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Mulher negra na Medicina: mulher negra fora de lugar?

“Fiz várias tentativas pra manter a faculdade. Comecei a trabalhar numa fábrica, tive que deixar a fábrica.”

A professora Melissa tem atualmente 78 anos e diz que só pôde ingressar na universidade aos 25 anos porque a condição de pobreza familiar sempre a obrigou a trabalhar para custear sua própria vida e seus estudos. Desde muito cedo começou a trabalhar, em condições muitas vezes muito difíceis para conciliar trabalho e estudos. Ela precisou utilizar estratégias que considerou uma “loucura” para continuar estudando medicina. Este curso, como outros tantos cursos ditos de maior prestígio na universidade, já começa de início eliminando aqueles que não têm condições financeiras para custeá-lo, pois funcionam em tempo integral, além dos livros muito caros.

Eu fiz vestibular a primeira vez e não passei, mas tentei a segunda vez e foi aí que eu passei, em 1956. Aí foi outra luta porque a faculdade era tempo integral, e na Faculdade de Medicina você não pode ter, não tem condições de ter outra atividade paralela, e eu precisava. Meus pais já estavam em Fortaleza e eu precisava manter livros e essa história toda e então fiz várias coisas assim como ficar ensinando crianças ali, quando eu chegava para almoçar meio-dia aí o menino vinha e eu ensinava, fiz várias tentativas pra manter a faculdade. Comecei a trabalhar numa fábrica, tive que deixar a fábrica, quando passei. Quando eu fui falar com o meu gerente, que chamavam presidente, ele ficou muito feliz que eu tivesse passado. O filho dele fez vestibular já era a quarta vez e ele não passava, então quando ele viu que eu tinha passado ele ficou um muito feliz.

Melissa teve demonstrações de solidariedade por parte de seu chefe nesse momento, que lhe deixou organizar seu próprio horário na fábrica, para tentar conciliar estudo e trabalho. Conforme ela declara, não foi fácil prosseguir:

Eu fui falar com meu gerente, e nesse tempo não tinha FGTS. Era diferente o direito trabalhista, e ele então me adiantou. Eu disse a ele que tinha que sair porque não tinha condições de permanecer. Foi aí que eu adotei uma estratégia que parece loucura! Ele me disse na primeira vez que não tinha problema, só queria que o trabalho fosse feito e que meu chefe dissesse que tava tudo ok. Eu não tinha horário. Eu chegava 4h da manhã na fábrica e quando era 7h que todo mundo tava entrando, eu ia saindo e ia para a faculdade e quando era 11h saía da faculdade ia direto para a fábrica. Quando dava uma e meia eu tava saindo e então foram assim uns seis meses. Perdi muito peso, fiquei muito, muito, muito frágil. E aí foi que eu fui falar com ele e disse que não tinha condições, e ele vendo realmente minha luta ele me deu cinco meses de abono o que me ajudou muito! Ele foi um

senhor que me ajudou muito!

Aqui ela registra a ausência completa de mulheres negras além dela, na Faculdade de Medicina, e destaca a quantidade mínima de mulheres naquele espaço em relação aos homens.

Eu era a única negra na Faculdade de Medicina e também a única negra na turma, porque realmente era difícil. Nós éramos uma turma de 32 alunos, nós éramos oito mulheres, mais ou menos um quarto da turma, e agora é quase 50% de mulheres.

A professora Melissa também não esquece de lembrar a dificuldade de se manter em um curso de tempo integral sem recursos econômicos. Então explica como foi conseguindo garantir sua permanência no curso: “Naquela época era tempo integral. Aí para me manter era difícil, porque não tinha trabalho, e aí com esse dinheiro que eu tinha ganhado lá da fábrica ia ajudando meu pai, sempre suprindo em alguma coisa.”

Ela declara ter sofrido na Faculdade de Medicina dos anos 1950, mais preconceito por ser mulher, do que propriamente por ser negra. Melissa explica que não chegou a perceber tanto preconceito por ser negra.

E na faculdade sofri mais discriminação, talvez mais como mulher, porque como eu disse, nós éramos poucas mulheres, mas assim como discriminação assim na minha turma eu acho que não, nunca senti, embora eu fosse a única negra, nunca senti.

Quando eu insisti sobre ter sofrido preconceito na UFC, ela resolve contar sobre uma situação de preconceito racial experimentada por ela quando fez concurso para professor na Faculdade de Medicina. Segundo ela o seu concorrente era uma pessoa de família de elite, e não suportou o fato de uma negra ter a ousadia de concorrer com ele. Ela afirma:

Então aí foi que eu fui para professor adjunto concorrendo com ele, e ele então aonde andava ele dizia aquela negra, ele dizia assim mesmo: “Aquela negra quer concorrer comigo! Como é que pode, aquela negra! Tem uma negra aí concorrendo comigo.” Mas deixa que ele tinha feito o curso dele em São Paulo de doutorado, mas não tinha defendido a tese, e eu tinha contato lá na universidade de São Paulo. Entrei em contato e eles informaram que ele não tinha defendido a tese. Ele fez o curso todinho, mas foi embora e até agora não fez defesa de tese. Então ele não tem o título. Eu sabia que era obrigatório apresentar o título de doutor e ele não tinha. Mas ele quis amedrontar a banca. Ele dizia pra todo o mundo, pra ver se com isso me intimidava. Nessa época foi que eu me senti muito pressionada, muito pressionada mesmo! Aonde eu chegava as pessoas diziam assim: “Olha aí, o Geraldo anda dizendo por aí que não vai ganhar dele. Como é que você pode? Como é que você não se enxerga? Como é que pode concorrer com ele? Uma negra!”