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Eufemização das experiências com preconceito: um mecanismo de defesa

“Nunca fui impedido de jogar um jogo de futebol por ser negro, nunca fui impedido de brincar de alguma coisa por ser negro, isso aí não. Mas assim, brincadeiras sempre tinham. Essa coisa de xingar, né?”

Percebemos ao longo de nossas entrevistas que tematizar sobre preconceito e racismo ainda é uma grande tabu na família, na escola, e na sociedade como um todo. Nós negros ainda encontramos dificuldades de pensar e elaborar sobre esses temas conosco mesmos, com nossos alunos, filhos, parentes, amigos e até conosco mesmos. Quando alguém levanta tais questionamentos logo se instala uma tensão, um medo de ferir alguém, de tocar em feridas não cicatrizadas, um constrangimento como se fosse realmente assunto proibido, para ser esquecido.

O nosso primeiro entrevistado, o professor Francisco, parece preferir não dar importância aos insultos e xingamentos a ele dirigidos, repetindo uma postura já experimentada na família de origem. Daí a importância da família começar a falar sobre os preconceitos desde cedo. Por que eles existem? Quem tem o direito de xingar quem? Por que somos todos humanos e todos filhos de Deus e mesmo assim somos tão diferentes? Por que algumas diferenças são consideradas denotações de superioridade e outras de inferioridade? Os bebês já nascem preconceituosos? E por que aprendem ou não a sê-lo? Quem inventou os preconceitos? Todas essas perguntas podem instigar a reflexão de algumas crianças, e outras que nunca despertaram para temáticas como essas, passarão a pensar e, sobretudo, é possível que passem a falar para os pais sobre esses temas. Francisco afirma que sofreu preconceitos, embora estes não tenham chegado a se constituírem em discriminação, e dessa forma o professor parece não ter dado tanta importância às “brincadeiras de criança”, conforme podemos observar nesta afirmação:

Bom, preconceito entre crianças sempre é assim, se dá no nível de insultos, né, de apelidos, de brincadeiras né? Nesse sentido, tentativas de ridicularizar de falar da cor da pele de modo assim jocoso, esse tipo de

coisa, né? Esse tipo de preconceito né? Mas por exemplo, nunca fui impedido de jogar um jogo de futebol por ser negro, nunca fui impedido de brincar de alguma coisa por ser negro, isso aí não. Mas assim, brincadeiras sempre tinham. Essa coisa de xingar, né? Quando tava com raiva, eram os insultos que normalmente se faz de nego véi e tal, insultos assim.

O que pode levar uma pessoa que é atingida por insultos relacionados às suas características físicas a relevar, deixar por menos, ou até mesmo esquecer xingamentos que dizem respeito ao próprio corpo? A forma naturalizada como o racismo é tratado nas instituições nas suas mais diversas manifestações deixa a entender que é um comportamento social contra o qual as pessoas são impotentes por já se encontrar em tão cristalizado nas relações raciais no Brasil. Ora, para quê insistir em um tema sobre o qual as pessoas não se interessam, e consideram inexistente? Será que a sociedade é constituída assim mesmo, cada um já tem seu lugar? Resistir ao preconceito é tornar o racismo mais evidente e, portanto, mais forte? Este parece um grande tabu, tal como se discutir outros temas como sexualidade na adolescência, separação dos pais, a morte, entre outros. Esses temas, mesmo sendo tabus, pelo menos são aceitos como algo que acontece, que é real, mas o racismo, e o preconceito, as pessoas se negam a dizer que existe, ou que são preconceituosas ou racistas. Em pesquisa que desenvolvemos com jovens da escola pública, percebemos o quanto alguns diretores e professores faziam questão de afirmar coisas do tipo: “Não, aqui na nossa escola nós não temos esses comportamentos, porque ensinamos aos nossos alunos a saber tratar bem a qualquer um.” Notamos que nas respostas comumente aparecia uma expressão de paternalismo, de pena, de algo que denotava exclusão em relação a pobres, negros, portadores de deficiência física etc. Francisco lembra a postura de uma professora diante de uma situação de preconceito sofrida por ele, que considerou positiva, embora o assunto não tenha sido levado à reflexão com os alunos em sala da aula, de alguma forma houve uma intervenção que chamou atenção para o ocorrido:

Eu lembro de uma coisa até positiva, né? Eu tenho assim uma lembrança, muito remota. Acho que eu era uma criança pequena, acho que eu devia ter uns 10 anos ou até menos, mas nesse dia alguém teria me ofendido assim racialmente e a professora, não me lembro se eu denunciei ou se a professora flagrou, mas a professora aplicou um bom sermão no menino que fez isso, entendeu?

Muitas vezes os sermões apresentam por assim dizer, um sentido de proteger uma pessoa frágil, assim como também podem vir com forte carga moralista ou religiosa, encobrindo questões relacionadas à própria história, ao respeito às diferenças e à diversidade cultural. Os sermões, dependendo do seu tom, dos sentidos e significados, podem fazer da

pessoa ofendida um coitadinho, deixando este com as mesmas reservas e timidez que o impedem de usar a própria voz em sua autodefesa. Sabemos que as políticas e programas de ação afirmativa já vêm sendo discutidas e elaboradas desde o governo Fernando Henrique Cardoso, e que as Secretarias Especiais como a da Juventude, da Igualdade Racial, de Políticas para Mulheres, dentre outras vêm desenvolvendo trabalhos que trazem à tona uma reflexão mais profunda sobre os Direitos Humanos Universais e aqueles específicos que não podem deixar de contemplar a diversidade humana nas suas mais diferentes dimensões. A Secretaria de apoio à Diversidade (SECAD), ligada ao Ministério da Educação (MEC), por exemplo, tem buscado desenvolver programas de capacitação de professores da rede pública para que estes aprendam a lidar em sala de aula e fora dela como cidadãos capazes de perceberem o uno e o diverso que constituem os seres humanos, sobretudo as crianças, adolescentes e adultos, alunos com os quais eles lidam diretamente e diariamente. Há situações delicadas com as que professores e diretores precisam trabalhar, nas quais são necessárias habilidades técnicas, mas também, e sobretudo, sensibilidade e respeito. Para isso é necessário no mínimo que a escola conheça uma história mais completa e verdadeira sobre relações raciais no nosso país e no Ceará.