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“Aí tentei duas, três vezes, não consegui, quando eu soube da verdade, e essa parte eu procuro esconder.”

O professor Alceu, mesmo tendo desenvolvido uma carreira com êxito na área de Farmácia, declara que teve uma experiência frustrada: três tentativas de passar no vestibular para Medicina na UFC. Este ocorrido parece ter sido um caso de racismo silenciado e velado dentro da universidade.

Termino o Ginásio, passei, fiz o art. 91, passei, e em seguida assim que passei fiz o científico no Colégio São João. Eu me preparei para medicina. Eu já estudava para fazer o científico, mas com olho na medicina. Pois bem passei esses três anos de preparação do científico sempre me preparando para fazer o vestibular para medicina nesses cursos preparatórios.

O professor não deixou muito claro estas afirmações sobre as três tentativas frustradas de passar para o curso de Medicina, mas é um tema recorrente em toda a sua narrativa. Ele fica um tanto constrangido de falar todos os detalhes, e sua esposa que está presente na entrevista também ficava visivelmente apreensiva. Pensamos que ela temia que ele se emocionasse, pois não estava bem de saúde. No entanto, ele demonstrou querer prosseguir com a narrativa:

parte eu procuro esconder de você, mas você é perspicaz, e vai entender porque eu realmente me acanhei. Mas eu vou te dizer, eu me acanho até hoje, que eu nem preciso mais!

Ele parece à vontade para falar, mas em alguns momentos, faz pausas prolongadas pela dificuldade de respirar, e também quando a memória falha. Outras vezes dá para perceber que há passagens de sua vida que ele prefere não entrar nas minúcias, como é o caso da fala acima. Mesmo assim prossegue:

Aí então eu fiz o vestibular a primeira vez, não consegui passar, primeira, segunda, terceira vez não consegui passar. Já tava criando um complexo, aí que começou uma pessoa a dizer: “Rapaz, faça Farmácia, faça Farmácia, faça Farmácia!” Claro, foi quando eu soube que um professor, não digo meu amigo, absolutamente! Me contaram que esse professor, conversando numa roda de família com um colega meu de aeronáutica, que até foi ministro! Não, foi Secretário de Saúde, exato, Secretário de Saúde, como é o nome dele meu Deus? Ele estava nessa família conversando e disse: “Tem um rapaz da Base, muito competente!” O rapaz da Base era eu. “Esse rapaz não vai passar nunca! Ele não vai entrar na faculdade porque é um princípio nosso, é princípio nosso!” Ele era da banca examinadora, e ele falou: “É princípio nosso não aprová-lo!”

Nesse momento ficamos um pouco em silêncio, nós três: eu, ele, e sua esposa. Preferimos não insistir imediatamente, e só voltar a insistir nos detalhes em outra ocasião. Ao que parece, para o tipo de vestibular da época, no qual eram realizadas entrevistas com os candidatos, foi possível barrar seu ingresso como negro na Faculdade de Medicina. Ele tomou a iniciativa de dizer que a partir daí ele iria falar de coisas boas. E começa a falar sobre situações em que considera ter sido reconhecido nos trabalhos que desenvolveu na UFC: “Acontece o seguinte. Eu estava dando aula e o professor Darcy Correia me viu dando aula e falou: ‘Vamos ter que colocar esse camarada aqui dentro, vai para minha cadeira de Física Aplicada à Farmácia’.”

Para ele se configurou um avanço na sua carreira profissional o fato de um professor bem conceituado dentro da Faculdade de Farmácia, tê-lo chamado para trabalhar junto com ele em sua disciplina, em sua “cadeira”, como se chamava na época.

Em outra ocasião, o professor conta que Dr. Wandick Ponte, um médico psiquiatra muito famoso na época, também lhe ajudou muito, lhe indicando outros caminhos de como um rapaz pobre poderia escolher profissões mais rentáveis. Podemos perceber que a forma de ascensão no espaço da universidade se dava em torno de amizades que pudessem abrir caminhos, ou seja, da maneira como o professor relata, parecia não haver uma política que contemplasse outra forma de promoção na carreira docente.

Wandick Ponte! Era Wandick Ponte. Wandick então ele me viu, conversou comigo, e eu fiquei lá na sala dele enquanto eu dava as aulas durante um bocado de dias. Enquanto eu dava minhas aulas de preparatória para o vestibular de Farmácia. De certo modo o Wandick Ponte começou a me jogar para cima, muito mesmo! Ele disse: “Olha, se você conseguir passar em concurso, você se inscreve e não deixe de ver a Cibernética, que é a especialidade do futuro e você vai até esquecer de ser professor. Pra dinheiro é a cibernética atualmente” – ele falou. E eu disse: “É professor, vamos ver.”

Ele conta também que no momento de preparação para concorrer a uma vaga de professor na UFC, intimidou os demais concorrentes porque nesse momento ele já era reconhecido como alguém muito preparado, até muito além do que ele próprio se considerava:

Aí disseram: “Ah! Esse camarada aí, ninguém vai concorrer com ele, não.” Aí começaram a exagerar sobre a minha competência: “Aí não tem peixe. Ele dá aula com muita classe! Esse aí é um sujeito que quando começa a dar aula todo mundo para pra ficar olhando pra ele, porque ele domina muito mesmo o assunto!”

Em seguida ele lembra que havia um professor que sempre demonstrou declaradamente não gostar dele, e que em muitas situações procurou dificultar a sua vida como pessoa e como profissional dentro da UFC, mas que até hoje ele mesmo não sabe se esta atitude desse professor se configurava como racismo ou simplesmente uma indisposição com ele. O que podemos depreender é que muitas vezes o preconceito e o racismo se escondem por traz de muitas atitudes que não ficam muito claras para quem os sofre, conforme se pode observar na fala do entrevistado:

Então eu me posicionando daquela maneira, eu fiz o concurso. Fiz o concurso, passei e fui bem recepcionado, fui bem recebido. Tem apenas um professor que até hoje não gosta de mim. Dizem que é racismo, outros dizem que não.

Os trabalhos na Farmácia Escola desde a sua implantação e todos os outros que foram desenvolvidos nesta experiência parece terem sido motivo de maior satisfação para o professor enquanto profissional da área. Ele fala disso com muito respeito e carinho. Parece ter algum leve ressentimento por seu nome não constar nas placas que hoje identificam os seus fundadores, mas chamou a isso de “coisas pequenas”:

A Farmácia Escola que eu também tomei parte é um “foco luminoso” dentro da Faculdade de Farmácia. Eu ajudei o professor Eudes Apoliano Gomes a implantar a Farmácia Escola. Nós dois fizemos. Ele com maior proeminência, ele é um grande sujeito, muito meu amigo. Mas não tem o meu nome, mas não tem problema Auxiliadora, porque eu já passei por

essas coisas pequenas, então onde você ver homenagem ao professor Eudes, é muito merecido, e eu tenho a primeira placa, e essa primeira placa me deu um incentivo muito grande na vida. No ano seguinte, outra placa, no ano seguinte, outra placa. Eu sei que são cinco, se não me engano cinco ou seis placas em anos seguidos. Se puder tirar fotografia, eu vou lhe mostrar.

(Grifamos).

Ele conta com muita alegria o fato de alguns ex-alunos o reconhecerem na rua e lhe agradecerem com muito respeito pelo incentivo que ele lhes proporcionou em sua carreira profissional. Nesse mesmo sentido ele fala de um acontecimento anual do qual ele sempre participa como convidado especial:

Agora eu sempre dou uma aula inaugural. Eu fui convidado para dar uma aula dessas, e uns dois ou três alunos que iam desistir de Farmácia me falaram que iam continuar pelo estímulo que eu dei nessa aula inaugural, por minha causa, pela maneira como eu explicava, sentiam o que era a Farmácia, o significado de tudo.