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O sentido de pertencimento racial desde a infância e a postura diante do racismo

“Então eu sempre cresci dentro já de uma ação afirmativa.”

Na trajetória do professor Gérson o preconceito, o racismo, a discriminação sempre foram tematizados em família numa infância e adolescência construídas dentro do movimento negro, tendo pai e mãe como exemplos na militância política e intelectual. O sentido de pertencimento racial em família, e a sua elaboração refinada junto com grandes nomes da história do movimento negro se constituíram como a base para a construção da sua identidade

ao longo de sua trajetória. A convivência com intelectuais do movimento negro do porte de Solano Trindade e José Correa Leite desde a infância, assim como a participação em movimentos negros culturais abriram oportunidades de aprendizado em diversas áreas. Quando fala de experiências familiares ele assim explica:

Minha mãe era professora primária. Minha mãe era professora primária e no tempo em que as professoras primárias em São Paulo tinham um salário razoável. Bom, então ela só trabalhava em um período. Dava aulas sempre para primeiros anos masculinos, e por ela dar aula para primeiros anos masculinos, ela dava aula numa escola que é uma escola classe média Marechal Floriano que fica no bairro da Vila Mariana. Só que, perto dessa escola tinha uma favela, que na época era a maior favela de São Paulo. Então, metade da sala de aula da minha mãe era de pessoas que vinham da favela né, e minha mãe era uma das professoras que conseguia um resultado bom, tanto para os alunos da favela como os da classe média. O que é que ela fazia? Ela dava aula num período e no outro período ela trazia sempre cinco ou seis alunos, desses alunos da favela para dar aula em casa. Então eu sempre cresci eh dentro já de uma ação afirmativa (risos).

É oportuno ressaltar que Fernandes (1965) proferiu discurso em homenagem a José Correa Leite, confirmando o destaque que o professor Gérson deu a essa figura do movimento negro na Câmara dos Deputados, em 20 de março de 1989, dizendo de início:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados: em nome do Partido dos Trabalhadores, desejo fazer aqui uma homenagem à memória de José Correa Leite, homem de origem humilde, batalhador negro, que foi um dos pioneiros dos movimentos sociais que se organizaram em São Paulo para desmascarar a situação em que ali viviam negros e mulatos. José Correa Leite, juntamente com Jaime Aguiar, Arlindo Veiga dos Santos, Raul Joviano do Amaral e muitos outros, representando várias tendências do Movimento Negro, fundaram um jornal muito importante chamado Clarim da Alvorada, que tocou para o Brasil o sinal de que os negros, em São Paulo, desejavam a segunda Abolição. (FERNANDES, 1965, PÁG. 23).

Desde o início de sua narrativa o professor se mostra muito tranquilo e muito à vontade para falar de si e dos seus pais como pessoas por quem ele demonstra muito respeito. Seu relato por vezes se confunde com alguns momentos da história do movimento negro. No fragmento acima, ele dá exemplo de como sua mãe livrou, por assim dizer, salvou crianças nordestinas pobres e negras de uma grande favela de São Paulo, do sofrimento da evasão e da repetência escolar. Ele chama a atenção para a mãe na educação daqueles meninos, considerando esta atividade operada por ela como uma ação afirmativa.

Com efeito, não é à toa, que o professor hoje seja um militante dos direitos dos afrodescendentes, uma vez que a família sempre foi um exemplo de afirmação desses direitos.

Ele prossegue em sua narrativa das trajetórias familiares, trazendo a figura dos pais como o centro das lembranças de infância, onde educação, cultura e política são focos do cotidiano de suas trajetórias.

A totalidade desses alunos da favela eram negros. Eram negros e nordestinos que migraram pra São Paulo né, e minha mãe fazia um trabalho eh voluntário de fazer com que essas crianças também acompanhassem a escola. Então eu cresci no núcleo também de uma militância política muito grande. Meu pai era da Associação Cultural do Negro e a minha mãe

também era da Associação Cultural do Negro. Eram pessoas sempre voltadas pra uma militância do movimento negro, militância essa que tinha um contato muito grande com a esquerda, mesmo dentro dos movimentos de esquerda, dos grupos negros que não se diziam como grupos negros, mas eram da mesma “mente do grupo negro”.

As ações afirmativas como políticas públicas vêm sendo discutidas e implementadas em muitos países, nos últimos anos, no entanto, muitas ações afirmativas são realizadas por várias pessoas e instituições, quando estas trabalham com o que alguns autores chamam de discriminação positiva, ou seja, quando algum tipo de trabalho é realizado no sentido de reparar danos históricos que levaram algumas populações a se encontrarem em situação de grande desvantagem em relação a outras. Nesse sentido é oportuna a observação do professor sobre a iniciativa de sua mãe.

No fragmento de narrativa acima, ele aponta as contradições dos movimentos políticos de negros que não se reconheciam como negros, mas parece querer considerar a importância de uma ação política conjunta pelos objetivos dos grupos que eram convergentes, mesmo sem a consciência da negritude em todos os movimentos da época.

No trecho destacado a seguir, o professor traz como exemplo a importância de um trabalho político conjunto com Solano Trindade, figura fundamental em qualquer trabalho que resgate a memória e a história dos movimentos negros políticos e culturais no Brasil. O professor demonstra em sua narrativa parecer se sentir um privilegiado por ter convivido no seu cotidiano desde a mais tenra idade com personagens tão importantes dessa história que é a dele mesma.

Vale notar que o professor sente-se integrado, atuante, com um sentido de pertencimento racial que difere dos demais entrevistados, que elaboram um tornar-se negro de difícil construção por terem precisado de grande esforço para elaborar uma construção identitária. O professor traz à tona e com desenvoltura, lembranças dos representantes deste movimento:

O que eu mais lembro da minha infância era o grupo do Solano Trindade Ferreira, meu pai era amigo do Solano e tudo, e o Solano fazia um trabalho que era o movimento da cultura, então a gente ia a Embu, ia a Ferreira, ia a

Praça da República e até a locais que o Solano reunia um grupo dele. E interessante é que meu pai era fundamentalmente de movimento negro, foi presidente da Associação Cultural do Negro e o Solano não era do movimento negro, ele era do movimento popular operário né, um teatro que tinha na Associação Cultural do Negro [...].

É interessante observar outro intelectual negro como o professor Gérson falando de experiências semelhantes, confirmando o seu envolvimento familiar com o movimento negro paulista. O professor e historiador Joel Rufino dos Santos foi professor nos anos 60/70 em São Paulo e em entrevista concedida à pesquisadora e bióloga negra Rosa Andrade, diz a respeito das entidades negras de São Paulo dos finais dos anos 60, início de 1970 que:

O Movimento Negro Unificado explode nos anos 70. O que havia antes era um movimento cultural de negros, as associações eram mais para recreação e autodefesa. Como a do saudoso Solano Trindade – o poeta da resistência negra por excelência, em Embu, escolas de samba, instituições como o Aristocrata para encontros sociais. (SANTOS, 2002, p. 93).

Nesse fragmento, Gérson novamente faz menção aos intelectuais que construíram o pensamento negro em alguns momentos da história, sobretudo no que diz respeito às relações de raça, classe e mobilidade social no Brasil. Ele faz questão de destacar a importância do conhecimento e da leitura, e de uma leitura de qualidade, independente de ser ou não um intelectual da academia.

Consideramos importante no que diz respeito à construção de uma identidade negra consciente desde a infância, como foi o percurso identitário do professor, ter como espelho os próprios pais, sobretudo a mãe, numa sociedade em que as mulheres negras ainda hoje se constituem um segmento colocado à margem. A mãe do professor aparece como militante que alcançou destaque no movimento, pois escrever no Jornal Clarim da Alvorada confere destacado status no meio negro da época, e hoje ainda tem grande repercussão nos trabalhos que resgatam a memória e a história do movimento negro. Vejamos o relato do professor:

Outra coisa que eu vi é uma cultura muito letrada, a cultura da minha infância e todos os amigos do meu pai eram intelectuais, desde intelectuais do movimento negro como o senhor Correa Leite, pessoas que inclusive passaram para a história e estão presente em livros e tudo como intelectuais também ligados ao mundo universitário, e intelectuais como Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Roger Bastide. Todas essas pessoas eu conheci ou em casa, ou na casa de amigos do meu pai. Então era um mundo! Meu pai tinha uma biblioteca espetacular! Eh, meu pai lia e estudava muito! Eu acho que eu imitava certa situação. Então é isso. Meu pai, por exemplo, tinha

uma leitura espetacular, eu não tenho a metade da leitura que meu pai tinha. Mesmo sendo professor universitário, meu pai não era professor universitário, mas lia muito e debatia muito! E tinha essa coisa de, da vida intelectual que a minha mãe também acompanhava. Minha mãe eh escreveu em jornais no passado como o Clarim da Alvorada.

Correa Leite (2007) que foi um dos militantes do movimento negros escrevia no famoso jornal “O Clarim da Alvorada.” Seu depoimento foi publicado numa passagem de suas narrativas. Ele diz a respeito das diversas formas como o preconceito se apresenta, que é necessário ter consciência, estar atento sobre as sutilezas dessas situações: “Quando um branco dava um sorriso para o negro, o negro tinha que aceitar aquilo como um favor [...]. É um dos preconceitos mais safados que pode haver.” (p. 210). Ele diz algo interessante em relação a negros e mulatos:

Nós, d’O Clarim d’Alvorada, incluíamos o mulato como negro. E a gente sabia que no Brasil, pela ética brasileira, o mulato sempre teve oportunidade de passar pro lado de lá e muitas vezes não ser molestado pela cor. Mas nós tínhamos aquela mesma ideia de que “deixou de ser branco é negro”. Apesar de ser um país mulato, como dizia Luiz Gama no poema “Bodarrada”, a ética não assumia isso. Eu nunca sofri no meio negro por ser mulato. Todos me tinham em conta de negro. (LEITE, 2007, p. 210).