teve dois componentes, três talvez. Um era esse que o senhor citou há pouco, os radicais que queriam uma ditadura ... A.M.- Mas entre os elementos de responsabilidade, os mais graduados, esses radicais eram em número limitado.

A.C.- Mas eu acho que mesmo aí havia uma certa divisão, que foi se aprofundando. Outro componente era daqueles como o general Castelo, que eram civilistas, no sentido de pensar em devolver o poder aos civis ...

A.M.- Mas a maioria pensava assim. Mas havia também os que queriam o governo radical: o Manso Albuquerque Lima, que morreu agora; o Augusto César Aragão; outros que estão na reserva; o grupo dos radicais, ligados a mim, inclusive. Aqueles homens com quem eu vim falar naquela ocasião em que houve o choque do Castelo com o Costa e Silva eram todos radicais.

A.C.- Eles estavam em posição de comando importante? A.M.- Não. Não estavam e por isso mesmo não puderam impor as suas idéias. Mas deram problemas internos no Exército. Depois vamos ver, principalmente na questão da doença do Costa e Silva. (p. 609.)

Durante a entrevista, o general Muricy não só estava rememo­ rando e avaliando seu passado como assumindo a postura de quem está transmitindo uma mensagem p8l"a o futuro, uma vez que tinha consciência de que seu depoimento estava sendo gravado para fazer parte de um acervo documental. Isto fez com que selecionasse o que

queria que ficasse para a posteridade e abandonasse o que conside­ rava de menor interesse, resistindo, mesmo, a falar sobre determi­ nados assuntos. Assim, por iniciativa própria, descreveu o atentado terrorista ocorrido no aeroporto dos Guararapes, em Recife, durante o governo Castelo Branco, considerado um ato terrorista de esquerda, alongando-se em detalhes e em comentários violentamente críticos. Mas quando, já nos últimos dias da gravação de seu depoimento, uma das entrevistadoras levantou o tema do atentado do Riocentro, consi­ derado um ato terrorista de direita envolvendo as forças armadas, resistiu ao assunto.

A.M . ...:.... Mas então, se não me engano, em 1966 deu-se o episódio de Guararapes. ( ... ) Era um Brasil calmo, onde ainda não tinha havido um caso de terrorismo. ( ... ) Depois a coisa mudou. E eu, , por circunstâncias, assisti aos dois primeiros casos de terro­

rismo no Brasil. ( ... ) Uma coisa trágica! Realmente, o terroris­ ta é o maior dos criminosos, porque, além do mais, é covarde.

É

covarde porquê não se tem como encontrá-lo. ( ... ) Quando a gente vê, como eu vi ali no aeroporto de Guararapes, compa­ nheiros feridos, o almirante morto, o Régis segurando os intestinos, gente monendo, nessa hora não se sabe que reação teria se pegasse um terrorista.

É

impossível. Porque isso repugna de tal maneira que a reação é violenta. Depois a gente .tem que ficar se acalmando, raciocinando. (p. 579, 580 e 586.) Já na entrevista gravada no dia 4 de maio de 1981 lemos o seguinte:

A.M. - Ainda ontem, numa reunião em que eu estive, encontrei o general Santa Cruz, que me lembrou um episódio em que ele 10i lá me pedir para dotar os pára-quedistas dos oficiais neces­

sários.

A.C.

- O

senhor está se referindo às bodas de ouro do general Médici?

A.M. - Ontem, nas bodas de ouro do general Médici. Aliás foi uma grande festa de confraternização de três governos: ho­ mens de três administrações, todos unidos, num ambiente de camaradagem como raramente eu vi. E tive a oportunidade, ontem, de rever talvez uns oitenta ou cem amigos que eu não via há muito tempo. Cansei de falar.

A.C. - Falou-se muito do atentado?

A.C.

-A

informação da televisão, ontem,

foi

de que se falou

muito sobre o atentado do Riocentro, no sentido de combate,

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