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Reconhecer-se negro(a) e as sutilezas do preconceito

“Elas tentavam me magoar mesmo, elas me injustiçavam até. Mas eu não sabia, não notava que era porque eu era negra.”

Para a professora Dandara, a percepção do preconceito veio tardiamente. O preconceito parece não ter sido tematizado em família, muito embora o pai tenha educado todos os filhos para o exercício da autonomia e da autoestima, conforme ela mesma declara:

Então, na escola eu tive determinadas professoras que hoje depois de adulta eu vejo que elas tinham preconceito. Elas tentavam me magoar mesmo, elas me injustiçavam até. Mas eu não sabia, não notava que era porque eu era negra. Depois de grande foi que eu... “Ah!, Então aquela coisa que aquela professora fez comigo é por que eu era negra! Porque eu era a única negra da classe.” Ela me tratava de um jeito assim; me botava pro lado. Eu me lembro bem de uma professora do 3º ano primário do Instituto de Educação que ela me fez o diabo, mas eu não sabia que era por que eu era negra. Depois de grande é que eu fui perceber que aquela professora fez isso comigo porque eu era negra. Eu era a única negra da classe.

A percepção da negritude com tudo o que ela pode trazer de positivo, de consciência e amadurecimento de nossa atitude diante de nós mesmos e do outro, não acontece sem experiências dolorosas. Se estas não se apresentam logo na família, é na escola, em virtude da convivência com muitas crianças e adultos, e sem a proteção familiar, que podem se apresentar situações que nos colocarão diante do preconceito e da discriminação.

O preconceito institucional pode se manifestar de forma implícita, sutil, de forma que as crianças, adolescentes e até adultos podem até perceber atitudes, comportamentos como: gestos, olhares de soslaio, risadinhas, meios sorrisos, cochichos, entre outras atitudes, mas ficam confusos sem entender se certas sutilezas se tratam mesmo de preconceito ou não. Na pesquisa que realizamos no mestrado, uma jovem negra cotista da UnB relatou certa vez em que foi apresentar-se para pleitear um emprego, na hora da entrevista, o entrevistador olhou para ela, como que examinando sua aparência, pediu um instante, se afastou um pouco, falando baixinho com alguém. Ela percebeu que tinha alguma coisa a ver com a sua cor, pois o trabalho era de atendimento ao público. Em instituições educadoras como a escola, espera- se que a atitude seja diferente, e que o combate a qualquer tipo de preconceito seja um compromisso de todos. Mas sabemos que algumas vezes a escola, além de não saber lidar com determinadas situações, vai além da omissão e ela própria produz situações de racismo, discriminação e preconceito.

As reflexões que fazemos dessas situações, quando somos as vítimas diretas, vão se dando com o tempo. Algumas vezes se torna até mais fácil buscar esquecer. A professora Dandara conta aqui um episódio que lhe ocorreu quando ela já era professora de arte, ainda bem jovem:

Nesse dia eu tava com um professor, e ele me pediu desculpa porque ele anarquizou com os negros! Todos os colegas que estavam na sala ficaram calados. Eu fui a única que disse: eu tenho vergonha de ter um professor igual a você, ter um colega igual a você! Todos ficaram calados, ninguém levantou a mão, ninguém levantou o olho nem pra começar a discutir essa questão. Ninguém!

Essa outra situação que a professora traz, pode parecer muito simples, mas como é muito frequente acontecer, sem dúvida, pode se constituir um bom motivo para se iniciar uma reflexão na escola. Por que as pessoas preferem silenciar? Nesse caso é o professor que está ditando a sua visão de mundo, e a forma como percebe a diversidade humana, e os valores atribuídos às pessoas negras. Em geral os alunos não querem entrar em confronto com o que pensa o professor em sala de aula por este representar uma autoridade, para não ser

“marcado” pelo professor, por acreditar que nunca darão razão ao aluno, e assim por essas ou outras razões semelhantes, episódios como esse são silenciados.

A seguir podemos perceber no relato de Dandara como uma outra faceta do racismo se manifesta. Diz respeito à ditadura da forma, da beleza, da estética do momento, da moda contemporânea, do jogo inteligente da mídia para garantir o consumo. Em geral a preferência dos jovens é pela cor branca, alta estatura, cabelos lisos e louros, olhos azuis, sugestionados que são pelas imagens mediáticas. Aqueles que escolhem um padrão diferente podem se expor à ridicularização dos colegas. Por que hoje pensamos identidade nos remetendo quase sempre à dimensão da corporeidade num sentido muito mais estético que político? O que pode ter favorecido esta postura? O que pode ter havido para que tantos pesquisadores negros se interessem pelas raças negras com foco no que é externo em detrimento da consciência? Há interesse pelos tecidos étnicos, colares e outros acessórios indumentários. Em seminários, congressos, encontros, é bem possível que o comparecimento às oficinas de moda, acessórios e cabelos negros seja maior que nas conferências que acontecem simultaneamente. Será que uma estética negra é suficiente para uma consciência negra? Que consequências pode trazer essa redução para a compreensão e política da negritude?

Sodré (1999) já atenta sobre isso quando denuncia o poder da mídia sobre os nossos desejos, nossos comportamentos. A mídia forma, transforma e deforma padrões éticos e estéticos tão fortemente, que se torna necessária uma vigilância sobre o seu poder. Não se trata de ser contra a tecnologia, nem contra a importância de uma beleza negra, mas sim de estarmos alertas para as imposições estéticas que terminam por se constituírem em uma outra espécie de violência diária dentro de nossas casas. A mídia desvirtua símbolos, e os banaliza, capitaliza bandeiras de luta dos movimentos sociais e os converte em moda descartável e fútil. É contra isso que temos de estar alertas. Carvalho (2007) muito bem denuncia esse tipo de imposição da mídia com a noção de descartabilidade. Essa mídia que sugere que a aparência é a sua identidade, ou seja, você é o que você pode consumir, e o que você consome é o sentido efêmero da moda. Carvalho (2007, p. 5) afirma que:

Tudo é fulgaz, é eminentemente passageiro, para ser aproveitado e jogado fora. É a descartabilidade das mercadorias, é a descartabilidade dos trabalhadores supérfluos, é a descartabilidade das pessoas, é a descartabilidade de sentimentos e afetos.

Assim como a mochila que usam, o tênis, e outros símbolos estéticos, o(a) parceiro(a) que escolhem também representa poder entre os jovens. A professora Dandara

sofreu esse constrangimento quando era uma jovem professora de jovens e teve como resposta o silêncio. Vejamos o que ela relata:

Duas outras professoras que se aliaram à coordenadora que me chamou de negra, falaram pro meu namorado, como é que você namora com uma negra! Meu namorado era branco. Eu levei isso pra uma reunião de professores. Uma simples comunicação. Ninguém levou nada pra diante, nada! Não tem lugar pra discussão. Todo mundo é muito apressado, porque ganha muito pouco, porque sofre, porque num sei o quê!