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Epistemologia Construcionista

No documento QUANDO ENGENHEIROS TORNAM-SE PROFESSORES (páginas 67-72)

3.1 PROFISSIONAL REFLEXIVO, UMA ESPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA

3.1.4 Epistemologia Construcionista

Schön define prática profissional como:

o domínio de uma comunidade de profissionais que compartilham, nos termos de John Dewey, as tradições de uma vocação. Eles compartilham convenções de ação que incluem meios, linguagens e ferramentas distintivas e operam dentro de tipos específicos de ambientes institucionais [...]. Suas práticas são estruturadas em termos de tipos particulares de unidades de atividade [...] e eles estão social e institucionalmente padronizados, de forma a apresentar ocorrências repetidas de tipos particulares de situações. Uma ‘prática’ é feita de fragmentos de atividade, divisíveis em tipos mais ou menos familiares, cada um dos quais sendo visto como vocação para o exercício de certo tipo de conhecimento.139

Os sujeitos desta pesquisa compartilham as tradições vocacionais da engenharia e da docência na educação superior, talvez por isso tendem a desenvolver as mesmas práticas.

A reflexão-na-ação fundamenta-se em uma visão construcionista da realidade, contrária à racionalidade técnica que se baseia em uma visão objetivista da mesma.140 “Na visão construcionista, nossas visões, apreciações e crenças estão enraizadas em mundos construídos por nós mesmos, que viemos a aceitar como realidade.”141 Comunidades de profissionais estão continuamente engajadas em uma visão de mundo142 e, de acordo com Schön,

Eles estão em transação com seus mundos práticos, concebendo os problemas que surgem em situações práticas e moldando as situações para que sirvam nas concepções, concebendo seus papéis e construindo situações práticas que tornem operacionais os papéis que lhes cabem na concepção.143

Essa idéia de Schön pressupõe um processo dinâmico visando à adaptabilidade dos indivíduos aos seus contextos profissionais.

Schön propõe um caminho para o aprendizado, com a reflexão-na-ação:

Talvez possamos aprender com a reflexão-na-ação, aprendendo primeiro a reconhecer e aplicar regras gerais, fatos e operações-padrão; em seguida, a raciocinar a partir das regras gerais até casos problemáticos, de formas características daquela profissão, e somente, então, desenvolver e testar novas formas de compreensão e ação, em que categorias familiares e maneiras de pensar falham.144 139 SCHÖN, 2000, p. 36. 140 Ibid. 141 Ibid., p. 39. 142 GOODMAN, apud SCHÖN, 2000. 143 SCHÖN, 2000, p. 39. 144 Ibid., p. 41.

Esta proposta mostra que não se trata de uma reflexão qualquer, ou seja, da reflexão que é inerente ao ser humano, mas de uma reflexão que exige regras, operações-padrão, enfim, exige uma sistematização. Schön sugere duas questões como eixo do processo fundamental da reflexão-na-ação:

1. Quando o profissional leva a sério a singularidade da situação em questão, de que forma ele utiliza a experiência que acumulou até então em sua prática? Quando ele não pode aplicar categorias da teoria e da técnica que lhe são familiares, como ele aplica o conhecimento anterior à invenção de novas concepções, teorias ou estratégias de ação?

2. Reflexão-na-ação é um tipo de experimentação. Porém, as situações práticas são notoriamente resistentes a experimentos controlados. Como o profissional escapa dos limites práticos do experimento controlado, ou os compensa? Em que sentido há rigor, se é que há algum, em sua experimentação?145

A exploração dessas questões leva a uma concepção de reflexão-na-ação como uma epistemologia da prática.

A reflexão-na-ação implica em uma conversação reflexiva com a situação e, como já foi falado, envolve, necessariamente, experimento. “No sentido mais genérico, experimentar é agir para ver o que deriva da ação.”146 Este processo envolve a adoção de hipóteses que serão confirmadas ou refutadas, como ocorre em uma investigação científica.

De acordo com Schön, a epistemologia da prática positivista, ou seja, a racionalidade técnica, baseia-se em três dicotomias: a separação entre meios e fins, entre pesquisa e prática e entre o fazer e o conhecer. Na reflexão-na-ação tais dicotomias não se sustentam, pois “a prática assemelha-se à pesquisa. Meios e fins são concebidos de forma interdependente em seu problema. E sua investigação é uma transação com a situação, na qual conhecer e fazer são inseparáveis.”147 Schön afirma também que os valores de controle, o distanciamento e objetividade, características centrais da racionalidade técnica, assumem novos significados na reflexão-na-ação.148 O ritmo da ação pode ser variado à vontade. O profissional pode diminuí-lo para pensar sobre o que está fazendo.149

Schön cita o paradoxo de Mênon para ilustrar a importância do conhecimento tácito e do fazer para aprender:

Nele, enquanto Sócrates induz Mênon a admitir que ele não tem a menor idéia do que é a virtude, Mênon explode com a seguinte questão:

145 SCHÖN, 2000, p. 61. 146 Ibid., p. 64. 147 Ibid., p. 70. 148 Ibid. 149 Ibid.

Mas como procurarás por algo que nem ao menos sabes o que é? Como determinarás que algo que não conheces é o objeto de sua busca? Colocando de outra forma, mesmo que esbarres nisso, como saberás que o que encontraste é aquilo que não conhecias?150

Para Schön, “o paradoxo de aprender uma competência realmente nova é este: um estudante não pode inicialmente entender o que precisa aprender; ele pode aprendê-lo somente educando a si mesmo e só pode educar-se começando a fazer o que ainda não entende.”151

Schön, cita a Arquitetura e o seu ensino como exemplo de uma epistemologia da prática diferenciada e explica porque:

A arquitetura cristalizou-se como profissão antes do surgimento da racionalidade técnica e carrega consigo as sementes de uma visão anterior de conhecimento profissional. Talvez por essa razão, ela ocupe um lugar marginal na universidade contemporânea. Sua bimodalidade e sua dependência implícita em uma outra epistemologia da prática deixam a universidade desconfortável.152

Quero lembrar aqui da Academia Real de Arquitetura da França, citada anteriormente neste trabalho. Ela foi fundada no século XVII, portanto, antes da revolução industrial e, por isso, não funcionava segundo o modelo positivista.

Nos cursos de arquitetura, normalmente “Os ateliês de projetos baseiam-se em um tipo particular de aprender fazendo. Pede-se à estudante que comece o design antes que ela saiba o que isso quer dizer.”153 Da mesma forma, os engenheiros-professores começam a exercer a atividade docente. Quando estes começam a dar aulas, podem até achar que sabem como fazê- lo, mas como podem saber sobre algo que nunca vivenciaram?

Schön lembra que:

Aprendemos habilidades físicas, jogos, maneiras de trabalhar, práticas da vida cotidiana, em parte, imitando os outros que já são bons nessas atividades. Podemos não gostar da idéia de imitação [...], mas estamos continuamente fazendo isso – e geralmente sem sentir que estamos fazendo qualquer coisa de especial. A obviedade da imitação dissolve-se, entretanto, quando a examinamos mais de perto.154

De acordo com o pensamento de Schön, a imitação é um processo de construção seletiva. “Seu processo construtivo é uma forma de reflexão-na-ação - uma investigação imediata na qual o imitador constrói e testa, em suas próprias ações, as características 150 PLATÃO, apud SCHÖN, 2000, p. 73. 151 SCHÖN, 2000, p. 79. 152 Ibid., p. 44. 153 Ibid., p. 97. 154 Ibid., p. 90.

essenciais da ação que observou.”155 O próprio ato de copiar pode levar a uma visão diferente do que é copiado. Quando uma pessoa observa o processo de ação, ela reflete-na-ação tanto sobre o processo que observou quanto sobre suas tentativas de reproduzi-lo. “‘O que ele está realmente fazendo?’ e, ao tentar fazer o que ele fez, pergunto, ‘O que estou realmente fazendo?’.”156 Sendo assim, a imitação, para ser reflexão-na-ação, não pode ser cega e mecânica, mas, ao contrário, deve fazer o que o instrutor está fazendo, refletindo, ao mesmo tempo, sobre o que ele faz.

A reflexão-na-ação implica em experimentar as conseqüências das ações, fazer inferências que serão testadas através do experimento e, assim, verificar se a sua maneira de conceber a situação é apropriada. Tomar consciência do que já sabe, ou seja, partir da reflexão sobre sua própria experiência acumulada; criticar este conhecimento; confrontar os vários tipos de conhecimento; modificar continuamente as ações imperfeitas; examinar criticamente os próprios raciocínios.

Schön fala que determinados profissionais, entre eles os engenheiros e os professores, lidam frequentemente com situações de incerteza, de conflito, e aponta como os profissionais capacitados procedem nessas situações:

As pessoas que exercem profissões como direito, administração, ensino e engenharia, lidam freqüentemente com a incerteza, com a singularidade e com o conflito. As situações fora da rotina que surgem durante a prática são, pelo menos em parte, indeterminadas e devem ser tornadas coerentes de alguma forma. Profissionais capacitados aprendem a conduzir experimentos sobre a concepção nos quais eles impõem um tipo de coerência a situações caóticas e, por conseguinte, descobrem conseqüências e implicações das concepções que escolheram. De tempos em tempos, seus esforços para dar ordem a uma situação provocam resultados inesperados, respostas que dão à situação um novo significado. Eles escutam e refazem sua concepção do problema. É essa junção de concepção do problema, experimentos imediatos, detecção de conseqüências e implicações, resposta à situação e resposta à resposta que constitui uma conversação reflexiva com os materiais de uma situação, o talento artístico com caráter de design de uma prática profissional.157

A reflexão-na-ação exige a mudança de uma visão da prática objetivista para uma visão construcionista. “Para que vejamos a advocacia, a administração, o ensino ou a medicina clínica como experimentação, às vezes, como conversação reflexiva com os materiais da situação – devemos adotar um ponto de vista construcionista sobre a situação.”158

155 SCHÖN, 2000, p. 91. 156 Ibid., p. 92. 157 Ibid., p. 123-124. 158 SCHÖN, 2000, p. 163.

Schön fala que a concepção de competência profissional pode ser segundo uma visão objetivista ou segundo uma visão construcionista. Procura mostrar as diferenças entre estes dois enfoques, dizendo:

De acordo com a visão objetivista de competência profissional como especialização técnica, os profissionais especializados têm modelos precisos de seus objetos especiais e técnicas poderosas para sua manipulação, de forma a atingir finalidades sancionadas profissionalmente. Contudo, a visão construcionista de uma profissão leva-nos a ver seus profissionais como detentores de uma visão de mundo cujos apetrechos os fazem vislumbrar a coerência e as ferramentas com as quais impor suas imagens em situações de suas práticas. Um profissional é, nesta visão, assim como o artista, um construtor de coisas.159

Dewey e Bentley também apontam diferenças importantes entre as visões objetivista e construcionista:

Na visão objetivista, a verdade das crenças pode ser testada em sua conformidade com a realidade, independentemente da maneira de qualquer pessoa vê-la. Na visão construcionista, as percepções e as crenças estão enraizadas em mundos construídos por nos mesmos, que aceitamos como realidade. Aquele que conhece está, nas palavras de John Dewey, em transação com aquilo que é conhecido, ele é, de forma relativamente literal, um construtor das coisas que sabe.160

De acordo com essas concepções, este trabalho tem uma visão construcionista, uma vez que se baseia no princípio de que as crenças dos engenheiros-professores originam-se das suas vivências e essas são construtoras das suas visões de mundo.

Mais uma vez Schön chama a atenção para o fato de que a reflexão-na-ação não é compatível com o paradigma positivista e que no modelo de construção de conhecimentos que ele defende, a ciência, a arte e a prática se aproximam mais:

A racionalidade técnica, uma epistemologia objetivista da prática, está na base do surgimento da universidade moderna, voltada para a pesquisa, no final do século XIX e no início do século XX. A prática era vista como a solução instrumental de problemas, profissional quando baseada em conhecimento sistemático, de preferência científico. [...] Na visão construcionista, a intuição do profissional para os materiais, os julgamentos imediatos e as improvisações – as formas de sua reflexão-na-ação – são essenciais para a competência profissional. [...] Na verdade, quando desaparece o objetivismo, a ciência, a arte e a prática parecem estar em barcos epistemológicos similares, se não idênticos.161

159 SCHÖN, 2000, p. 163. 160

DEWEY E BENTLEY, apud SCHÖN, 2000, p. 166. 161 SCHÖN, 2000, p.167.

Schön adverte que “Nas escolas o ‘saber que’ tende a assumir prioridade em relação ao ‘saber como’, e o ‘saber como’, quando aparece, toma a forma de técnica baseada na ciência.”162 No entanto, entende que deve haver conexão entre o conhecimento e a reflexão- na-ação com as teorias e técnicas ensinadas como conhecimento profissional nas disciplinas acadêmicas.163 No caso dos engenheiros-professores, essa conexão não é possível uma vez que eles não tiveram acesso às teorias e técnicas da área educacional, o que torna incompleto o processo de construção dos saberes docentes através da reflexão-na-ação.

A idéia de profissional reflexivo pode a princípio remeter à estática, à inércia, ou apenas à ação de observar e pensar sobre o observado, mas Schön procura mostrar que é bem mais que isso quando afirma que,

Um profissional reflexivo deve estar atento aos padrões de fenômenos, ser capaz de descrever o que observa, estar inclinado a propor modelos ousados e, às vezes, radicalmente simplificados de experiência e ser engenhoso ao propor formas de testá-los que sejam compatíveis com os limites de um ambiente de ação.164

Schön situa a reflexão sobre a reflexão-na-ação no âmbito da fenomenologia da prática:

“A fenomenologia da prática – a reflexão sobre a reflexão-na-ação da prática – deveria entrar no ensino prático por meio do estudo da vida organizacional dos profissionais. Aqui, a perspectiva construcionista é de importância crucial, já que os fenômenos da prática em organizações são determinados, principalmente, pelos tipos de realidades que os indivíduos criam para eles próprios, as formas com que concebem e dão forma a seus mundos – e o que acontece quando pessoas com maneiras diversas de conceber a realidade entram em rota de colisão.”165

No documento QUANDO ENGENHEIROS TORNAM-SE PROFESSORES (páginas 67-72)