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Quando a ascensão social parece encobrir a pele e também a consciência

“Às vezes eu estou aqui no meu gabinete e de vez em quando alguém fala: ‘Oh, neguinho! Oh, negão!’ E só aí é que eu lembro que eu sou preto.”

O professor Fernando, hoje falando do seu Gabinete no Campus do PICI, parece querer dizer: “se sou negro, não me lembro”. Afirma, tanto quanto o professor Viana que não sofre mais preconceitos por que tem boa aparência e sabe se comunicar com as pessoas. “Boa aparência” ou “boa comunicação” podem justificar que alguém possa ser vítima ou não de preconceitos? Consideramos que esse tipo de classificação está estreitamente ligada a uma exigência social ditada por uma cultura dominante que determina o tipo de roupa, cabelo, palavras, etiquetas sociais, enfim uma padronização de comportamento. Aqueles que adotam posturas diferenciadas podem ser estranhados ou até desvalorizados. Ora, vejamos o relato do professor abaixo. O que poderia ter feito com que ele se esquecesse que é negro?

Às vezes eu estou aqui no meu gabinete e de vez em quando alguém fala: “Oh, neguinho! Oh, negão!” E só aí é que eu lembro que eu sou preto. No resto não, mas de um modo geral acho que assim, eu tenho uma facilidade grande de comunicação com as pessoas. Ah, e eu sou bonito!

Quem tem acesso a espaços historicamente ocupados por uma população branca, nos quais até se pode esquecer seu próprio pertencimento racial? Em estudos sobre universidade e a chamada sociedade do conhecimento, Bernheim e Chauí (2008, p. 7) destacam o uso intensivo de “[...] conhecimento e informação como um dos fatores mais importantes na emergência de um novo paradigma econômico e produtivo na sociedade contemporânea.” Mais importante até mesmo que a disponibilidade de capital, trabalho, matérias-prima ou energia. Contraditoriamente, o acesso a esta instituição torna-se, portanto, cada vez mais elitizado, e o conhecimento cada vez mais distante dos filhos da classe trabalhadora. Daí questionamos: como ficam as populações historicamente discriminadas que hoje requerem o direito ao conhecimento? O que nossos entrevistados mais pobres demonstraram foi uma certeza de que o único caminho para alcançar uma ascensão social sempre foi o estudo. E nessa perspectiva se esforçaram muito para chegarem a ser professores universitários com as titulações cada vez mais requeridas. Como eles se percebem hoje nesse espaço privilegiado?

Em estudos sobre a participação social dos excluídos, Foracchi (1982, p. 152) afirma que é importante para a universidade: “Investigar, como no curso da existência histórico- social, no acervo da sua experiência pedagógica esta instituição pode elaborar e definir critérios que lhe proporcionem a exata compreensão do seu papel na sociedade brasileira.”

Um dos problemas da universidade destacados pelos estudiosos dessa instituição é a sua função social, e dessa forma não se pode percebê-la dissociada de um contexto maior, desconectada do que os indivíduos e grupos experimentam nas múltiplas relações cotidianas. Convergindo com essa compreensão, Foracchi (1982, p. 153) considera que:

A análise sociológica não pode conceber a universidade como uma instituição, pressupondo que ela opera num “vácuo social” desprovida de qualquer tipo de articulação com as demais instituições. Ela procura, pelo contrário, focalizar os mecanismos específicos de articulação que a universidade, em razão dos papéis sociais que desempenha na nossa sociedade, desenvolve com relação aos outros setores da vida social, e por força de um processo crescente de democratização da cultura intelectual, os embates, as formas de pensamento, os mecanismos de acomodação, as tensões e os dilemas, enfim, da sociedade inclusiva.

A universidade pode ser reconhecida como um organismo vivo na medida em que reflete o que pensam aqueles que formam a comunidade acadêmica, sobretudo seus principais atores, os estudantes e professores. A cada momento novo na conjuntura social em que esta instituição está inserida, ela sofre as pressões dos movimentos sociais e dos indivíduos que convivem diariamente nos espaços da universidade, sejam espaços efetivos de poder ou não.

A universidade a cada novo período na história é convidada a repensar suas posturas. Foracchi (1982, p. 153) afirma que:

Antes de propugnar soluções ou sugerir alterações verifique se elas são coerentes com as funções que a universidade deve desempenhar na sociedade brasileira. Porque estas funções, já é tempo de redefini-las, já é tempo de abandonar concepções obsoletas e eivadas de conteúdo tradicional para que se chegue a compreender a universidade como uma totalidade viva e atuante.

Se considerarmos que a universidade é um espaço por excelência da construção de conhecimento, é interessante saber quem são os agentes elaboradores desse conhecimento, e quem tem acesso a esse espaço, e acesso aos meios de produção do conhecimento, que em último caso é o que leva alunos e professores a se identificarem ou não com o espaço da universidade, e desenvolver um sentido de pertencimento a esta instituição. A universidade, enquanto espaço que pode abrigar a diversidade humana, existe como organismo vivo na proporção das relações significativas que se estabelecem entre seus agentes. D’Adesky (2000, p. 308) declara a respeito dessa espacialidade institucional que: “Captada nas nossas relações com os outros, a espacialidade engloba diversas dimensões cuja análise é útil para delimitar uma identidade e colocar em relevo os interesses em jogo provenientes de diversos grupos.”46

O espaço físico da universidade, o lugar, a territorialidade que esta ocupa, tem um significado que vai além dos aspectos puramente físicos. O espaço onde se insere a universidade é reconhecido como um espaço que abriga uma elite, um poder dominante, um lugar que pelo próprio sentido de universidade deveria ser do acesso de todos, mas de fato não o é. O momento de ingresso nesse território reflete as desigualdades sociais e confere poder àquele que ingressa, e esse poder, por sua vez, obedece a uma hierarquia. Podemos fazer uma analogia da universidade com outras instituições de que fala D’Adesky (2000, p. 309) e que ocupam territórios privilegiados na urbe, as quais representam determinado poder:

Pelos eminentes valores que representam, trazem sentido para a coletividade que neles veem a autoridade do Estado sobre seu território e a integração dos grupos em seu espaço. Desta identidade, o Congresso, o palácio do governador, o palácio da Justiça são vistos como representações valorizadas através das quais os grupos se afirmam e se reconhecem.

A partir do ingresso nesse espaço, adquire-se novo status social que se reflete na própria identidade de quem teve esse acesso privilegiado. De estudante e professor para

46 Antropólogo, nasceu na África e radicou-se no Brasil, licenciado em Ciências Econômicas pela Universidade

estudante universitário e professor universitário. Esse complemento significa estar em outro espaço físico e ideológico que confere outra identidade ao indivíduo.

Como o espaço se reflete no indivíduo? É realmente necessário que a ideia de espaço penetre e se organize no indivíduo, que apareça em seu pensamento, que se exprima em seu comportamento cotidiano e influencie a sua identidade (D’ADESKY, 2000).

É fato que alunos e professores negros, quanto mais se aproximam do fenótipo negro, menos são vistos em alguns cursos dentro das universidades, sobretudo naqueles ditos de alto prestígio como, por exemplo, os de Medicina, Engenharia, Direito e Psicologia. Nesse sentido, cabe a pergunta: você já se consultou com algum médico negro? Infelizmente a lembrança fica esperando resposta, como se a sociedade destinasse lugares delimitados para determinados tipos de pessoas. Por que poucos negros escolhem cursos de alto prestígio quando da seleção para ingresso na universidade? Porque alguns chegam mesmo a dizer que aquele lugar não é para eles? D’Adesky (2000, p. 310) no contexto dessa discussão, reconhece que:

O sentimento de pertencimento a um espaço onde o indivíduo opera a autoafirmação, aparece realmente através da existência de um espaço de pertencimento e de referência, mas também a partir do grupo social que produz a espacialidade.

Esse lugar privilegiado do conhecimento pode começar a ser lugar também de negros, e de índios. O que causa incômodo é que esses espaços mais branqueados, como os explicitados acima possam vir a ter outras cores, e sabemos que estes não são naturalmente branqueados. Sabemos também que mudanças como estas não se operam sem conflitos, e sem polêmicas. Carvalho (2006a, p. 19) avalia que:

Desde a formação das primeiras instituições de ensino no século dezenove, não houve jamais um projeto, nenhuma discussão sobre a composição da elite que se diplomaria nas Faculdades de Direito, Medicina, Filosofia, Farmácia e Engenharia existentes na época. A atual composição racial da nossa comunidade universitária é um reflexo apto da história do Brasil após a abolição.

No entanto, as pressões por mudanças neste quadro são efetuadas e a universidade não pode se resguardar das pressões sociais e se manter isolada, mesmo que tenha de preservar as suas especificidades. Através do conhecimento produzido e reproduzido em seu âmbito, por exemplo, ela pode se aproximar ou se distanciar dos fatos reais. Esta aproximação se configura no esforço de alguns professores e

estudantes, mas parece não estar configurada como uma política real dessa instituição. Para Sousa Santos (1995, p. 208):

Incapaz de se isolar completamente das pressões que lhe são feitas, a universidade procura geri-las de modo a reproduzir, em condições sempre novas, a sua centralidade simbólica e prática sem comprometer demasiado a sua estabilidade institucional.

Contraditoriamente, na chamada sociedade do conhecimento o direito de acesso à universidade assim como a possibilidade de permanência estão presos aos limites das relações de dominação. Essa instituição também perpetua a divisão de classes existente na sociedade, a qual formata um padrão de indivíduo que tem os requisitos para pertencer a este espaço, naturalizando as desigualdades de acesso e permanência. Para Sousa Santos (1995, p. 212):

No momento em que a procura da universidade deixou de ser apenas a procura por excelência e passou a ser também a procura de democracia e de igualdade, os limites da congruência entre os princípios da universidade e os princípios da democracia e da igualdade tornaram-se mais visíveis: como compatibilizar a democratização do acesso com os critérios de seleção interna? Como fazer interiorizar numa instituição que é, ela própria, uma “sociedade de classes” os ideais de democracia e de igualdade?

De acordo com Sousa Santos (1995, p. 224), “[...] a hegemonia da universidade deixa de residir no caráter único e exclusivo do saber que produz e transmite para passar a residir no caráter único e exclusivo da configuração de saberes que proporciona.” Nesse sentido vale questionar que tipo de saber se produz na universidade, destacando quem se reconhece nesses saberes. Uma reivindicação dos movimentos negros consiste em que a universidade reconheça o eurocentrismo epistemológico já desgastado e passe a produzir um conhecimento em que outras raças/etnias nele se reconheçam. Sousa Santos (1995, p. 225) explica ainda que:

A “abertura ao outro” é o sentido profundo da democratização da universidade, uma democratização que vai muito para além da democratização do acesso à universidade e da permanência nesta. Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida se assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino.

Um dos papéis da universidade é formar professores para atuarem nas escolas de ensino fundamental e médio, no entanto, ainda são poucas as iniciativas no sentido de produzir um conhecimento que de fato atenda as necessidades assentes à formação humana, embora já tenham havido cursos preparatórios em temáticas pertinentes ao objeto ora

investigado. A implementação da lei nº 10.639 tem encontrado entraves para a sua aplicação. Não é fácil, portanto, a produção de outro conhecimento que não o hegemônico na universidade. Conforme Sousa Santos (1995, p. 228):

As configurações de saberes são sempre, em última instância, configurações de práticas sociais. A democratização da universidade mede-se pelo respeito do princípio da equivalência dos saberes e pelo âmbito das práticas que convoca em configurações inovadoras de sentido. A universidade será democrática se souber usar o seu saber hegemônico para recuperar e possibilitar o desenvolvimento autônomo de saberes não-hegemônicos, gerados nas práticas das classes sociais oprimidas e dos grupos ou estratos socialmente discriminados.

O silenciamento e a negação de outros saberes que não o eurocêntrico é um reflexo da história. É uma construção político-ideológica que se arrasta há longos anos. Na contramão da história, há grupos isolados que apontam novas perspectivas, mas que ainda encontram barreiras para serem reconhecidos.

Na UFC, no curso de Pedagogia temos vários professores trabalhando com a temática em seus grupos de pesquisa e em sala de aula dos quais podemos destacar: as professoras, Sandra Petit, Eliane Daysi, Rebeca Alcântara, Fátima Vasconcelos, Bernadete Beserra, Henrique Cunha e Gerardo Vasconcelos. No curso de Ciências Sociais temos a professora Isabelle Braz. Todos estão envolvidos na discussão da lei nº 10.639, visando a sua implementação, assim como na discussão sobre a política de cotas, que não obteve aprovação, apesar dos esforços envidados nesse sentido pela pró-reitora Ana Iório Dias, na gestão da UFC anterior à vigente no momento, que infelizmente não aprovou essa política. No primeiro semestre de 2009, dois seminários sobre temáticas referentes à lei nº 10.639, e sobre cearensidade e negritude, foram organizados por alguns dos professores supracitados, nos quais houve expressiva participação de alunos e professores.