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“Aí o problema era o seguinte: eu não tinha dinheiro pra pagar o ônibus.”

O professor Telles não registra ter sofrido preconceito racial, mas sim preconceitos em virtude da condição de pobreza. Revela que, quando menino e jovem, sentiu muita vergonha de ser pobre, e que procurava se esconder, e não se expor em situações nas quais os amigos pudessem conhecer mais de perto as suas necessidades financeiras:

Depois eu passei a estudar num colégio no centro da cidade. Pertinho da Praça José de Alencar, esqueci o nome da escola. Aí o problema era o seguinte: eu não tinha dinheiro pra pagar o ônibus. Algumas vezes o que resultou é que a vovó pedia dinheiro emprestado ao bodegueiro quando podia. Quando a conta tava grande e não podia mais, aí eu fazia esse percurso a pé até a José de Alencar. Eu tinha uma vergonha enorme porque a Mister Hull era muito curta... Aí chegava um momento em que eu tinha

uma vergonha enorme porque eu imaginava que os meus amigos iam me ver a pé na transição entre a Bezerra de Menezes e a Mister Hull, a BR bem

curta, estreita. Aí eu sempre tinha essa sensação de estar sendo visto. Quando começava essa parte eu pensava: estou sendo visto. Aí eu corria pra outra rua que era paralela à Bezerra e continuava direto até a linha do trem, depois cortava por dentro. (Grifamos).

A sensação que o professor deixa passar é de alguém que esconde uma identidade, que parece estar sendo perseguido e prestes a ser descoberto em sua verdadeira face. Como podemos perceber, uma questão social tem reflexo direto no comportamento de Telles, e

obriga a ele próprio a se tornar invisível, a se negar. Onde fica o papel das agências educadoras como a escola e a família, em primeiro lugar, e outras instituições em segundo plano, como igrejas, locais de trabalho, grupos culturais, dentre outros, na formação da consciência de classe, de raça, e de gênero das crianças e jovens que negam o que são, ao ponto de se esconderem dos amigos? Todos os dias situações como essas podem acontecer na escola. Existem alunos que entram reservados, recolhidos e tímidos na escola, e saem depois de vários anos da mesma forma, sem que ninguém se incomode com os reais motivos de sua “incapacidade” social que algumas vezes tem forte reflexo na aprendizagem.

“Meu filho, você quer vencer na vida? Eu respondi: quero vencer.”

O professor Alceu não registra ter sofrido preconceito racial na escola, talvez porque não fiz essa pergunta diretamente. Ele deixa clara a situação de pobreza, que ele procurou não falar muito, parecia querer se proteger de lembranças dolorosas:

Eu tive um professor chamado Arthur Santana que me disse: “Meu filho, você quer vencer na vida?” Eu respondi: “Quero vencer.” Era assim dos meus 14 para 15 anos, talvez mais, talvez menos, né. Ele disse: “Vá embora daqui, procure um centro maior, vá para o Rio, São Paulo.”

Pelo que deixa explícito, o professor era ciente da sua necessidade, capacidade e vontade de crescer, uma vez que o incentivou a tentar a vida em uma cidade grande. Tanto quanto Telles, o professor Alceu também procura esconder a sua origem humilde. Não conta detalhes, mas algumas vezes, a sua esposa que está presente, faz questão de salientar que o sofrimento pelo qual o professor passou foi em razão dele ser negro e pobre. De forma clara percebemos divisões classistas e racistas se acomodando e cristalizando um comportamento.

De acordo com Santos (2000), com base no que este pensou sobre as sociologias da ausência e das emergências, essa invisibilidade, esse querer se esconder que os sujeitos da pesquisa apresentam; acontece de várias formas e não é por acaso. As populações ausentes da história social, ou visíveis pelo lado mais negativo, resultam de uma construção perversa. Tal como nos adverte Da Matta (1987), o Brasil é um país onde cada lugar tem uma coisa, e cada coisa tem seu lugar. A hierarquização social é uma construção da colonização que sofremos no Brasil. Negros, pobres miseráveis, mulheres, deficientes, homossexuais, entre outras. têm seu lugar. Negros e negras querendo estudar e promoverem uma ascensão social são negros que querem sair do lugar, forçar uma mobilidade social, reverter o status quo. Para Santos

(2000), toda ausência social é uma construção social de um poder hegemônico para garantir sua continuidade, e somente as políticas de emergência com base na sociologia das emergências pode fazer com que os ausentes possam emergir, entrarem em cena, saírem do fosso social em que se encontram e aspirarem também a uma contra-hegemonia, ocupando espaços sociais nunca dantes ocupados por eles.

Tal reviravolta social não se dá facilmente. É necessário que os ausentes e invisibilizados sociais estejam conscientes e dispostos a lutarem juntos, sem perder de vista a especificidade de cada coletivo, mas a união de forças e objetivos comuns precisam ser buscados juntos. A fragmentação que hoje os ditos novos movimentos sociais apresentam, tem algo de muito positivo pela luta que travam pelo reconhecimento da diversidade humana, e por isso mesmo reivindicam direitos específicos, mas essa razão precisa ser a mesma que soerga a vontade de luta conjunta no que diz respeito à justiça para todos dentro das suas especificidades.

Dentro da compreensão da sociologia das emergências podemos citar como exemplo as políticas de ação afirmativa para pobres e negros, os ausentes e invisíveis do quadro social. Essas políticas chegam para fazer emergir uma parcela da população que historicamente foi desfavorecida. Para Santos (2000), a sociologia das emergências compreende que há uma grande parcela da população no Brasil que precisa de urgência na resolução da situação de pobreza e de pobreza extrema sob pena de não haver mais nenhuma solução caso se pense que as coisas poderão melhorar no futuro. No caso, por exemplo, das cotas específicas para negros e pobres, trata-se de uma política de emergência, enquanto não temos uma escola gratuita e de qualidade para todos, de forma que todos possam concorrer igualitariamente. Recorremos a esse exemplo de forma breve, uma vez que a proposta de Santos (2000), de uma sociologia das ausências e de uma sociologia das emergências, tem uma profundidade que não poderemos evidenciar nesse texto, mas que cabe perfeitamente para esclarecer o que relatam os professores entrevistados.